A Proposta de Emenda Constitucional 37, sobre o poder investigatório do Ministério Público, tem provocado debates acalorados. Algumas associações ligadas ao Ministério Público passaram a chamar o projeto de “PEC da Impunidade”. O debate é antigo e desperta paixões. Contudo, não pode ser feito de forma maniqueísta. É necessária uma análise criteriosa do assunto, na busca de uma posição sintonizada não só com os anseios da sociedade, mas também com as regras e princípios contidos na Constituição Federal. Os favoráveis à aprovação da PEC alegam que a investigação criminal é tarefa da Polícia Civil Estadual e da Polícia Federal, que estaria sendo usurpada pelo MP. Os contrários defendem que o MP, quando entender cabível e necessário, poderá investigar mediante procedimento administrativo próprio. A discussão travada não é das mais simples. Existem argumentos sólidos dos dois lados.
O debate em questão aportou, pela primeira vez, no Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 77.371-SP. Na ocasião, o STF entendeu que nada impedia o MP de fazer a oitiva de testemunhas antes do oferecimento da denúncia. Posteriormente, em outro precedente, o STF externou entendimento oposto. No acórdão que julgou o RE 205.473-9/AL, restou expressamente consignado que não cabe ao membro do MP realizar, diretamente, investigações, mas requisitá-las à autoridade policial, competente para tanto. A discussão prosseguiu. Em 1999, o Supremo voltou a decidir que o MP não tem “competência para produzir inquérito penal sob o argumento de que tem possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos”, ressalvando a possibilidade de “propor ação penal sem o inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes”. O caso foi analisado no RE 233.072-4/RJ.
Em 2003, o tema foi novamente decidido pelo STF no RHC 81326-7/DF. A corte concluiu que “a norma constitucional não contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime. Mas requisitar diligência nesse sentido à autoridade policial”. A matéria finalmente chegou ao plenário no julgamento do Inquérito 1968 – DF. A discussão, que envolvia um deputado federal maranhense investigado por desvios no Sistema Único de Saúde, levou o STF a novamente examinar a legalidade das investigações pelo Ministério Público Federal. O julgamento não se encerrou face à extinção do mandato parlamentar. Contudo, os ministros Joaquim Barbosa, Eros Grau e Carlos Britto votaram pela admissão dos poderes de investigação do MP. Prosseguindo com o debate, o Supremo, em diversos precedentes, reconheceu a possibilidade do MP realizar investigações. Dentre tais julgados, podem ser citados os seguintes HC 84.965, RE 468.523 e HC 94.173.
Hoje, a matéria é discutida no RE 593.727, que tem repercussão geral. O último andamento do processo registra que, em 19 de dezembro de 2012, em voto-vista, o ministro Luiz Fux, negou provimento ao recurso, reconhecendo a legitimidade do poder investigatório do MP. O ministro Marco Aurélio pediu vista. Antes disso, em 27 de junho de 2012, o ministro Cezar Peluso, reconheceu a competência do MP para realizar diretamente atividades de investigação da prática de delitos, para fins de preparação e eventual instauração de ação penal apenas em hipóteses excepcionais e taxativas. Ele foi acompanhado por Ricardo Lewandowski. Os ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello, Ayres Britto e Joaquim Barbosa também reconheceram base constitucional para os poderes de investigação do MP.
A Constituição não estabelece que a atividade investigatória é privativa da Polícia, não sendo recomendável emendá-la para incluir tal previsão. Vale lembrar que o Código de Processo Penal, em seu art. 4º, § único, afirma a competência da Policia para a apuração das infrações penais e da sua autoria, mas não exclui a competência de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função. Ao contrário do que defendem alguns, o art. 144, § 1º, inciso IV, da Constituição não inibe a atividade de investigação criminal do Ministério Público e tem por única finalidade conferir à Polícia Federal, dentre os diversos organismos policiais que compõem o aparato repressivo da União Federal, primazia investigatória na apuração dos crimes previstos.
Contudo, o poder de investigar do MP, embora admitido pela Constituição, como reconhecido na jurisprudência do STF, não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita. Não é dado o MP substituir a atividade policial incondicionalmente, devendo a atuação dar-se de forma subsidiária e em hipóteses específicas.
A PEC 37 reacendeu uma discussão viva nos Tribunais. E deu à sociedade a oportunidade de refletir sobre a matéria. O tema é complexo. O modelo atual não é satisfatório. Contudo, a PEC 37 é bem pior. Efetivamente, temos abusos cometidos tanto pela polícia quanto pelo MP na fase investigatória. O problema não consiste em saber quem investiga, mas sim quais são os controles exercidos sobre a investigação e como são assegurados os direitos dos investigados. Esse é verdadeiro debate que precisa ser feito. É preciso, ainda, avançar em temas como a inclusão do direito fundamental do acusado à investigação defensiva, que se fundamenta tanto no direito à prova defensiva quanto na garantia da paridade de armas.