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A função social da propriedade e o conceito de princípio jurídico

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Agenda 07/06/2013 às 16:18

Para que o direito de propriedade seja restringido com base na função social, é necessário cumprir os requisitos previamente estabelecidos e bem definidos em lei, como, por exemplo, a desapropriação por utilidade pública ou interesse social. Assim, a matéria é regida por regras, e não por princípio.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda, em linhas gerais, o que pretende ser uma moderna concepção do instituto da função social da propriedade, sob a perspectiva da teoria neoconstitucional dos direitos fundamentais.

O ponto de partida, portanto, está na natureza restritiva de direitos de que se reveste o instituto, sendo também objetivos principais do arrazoadoa forma como incide, bem como o papel que deve representar no exercício dafunção administrativa. 

Para alcançar os desideratos, a abordagem inicia-se com a descriçãodo conceito de propriedade, e como este tem sido influenciado pela teoria da função social. Neste bojo, traça-se uma breve evolução do instituto, sobretudo para delinear seu conteúdo, como forma de adequação às realidades sociais.

A intenção é observar como evoluiu a concepção individualista originalmente concebida, que atribuía à propriedade a característica de intangibilidade, como direito subjetivo inerente à própria natureza do ser humano. Este caráter transcendental da propriedade, aliás, faz do instituto tema de grande relevância a fomentar intensos debates, sobretudo, pela importância da propriedade para o desenvolvimento das relações humanas, especialmente econômicas.

Com efeito, a propriedade constitui elemento imprescindível para o modo de produção capitalista, representado pela conjugação entre o capital, isto é, a propriedade do empresário ou industrial, e a força física dos trabalhadores, que por sua vez trabalham na expectativa de amealhar bens, ou seja, constituir seu próprio patrimônio, sua propriedade.  

Como consequência, a própria produção científica, durante anos, deu ênfase ao aspecto individual da propriedade, como instituto eminentemente de direito privado, cuja disciplina era regida principalmente pelo Código Civil de 1916, o qual conferia ao proprietário o poder de uso ilimitado e incondicionado sobre seus bens. Isto é, a propriedade servia apenas ao dono, e não tinha qualquer função instrumental na lida dos interesses públicos.

Com o advento da noção de função social da propriedade, o pensamento que girava em torno do instituto paulatinamente se modificou. Por influência, já no século XX, do jurista Léon Duguit, a noção de função social, antes concebida por Augusto Comte, foi incorporada ao conceito de direito de propriedade. A partir de então,a noção do instituto passou a abranger a suaflexibilização, nos casos em que o bem não fosse utilizado de forma a atender, concomitantemente aos interesses do proprietário, os interesses coletivos.

Passou-se a inadmitir, desta maneira, a ociosidade e o sub-aproveitamento da propriedade. A propriedade que não cumpre sua função social perde seu caráter de intangível. Melhor dizendo, o ordenamento jurídico não aceita como legítima a propriedade que não cumpre sua função social e, assim, o Estado se vê munido dos fundamentos para a imposição do uso adequado, ou de outra destinação que implique na perda da propriedade.

A função social da propriedade foi densamente utilizada pelo legislador constituinte originário, tendo por resultado a inclusão, na Constituição Federal de 1988, de diversos dispositivos relativos ao instituto. Aliás, foi a Carta Magna de 1988 que deu ênfase à “publicização” do instituto, sobretudo ante a previsãoexpressa da função social.

À legislação civil restou a atribuição de regular as relações entre particulares quanto ao uso, gozo e disposição da propriedade e, ainda assim, respeitados os termos constitucionais, especialmente no que concerne ao atendimento da função social.

Assim, a função social da propriedade foi alçada à condição de elemento condicionante do exercício da propriedade, conforme insculpido no artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal, bem como princípio da ordem constitucional econômica, capitulado pelo artigo 170, inciso III, e das políticas urbana (artigo 182, §2º) e agrícola e fundiária (artigo 186). Com esta imposição, a de cumprimento da função social, espera o texto constitucional obter uma melhor e mais justa distribuição das riquezas sem, no entanto, necessariamente socializar a propriedade.

Esta visão da propriedade, e da respectiva função social, foi concebida sob a perspectiva de doutrinas tradicionais, que consideram a incidência do princípio da função social da propriedade como um dos elementos de definição, de delineamento do conteúdo do que denominam direito de propriedade. Não seria a função social, portanto, propriamente uma limitação, uma restrição, um sacrifico à propriedade individual.

  Contudo, esta teoria parece não explicar de forma satisfatória as implicações jurídicas decorrentes do sistema normativo vigente no Brasil, relativo às atividades estatais ligadas à intervenção na propriedade individual. Observa-se, por exemplo, a necessidade de distinguir a função social da propriedade das limitações administrativas, bem como examinar se de fato constitui-se em princípio jurídico, tal como referida na Constituição Federal de 1988.

Nesta perspectiva, urge encontrar referências teóricas que melhor se adéquem às tendências dogmáticas que envolvem a propriedade e a função social, como forma de intervenção estatal nos direitos individuais. Justamente aí ganha relevo a moderna concepção de princípios jurídicos, nascida no direito alemão e que muito se desenvolveu nas últimas décadas, com contribuições expressivas para o avanço científico sobre diversos institutos do ordenamento jurídico brasileiro.

Descrever e relacionar a função social da propriedade como norma jurídica autônoma, voltada para a limitação do direito subjetivo individual à propriedade, e as implicações jurídicas que esta vertente de pensamento induz, consiste no destino final desta modesta incursão.              

 


1 A PROPRIEDADE

1.1 SIGNIFICAÇÃO CORRENTE DO TERMO

A propriedade é inerente à própria natureza humana. Ela representa condição de existência e de liberdade de todo homem (MONTEIRO, 2003, p. 79). Nasceu da convivência em sociedade, em face da necessidade de manutenção da ordem, muitas vezes ameaçada pelos litígios em torno da utilização de utensílios e da terra.

Inicialmente, entendia-se por propriedade a relação jurídica havida entre o homem e uma determinada coisa, da qual poderia dispor irrestritamente. Tal posicionamento, entretanto, não pôde subsistir, tendo em vista a percepção da impossibilidade de haver relação jurídica entre um indivíduo e uma coisa.

Neste contexto, desenvolveu-se a concepção de que, em realidade, trata-se de uma relação jurídica entre um indivíduo e um sujeito passivo universal integrado por todas as pessoas, o qual tem o dever de respeitá-lo (SILVA, 2002, p. 270). Ou seja, cada indivíduo tem o poder subjetivo sobre seus pertences, relação esta que deve ser respeitada pelos demais membros da coletividade.

Com base nesta concepção individualista,também denominada função individual ou privada da propriedade, fortemente influenciada pelo modo de produção capitalista, tem-se que a propriedade encontra razão de existir apenas para a satisfação exclusiva de seu dono, enquanto instrumento hábil para a consecução dos interesses econômicos do indivíduo e sua família. Com efeito, segundo este pensamento, as coisas com valor econômico são apropriadas, produzidas ou transformadas para servir aos fins individuais.(MONTEIRO, 2003, p. 79).

Sobre o assunto, afirma Wellington Pacheco Barros:

O dogma, assim estabelecido, tinha como pressuposto originário a sustentação filosófica de que ela (a propriedade) se inseria no direito natural do homem, e dessa forma, apenas nele se exauria (2002, p. 41).

Assim, temos que propriedade é a noção subjetiva de poder exercido por um homem sobre um objeto, relação esta que deve ser respeitada pelos demais indivíduos, e apresenta requisitos representativos dos contornos de sua fruição. Tais requisitos, também chamados de atributos da propriedade ou faculdades, materializam-se precisamente pelas condutas de usar, gozar e dispor da coisa. Vale destacar, neste ínterim, a lição sintética, porém, elucidativa de Washington de Barros Monteiro:

O direito de usar compreende exigir da coisa todos os serviços que ela pode prestar, sem alterar-lhe a substância. O direito de gozar consiste em fazer frutificar a coisa e auferir-lhe os produtos. O direito de dispor, o mais importante dos três, consiste no poder de consumir a coisa, de aliená-la, de gravá-la de ônus e de submetê-la ao serviço de outrem. (2003, p. 83)

Destaque-se que a propriedade pode ser exercida de forma concentrada ou plena, quando um mesmo sujeito tem à sua disposição todos os atributos; ou pode ser exercida separadamente ou de forma limitada, quando há o desmembramento dos atributos, hipótese que prevê a transferência de uma ou mais das faculdades a outrem, em razão de disposição de vontade. O exercício limitado da propriedade inclui ainda a possibilidade da perda pelo proprietário da faculdade de dispor da coisa, em decorrência de contrato ou imposição legal (PEREIRA, 2005, p. 93).

Encarta-se ainda no conteúdo da propriedade a possibilidade de defender o livre exercício dos atributos acima mencionados, é dizer, a possibilidade de utilizar-se dos meios legais próprios para garantir o exercício do conteúdo material da propriedade. Com efeito, ao sinal de ameaça ou a efetiva lesão ao exercício de qualquer dos atributos uso, gozo e disposição, tem o proprietário o direito de invocar o ordenamento jurídico, com o fito de reavê-lo.

Os contornos até aqui apresentados constituem o que se pode chamar de sentido usual do termo propriedade, a sua significação corrente (BANDEIRA DE MELLO, 1987, p. 42), erigida pela legislador infraconstitucional, por ocasião ainda do Código Civil de 1916 e repetida pelo diploma civil de 2002, no artigo 1.228, segundo o qual “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.  A Constituição Federal, ao não conceituar a propriedade, aderiu a este sentido usual.

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1.2 NATUREZAJURÍDICA SUI GENERIS: PREDOMINÂNCIA DO DIREITO PÚBLICO

Em que pese a forte influência do Direito Civil na formação do conteúdo da propriedade, insta destacar o instituto tem natureza jurídica sui generis. Mescla elementos de Direito Público e de Direito Privado. Na perspectiva de José Afonso da Silva, influenciado por Pietro Perlingieri, “o tema é resultante de um complexo de normas jurídicas de Direito Público e de Direito Privado, e que pode interessar como relação jurídica e como instituição jurídica” (2002, p. 270).

Com efeito, a propriedade representa instrumento para a consecução do bem estar individual, à medida que rege as relações entre o indivíduo e a coisa, traçando os contornos da atuação do proprietário e combatendo eventuais abalos ao seu pleno exercício, conforme já explicitado alhures.

Importa observar, pois, que o conteúdo material da propriedade consubstancia-se no Código Civil, pedra fundamental sobre a qual se erige o Direito Privado brasileiro, e que traz ainda outros dispositivos regentes do instituto da propriedade. Com base nas disposições do diploma civil, postas em nosso ordenamento ainda pelo Código de 1916, e mantidos pelo Código de 2002, durante muito tempo assentou-se a doutrina pátria na natureza eminentemente privada do instituto da propriedade.

José Afonso da Silva, contudo, critica a visão civilista do instituto da propriedade:

Essa é a perspectiva dominada pela atmosfera civilista, que não leva em conta as profundas transformações impostas às relações de propriedade privada, sujeita, hoje, à estreita disciplina do Direito Público, que tem sua sede fundamental nas normas constitucionais. Em verdade, a Constituição Federal assegura o direito de propriedade, mas não só isso, pois, como assinalamos, estabelece também seu regime fundamental, de tal sorte que o Direito Civil não disciplina a propriedade, mas tão somente as relações civis a ela inerentes(2002, p. 270).

Celso Antônio Bandeira de Mello vai além, e afirma categoricamente que a propriedade é matéria de ordem pública. Assim se manifesta o autor:

O direito de propriedade – ou seja, o reconhecimento que a organização jurídica da Sociedade (Estado) dispensa aos poderes de alguém sobre coisas – encarta-se, ao nosso ver, no Direito Público e não no Direito Privado. É evidente que tal Direito comporta relações tanto de Direito Público quanto de Direito Privado. Entretanto, o direito de propriedade, como aliás sempre sustentou o prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello é, essencialmente, um direito configurado no Direito Público – e desde logo – no Direito Constitucional (1987, p. 39).

Assiste razão aos autores, pois é evidente que a propriedade encontra fundamento na ordem constitucional. E não apenas isso, nota-se pela quantidade de dispositivos em que a propriedade é tratada, que o ordenamento constitucional pretende não apenas tutelá-la, mas, sim, verdadeiramente garantir que seja exercitada na maior medida possível.

Neste contexto, merece destaque a qualidade de direito fundamental a que foi elevada a propriedade, fazendo parte do rol que tem por integrantes ainda a vida, a liberdade, a igualdade e a segurança, todos mencionados pelo artigo 5º, caput, da Constituição Federal. Neste sentido, a propriedade aparece como efetiva garantia ao patrimônio do cidadão, indispensável para o alcance da colimada dignidade humana. 

Ademais, o texto constitucional ainda relaciona a propriedade como garantia fundamental (artigo 5º, XXII a XXX), princípio da ordem econômica (artigo 170, II e III), bem como princípio informador da política urbana (artigos 182 e 183) e da política agrícola e fundiária (artigos 184 a 186), além de outras previsões especiais que igualmente interferem na propriedade.    

Resta inegável, portanto, a importância assumida pela propriedade no regramento constitucional pátrio. Com efeito, a propriedade consiste em um dos mais versáteis instrumentos de que dispõe o poder constituinte para a consecução dos fins colimados pelo Estado Social Democrático de Direito, especialmente em razão da presença indissociável da função social, segundo o qual a propriedade, longe de ser apenas instituto voltado para a satisfação individual, deve ser exercitada de maneira ótima, tendente ao atendimento dos anseios da justiça social. Sobre a função social da propriedade dedica-se capítulo diverso a seguir.  


2 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

2.1NOÇÃO DE FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A concepção de função social nasceu da noção de que, enquanto vivente em sociedade, o homem deve empregar esforços no sentido de dar sua contribuição ao bem estar da coletividade em detrimento dos interesses unicamente individuais. Neste contexto, erige-se a teoria da função social, segundo a qual “todo indivíduo tem o dever social de desempenhar determinada atividade, de desenvolver da melhor forma possível sua individualidade física, moral e intelectual, para com isso cumprir sua função social da melhor maneira” (FIGUEIREDO, 2008, p. 83).

Esta concepção visa dar ênfase à importância da consciência de cada indivíduo enquanto ator no cenário da vida em sociedade. Somente a valorização da noção de trabalho em equipe, em prol do bem comum, respeitados os direitos individuais, tem o condão de garantir a paz e o bem estar social.

Guilherme José Purvin Figueiredo, embasado pela doutrina de Augusto Comte, esclarece o cerne da questão, ao afirmar que “o modo mais eficaz de assegurar a felicidade privada, segundo Comte, é pela procura ativa do bem público, a qual exige, necessariamente, a repressão permanente dos impulsos pessoais que possam suscitar conflitos contínuos”. (2008, p. 83). Trata-se, portanto, de restringir certos aspectos da liberdade humana, inclusive quanto aos seus direitos fundamentais, a fim de garantir a paz e o bem estar social.      

O transporte da teoria da função social para o âmbito do direito de propriedade evoca o dever atribuído ao proprietário de fazer uso de seus bens de forma a cumprir uma função social, ou seja, de forma que o exercício do direito de propriedade obedeça aos parâmetros legais e morais estabelecidos, no intuito de contribuir para o interesse coletivo.

A primeira noção de função social da propriedade foi concebida no início do século XX, por León Duguit. Em oposição às doutrinas individualistas sustentadas até então, o autor defendeu que a propriedade é uma instituição jurídica que, como qualquer outra, formou-se para responder a uma necessidade econômica e, neste ensejo, evoluiu de acordo com tais necessidades (DUGUIT, 1975, p. 235).

Nesta esteira, o autor francês fez dura crítica à concepção individualista da propriedade, sobretudo sobre a premissa de que somente concedendo ao possuidor um direito subjetivo absoluto sobre o bem é que poder-se-ia garantir a plenitude de sua autonomia individual (DUGUIT, 1975, p. 237).

Ao contrário, Duguit rejeitava a propriedade como direito subjetivo, atribuindo-lhe natureza de função, isto é, a ser utilizada a serviço da coletividade. Por este viés, a propriedade-função não detinha o caráter absoluto e intangível, e o proprietário era apenas o detentor de um bem, por sua vez pertencente à coletividade.

O conceito, no entanto, não se desenvolveu de maneira tão radical, ganhando contornos diversos, como bem assinalado por Celso Antônio Bandeira de Mello, litteris:

Estamos em crer que, ao lume do direito positivo constitucional, a propriedade ainda está claramente configurada como um direito que deve cumprir uma função social e não como sendo pura e simplesmente uma função social, isto é, bem protegido tão só na medida em que a realiza (1987, p. 41).

Como fundamento para esta conclusão, o autor argumenta que, nos termos do ordenamento jurídico pátrio, mesmo a propriedade que não cumpre sua função social também mereceu proteção, como é o caso da desapropriação por utilidade social, em razão da improdutividade do latifúndio. Assevera o autor, que se de fato a propriedade consistisse em função social, e não um direito subjetivo, não haveria sentido em se cobrar a correlativa indenização.

Vigorou, portanto, o entendimento de que a propriedade é direito subjetivo, que deve cumprir uma função social. De todo modo, a propriedade passa a ser vista como instrumento de apoio à consecução dos fins sociais, cuja essência é o seu serviço à coletividade(DERANI, 1997, p. 239). É dizer, mesmo constituindo-se em instituto voltado originariamente para a realização dos interesses individuais, a propriedade desempenha papel fundamental enquanto promotora dos interesses coletivos. Nas precisas palavras de Cristiane Derani a propriedade “inclusive enquanto fruição privadaé justificada como meio de alcance da felicidade social, pois o bem-estar individual deve levar também à felicidade coletiva” (1997, p. 239).

A propriedade, portanto, apresenta como componente indissociável a sua função social, enquanto dever imposto a cada sujeito de direito, público ou particular. Neste contexto, o ordenamento constitucional brasileiro, segundo Francisco Carrera, “retira literalmente a faculdade de “não uso”, que o proprietário exercia quando investido no domínio de seu imóvel”(2005, p. 100).

Não por acaso, a Constituição Federal erigiu como direito fundamental a garantia do direito de propriedade (artigo 5º, XXII), seguida imediatamente pela determinação de que a propriedade deve cumprir sua função social (artigo 5º, XXIII), transformando, assim, o elemento função social em elemento inerente ao exercício propriedade.

Desta forma, têm-se as primeiras linhas da relação entre a propriedade e a função social que lhe é inerente. Entretanto, para uma análise mais completa e que atenda aos desideratos deste trabalho, faz-se necessário percorrer os dispositivos constitucionais que tratam da matéria, no intuito de verificar como se manifesta a função social da propriedade. É o que se fará no próximo tópico.

2.2A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A função social da propriedade é matéria de ordem constitucional. Com efeito, o instituto está previsto em diversos dispositivos constitucionais, de sorte que se conclui pela elevada importância assumida pelo mesmo em nosso ordenamento jurídico.

A propriedade enquanto direito fundamental carrega consigo indissociavelmente o dever de cumprimento da sua função social. Nas subseções que se seguem, serão discutidos alguns dispositivos constitucionais em que a função social da propriedade intenta atuar como diretriz para o exercício de direitos constitucionalmente garantidos, enquanto elemento condicionante do direito de propriedade. Inicialmente, tratar-se-á da função social da propriedade enquanto princípio da ordem econômica, para após ser tratada enquanto princípio das políticas urbana e agrícola e fundiária.

2.2.1 Função social da propriedade como princípio da ordem econômica

Segundo o artigo 170 da Constituição Federal, a ordem econômica encontra fundamento na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, dentre outros princípios, o da propriedade privada e o da função social da propriedade.

A propriedade, na condição de direito fundamental, está elencada como princípio da ordem constitucional econômica, tendo em vista estar fortemente relacionada à satisfação das necessidades humanas primárias. Com efeito, conforme leciona Edson Luiz Peters, o direito de propriedade é condição sem a qual não se garante o direito maior à vida (2006, p. 125). Neste diapasão, se a finalidade da ordem econômica consiste em assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, não se pode olvidara propriedade, que garanta ao indivíduo o poder de uso e gozo sobre os bens de produção e consumo.

Mais ainda, por se tratarem de bens afetos à manutenção da vida humana, depreende-se que esses bens devem ser de acesso o mais facilitado possível aos indivíduos, “o que justifica até a intervenção do Estado no domínio da sua distribuição, de modo a propiciar a realização ampla de sua função social” (SILVA, 20002, p. 789). Em outras palavras, justamente a equitativa distribuição dos bens de consumo, enseja a intervenção estatal na propriedade, missão para a qual o Poder Público pode se valer da aplicação do princípio da função social da propriedade.

O desenvolvimento das atividades econômicas, portanto, necessita da utilização de bens de produção privados, os quais, no entanto, não poderão ser utilizados para fins meramente particulares. Devem, em verdade, atender ao interesse público, de forma a propiciar existência digna a todos, conforme ordenado pela Constituição Federal, para tanto, “buscando um equilíbrio entre o lucro privado e o proveito social” (DERANI, 1997, p. 238).

2.4.2 Função social da propriedade como princípio da política urbana

O regime da política constitucional urbana decorre da associação entre os artigos 182 e 21, XX, ambos da Constituição Federal. Com base nos citados dispositivos, a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme dire­trizes gerais fixadas em lei federal,in casu, a Lei 10.257/00 (Estatuto da Cidade),tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Evidencia-se no ordenamento constitucional os princípios da função social e da dignidade da pessoa humana, este sob a forma de bem estar dos habitantes das cidades. Transportando para o âmbito da propriedade privada urbana, e tendo em mente a função social no sentido de dever genérico de colaboração para a consecução do interesse coletivo, pode-se facilmente relacionar a função social da propriedade urbana como instrumento para o alcance do objetivo traduzido na garantia do bem estar dos habitantes.

Assim, observa-se que a propriedade privada urbana resta igualmente vinculada à sua função social. Com efeito, o artigo 182, § 2º, da Constituição Federal impõe expressamente o atendimento da função social da propriedade, sob os parâmetros a serem fixados pelos planos diretores dos centros urbanos.

Sobre o tema observa José Afonso da Silva:

Com as normas dos artigos 182 e 183 a CF fundamenta a doutrina segundo a qual a propriedade urbana é formada e condicionada pelo direito urbanístico a fim de cumprir sua função social específica: realizar as chamadas funções urbanísticas de propiciar habitação (moradia), condições adequadas de trabalho, recreação e circulação humana; realizar, em suma, as funções sociais da cidade (CF, artigo 182). (2008, p. 77)

O não atendimento da função social sujeita ao proprietário sanções de caráter restritivo, como o parcelamento compulsório, edificação compulsória ou o imposto predial territorial urbano progressivo no tempo (artigo 183, I e II, da CF); ou até mesmo punições que importem na perda da titularidade sobre o bem, mediante indenização paga com títulos da dívida pública, como é o caso da desapropriação-sanção (artigo 183, III, da CF). 

2.4.3 Função social da propriedade como princípio da política agrícola e fundiária

O texto constitucional consagra expressamente a função social da propriedade rural, quando, em seu artigo 186, dispõe:

 Artigo186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

O exercício da propriedade rural resta, portanto, condicionado ao cumprimento da função social que, in casu, manifesta-se no efetivo aproveitamento. Entretanto, o mero aproveitamento não basta por si só, mas necessita ser exercido de forma proveitosa ao interesse público.

Aspecto importante a ser salientado diz respeito à observação feita por Edson Luiz Peters, que comenta sobre a terminologia adotada pelo texto constitucional. Para o autor:

[...] é relevante o uso da expressão aproveitamento ao invés de produção, o que, por si só, sinaliza para a superação do produtivismo, entendido como o uso sem quaisquer limites até o exaurimento, a fim de se colher o máximo no menor tempo, não importando as conseqüências ou reflexos na prática [...](2006, p. 128).

A nuance terminológica implica traço marcante quanto a definição do conteúdo da função social da propriedade rural, especialmente quando associado à qualificação dada ao aludido aproveitamento, concernente aos complementos da racionalidade e adequação. Não basta aproveitar apenas, mas aproveitar de forma racional e adequada. Com isto, busca-se o aproveitamento da terra com grau máximo de eficiência, devendo ser respeitados ainda os limites da exploração, para que esta não se dê de forma a esgotar o potencial produtivo do bem.

Deve ainda ser atendido o critério da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente. Este critério relaciona-se com o instituto da função ambiental, enquanto dever genérico de preservar e defender o meio ambiente ecologicamente equilibrado, como forma de promover a sadia qualidade de vida, na esteira do princípio da dignidade da pessoa humana, para as presentes e futuras gerações.

Por fim, devem ainda ser respeitados os critérios de respeito às relações trabalhistas e da promoção do bem estar dos proprietários e trabalhadores.

O descumprimento da função social da propriedade rural tem como consequências a desapropriação-sanção prevista no artigo 184 da Constituição Federal, realizada para fins de interesse público (reforma agrária), mediante o pagamento de indenização em títulos da dívida agrária, resgatáveis em até 20 anos. 

Como se pode observar, portanto, o próprio exercício da propriedade está condicionado ao atendimento de sua função social, através da imposição de limites pelos textos normativos, inclusive o constitucional.

2.5FUNÇÃOSOCIAL DA PROPRIEDADE E LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS AO DIREITO DE PROPRIEDADE

Cumpre, ainda, tecer breves comentários acerca da distinção entre a função social da propriedade e o sistema de limitações administrativas ao direito de propriedade. O tema mostra-se controverso na doutrina brasileira, não cabendo no presente trabalho chegar-se a uma conclusão definitiva. Cabe, porém, apresentar alguns aspectos da matéria, sobretudo tendentes à tentar formular a distinção básica entre ambos os institutos.

À medida que implica em relativização e, por vezes, supressão de direitos individuais privados, sempre em prol do interesse coletivo, a função social da propriedade aproxima-se das limitações administrativas. Estas podem ser conceituadas como condutas realizadas pelo Poder Público, motivada por razões de interesse público,voltadas para adelimitaçãodo exercício dos atributos do direito de propriedade, isto é, o uso, gozo e disposição.

As limitações administrativas, cujas espécies são restrições, servidões e desapropriação, divergem das imposições aplicadas em decorrência do descumprimento da função social da propriedade precisamente no que diz respeito ao seu objeto. Explica-se: o objeto atingido pelas limitações administrativas consiste no exercício do direito de propriedade, quanto aos atributos de uso, gozo e disposição, quando necessário ao interesse público. Em oposição, aloca-se a função social da propriedade, a qual consiste em elemento integrante do próprio direito de propriedade e tem por objeto a modificação de sua estrutura, para flexibilizar o uso ilimitado e incondicionado da propriedade.

Vale dizer, a função social representa elemento indissociável da estrutura do direito de propriedade e, neste mister, a legitima e condiciona. Desta feita, impõe-se que o descumprimento da função social enseja a restrição ao bem, não ao direito de propriedade, pois este restaria desconfigurado, ante a ausência do elemento da função social, ensejando assim a intervenção estatal com vistas a dar ao bem aproveitamento adequado aos fins coletivos.       

Márcia Leuzinger e Sandra Cureauassim se manifestam sobre a questão:

Para Roger Raupp Rios (1995), José Afonso da Silva (1990) e Antônio Herman Benjamim (1993), função social da propriedade não se confunde com limitações administrativas ao direito de propriedade, decorrentes do exercício do poder de polícia, pois estas “dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário; aquelas, à estrutura do direito mesmo, à propriedade.” (LEUZINGER; CUREAU, 2008, p. 34)

Portanto, em que pesem opiniões contrárias, como a de Maria Sylvia Zanella di Pietro, citada por Márcia Leuzinger e Sandra Cureau, para quem “todas as formas de restrição ao exercício do direito de propriedade derivam da função social da propriedade, caracterizando-se como limitações administrativas”, (2008, p. 34) a concepção mais aceita é a apresentada por Guilherme José Purvin de Figueiredo, aproveitando-se da lição de Orlando Gomes, para quem “as limitações atingem o exercício do direito de propriedade, não a sua substância”, (FIGUEIREDO, 2008, p. 104) e por isso não se confundem com a função social da propriedade.

2.6FUNÇÃOSOCIAL DA PROPRIEDADE: PRINCÍPIO?

A função social da propriedade é frequentemente tratada como um princípio jurídico, tal como em diversos dispositivos da Constituição Federal de 1988.Esta natureza, contudo, implica em consequências que merecem observações para fins da análise ora proposta. Nesse sentido, vale examinar há adequação da noção de função social da propriedade estabelecida no direito brasileiro e a moderna concepção de princípio jurídico.

Neste contexto, lembre-se que a definição o instituto passou por três fases, conforme a exposição de MARTINS, in litteris:

Na primeira fase aproximava-se do significado comum da palavra: princípios eram os fundamentos de uma dada disciplina jurídica, seus aspectos mais importantes. Na segunda fase adquire significado técnico: princípios deixam de ser todo assunto importante e geral, e passam a ser determinados enunciados do direito positivo, dotados de extraordinária importância para o entendimento de todo o sistema, diante da alta carga valorativa a eles atribuída. Têm conteúdo normativo, pois fazem parte do sistema jurídico, são diretrizes ou vetores de interpretação de todas as normas jurídicas extraídas do sistema, mas não são normas jurídicas autônomas, não têm a estrutura própria das normas jurídicas. Vigora na Teoria Geral do Direito a terceira fase do conceito de princípios jurídicos: estes têm estrutura lógica de normas jurídicas (2008, p. 27/28).  

Como se nota, atualmente vige a concepção referente à terceira fase. A doutrina preconiza, em linhas gerais, que os princípios, ao lado das regras, são espécies de normas jurídicas. Neste sentido, apresentam a estrutura lógica em que se descreve uma hipótese no antecedente, a qual, uma vez ocorrida, implica na incidência dos efeitos previstos no consequente. Regras e princípios diferem, no entanto, quanto à sua incidência. Conforme explica RICARDO MARCONDES MARTINS, “tanto as regras quanto os princípios são padrões que apontam para decisões particulares, distinguindo-se, entretanto, na natureza da orientação que oferecem” (2005, p. 241).

Tal distinção consiste na incidência da regra do tudo-ou-nada, à qual estão suscetíveis somente as regras, não os princípios. Na descrição desta regra, explica DWORKIN que:

[...] as regras são aplicadas à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos, que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e nesse caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. (DWORKIN, apud MARTINS, 2005, p. 241).  

A noção apresentada evidencia que não há meio termo na aplicação da regra. Ou a mesma é válida ou não. Em sendo válida, uma vez ocorridos os fatos descritos na hipótese, deverá ser aplicada, a menos que incida em exceção previamente estabelecida pelo sistema. Ao contrário, se for inválida, não deverá ser aplicada.

O mesmo não acontece com os princípios, pois estes, conforme MARTINS, sintetizando o pensamento de DWORKIN, “não descrevem eventos que, se ocorridos no mundo fenomênico, impliquem na necessária aplicação do exigido pelo princípio”, pois “diante do caso concreto pode haver outro princípio ou outra política que conduza o argumento em direção oposta” (2005, p. 242). Para uma melhor elucidação, cumpre transcrever as palavras do próprio DWORKIN:

Se assim for, nosso princípio pode não prevalecer, mas isso não significa que não se trate de princípio de nosso sistema jurídico, pois em outro caso, quando essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem menor força, o princípio poderá ser decisivo. Tudo o que pretendemos dizer, ao afirmarmos que um princípio particular é um princípio de nosso direito, é que ele, se for relevante, deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como se fosse uma razão que inclina numa ou noutra direção (DWORKIN, apud MARTINS, 2005, p. 242).

Do enunciado já se pode antever a segunda característica que diferencia regras e princípios, atinente às diferentes dimensões de peso atribuídas aos princípios. Assim, se as regras têm sempre pesos idênticos, em eventual conflito entre duas delas, necessariamente uma terá de ser declarada inválida. Diferentemente ocorre com os princípios, os quais podem ter pesos diferentes e, em eventual contraposição, o princípio mais pesado ou mais relevante afastará a incidência do outro sem, contudo, implicar na exclusão deste último do sistema jurídico ou a existência de exceção previamente estabelecida.    

Após a análise da doutrina de DWORKIN, já é possível identificar com clareza a distinção entre regras e princípios. Para a consecução dos objetivos do presente trabalho, cumpre afastar a análise das regras e concentrar como objeto do estudo os princípios. Neste mister, cumpre associar às características dos princípios até o momento identificadas, outro traço marcante em sua aplicação, estabelecido por ALEXY, consistente na lei da ponderação.

Para ALEXY, “princípios são mandados de optimização que ordenam que algo deva ser realizado na maior medida possível de acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas” (ALEXY, apud MARTINS, 2005, p. 252). Assim, num eventual conflito entre princípios a solução será atingida por meio de um juízo de ponderação em que “quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior tem que ser a importância da satisfação do outro” (ALEXY, apud MARTINS, p. 252). A decisão, que sempre envolverá juízo de valor do aplicador, deve ser fundamentada, motivada de forma racional, para que seja reduzido o grau de subjetivismo.

Feita essa exposição sobre a moderna concepção de princípios jurídicos, sobrevém a indagação sobre a natureza da função social da propriedade. Com efeito, nos moldes forjados pela Constituição Federal de 1988, seria ela um princípio?

A resposta parece ser negativa. Com efeito, a aplicação da função social da propriedade, segundo as normas constitucionais, não admite ponderações. Não se coteja um suposto princípio da função social da propriedade com outros princípios que poderiam, supostamente, em determinados casos concretos, ter pesos superiores ou inferiores.

Ao contrário, para que determinado sujeito tenha o seu direito de propriedade restringido com base na função social da propriedade é necessário cumprir os requisitos previamente estabelecidos e bem definidos na Constituição Federal e em leis infraconstitucionais, como, por exemplo, a desapropriação por utilidade pública ou interesse social, ou seja, a matéria é regida por regras, e não por princípio.

Uma vez presentes os requisitos, não é dado ao Administrador ponderar, mas apenas aplicar a norma. A simples previsão constitucional de que a propriedade deve cumprir sua função social não é suficiente para dar eficácia ao instituto. Logo, repita-se, não é adequada a terminologia que utiliza a expressão princípio para se referir à função social da propriedade.

Sobre o autor
Eduardo Rodrigues Evangelista

Mestrando em Direito do Estado pela PUC/SP. Advogado nas áreas de Direito Administrativo e Tributário na Advocacia Waltenberg.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EVANGELISTA, Eduardo Rodrigues. A função social da propriedade e o conceito de princípio jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3628, 7 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24656. Acesso em: 23 dez. 2024.

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