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Do recurso em sentido estrito: por uma releitura crítico-democrática do Código de Processo Penal

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Agenda 02/07/2013 às 14:10

Retirar a possibilidade de rediscussão do tema mediante recurso em sentido estrito significa impor ao acusado uma realidade pressuposta na mente do julgador, o qual, ao rejeitar as alegações e pedidos da defesa, reduz o espaço de influência assegurado pelos princípios da ampla argumentação e contraditório.

Resumo: Este artigo apresenta argumentos críticos que viabilizem uma releitura do direito ao recurso em sentido estrito compatível com a amplitude do direito à defesa técnica e, sobretudo, com a regularidade e efetividade do devido processo legal como garantia inarredável da participação cidadã na conformação do direito. A proposta é, portanto, reconhecer que a decisão, seja judicial ou administrativa, em direito democrático, deve ser fruto da participação dialógica entre os legitimados ao processo. Com efeito, é essencial que se assegurarem aos atores processuais a igualdade interpretativa, a simétrica paridade de armas e um tempo processual razoável à elaboração de uma defesa integral e técnica, que pressupõe a ampla argumentação e irrestrita recorribilidade.

Palavras-chave: Recurso em Sentido Estrito. Releitura. Direito democrático. Ampla recorribilidade.

Sumário: Introdução. 1. A teoria neoinstitucionalista: por uma democratização do processo penal recursal. 2. Do direito à Defensoria Pública e ao recurso no âmbito penal. 3. Da limitação antidemocrática ao cabimento do recurso em sentido estrito. 4. Por uma filtragem constitucional da sistemática recursal penal. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO

A analise da extensão constitucionalmente adequada do art. 581 e seguintes do Código de Processo Penal Brasileiro, com a redação dada pela Lei n. 11.689/2008, que disciplinam o recurso em sentido estrito e suas consequências para o sistema de garantias da defesa, afigura-se imprescindível para a verificação da regularidade constitucional, portanto, democráticas das decisões adotadas pelo juízo penal.

Pretende-se perquirir a recepção constitucional do princípio da recorribilidade estrita das decisões interlocutórias adotadas no curso do procedimento penal, tendo como norte os princípios processuais e as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório, da ampla argumentação, da isonomia e do direito à defesa, na perspectiva das teorias do processo como procedimento em contraditório (GONÇALVES) e neo-institucionalista de processo (LEAL), cruciais ao acesso ao direito. Nesse ponto, apresenta-se a tese da ampla refutabilidade e recorribilidade das decisões penais que, de certa forma, prejudiquem ou agravem a situação jurídica de acusado, como decorrência do direito à ampla argumentação e fiscalização irrestrita dos atos estatais pelas partes legitimadas ao processo.


1. A teoria neoinstitucionalista: por uma democratização do processo penal recursal

O modelo constitucional de Processo, na perspectiva da teoria neoinstitucionalista, de base uníssona e tipologia plúrima, centra-se na premissa de quem garantia do devido processo legal perpassa pela construção comparticipada do provimento jurisdicional, via contraditório concreto e efetivo e direito impostergável à ampla argumentação, servindo-se de contraponto e limite ao poder interdital do órgão público decisor.  Com efeito, propõe-se uma releitura das bases legais do recurso em sentido estrito, de sorte a afirmar a possibilidade de seu manejo em face de decisões interlocutórias e/ou com força de definitiva ainda que não referidas no rol estrito do art. 581 do Código de Processo Penal.

Isso porque, exsurge incompatível com o paradigma de direito democrático, admitir que o legislador infraconstitucional escolha quais atos estatais poderão ser alvo de resistência pelo cidadão, e quais estão imunes à crítica, mesmo que para isso, a pretexto de garantir a falaciosa efetividade do processo como efetividade da jurisdição, seja necessário minimizar, ou quiçá, anular conquistas teóricas relevantíssimas em matéria de direitos fundamentais, operacionalizando-se uma jurisdição justiceira por meio da disseminação do fetiche da justiça rápida[1]. E, desta forma, negar a supremacia das normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais.

Nessa perspectiva, é essencial à legitimidade e constitucionalidade do procedimento penal que seus provimentos, além de serem fruto de um “esforço reconstrutivo do caso concreto pelas partes afetadas” (BARROS, 2009, p. 109), sejam conformados à estrutura do processo como constitutivo de direitos fundamentais. Assim, a legislação infraconstitucional não tem aptidão para limitar os direitos fundamentais ao contraditório e à ampla argumentação e impedir o direito ao recurso, tido como consequência imediata do direito à defesa (art. 5.º, LIV e LV, da CRFB).


2.  Do direito à Defensoria Pública e ao recurso no âmbito penal

A Constituição da República assegura ao acusado, alvo da persecução criminal, o direito ao devido processo legal e seus princípios institutivos do contraditório, ampla defesa/argumentação, isonomia e direito à defesa técnica, e impõe um sistema penal acusatório (art. 5.º, LIII, LIV; LV e §1º, da CRFB). Isso significa dizer que a fala jurídica do acusado, por meio de seu Defensor, em qualquer fase do procedimento penal é indispensável a sua regularidade constitucional.

O direito à defesa técnica, além de imanente ao devido processo legal, é direito reconhecido por vários tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos, cuja aplicabilidade é imediata em território nacional uma vez ratificado pelo Brasil. Sobre o tema, apenas a título ilustrativo, dispõe a Convenção Americana de Direitos Humanos fazer jus o acusado ao “direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei”.

Assim, instalada a Defensoria Publica no local onde tramita o inquérito ou o procedimento judicial, a defesa do acusado que não constituiu Advogado, cabe, em caráter de exclusividade, ao Defensor Público.

A toda evidência, a defesa, seja viabilizada pela Defensoria Pública, a quem a Carta de 1988 outorgou a função de assistir juridicamente os necessitados, seja pela advocacia, apresenta papel crucial nesse movimento pela democratização das normas inerentes ao procedimento penal, sobretudo, diante de seu poder-dever de influência, participação e fiscalização dos provimentos jurisdicionais.

Desta forma, o direito ao recurso deve ser encarado como conseqüência imediata e indissociável do direito à defensoria pública, à ampla defesa técnica; ao contraditório e ao duplo grau jurisdicional, afirma Nunes (2006, p. 163). Sem recurso, isto é, sem possibilidade de contradizer e resistir a um provimento jurisdicional desfavorável, inviabilizada estará a ampla defesa do acusado e, assim, desatendido o modelo constitucional de processo, que pressupõe, dentre outros, ampla argumentação.


3. Da limitação antidemocrática ao cabimento do recurso em sentido estrito

O Código de Processo Penal ao limitar a possibilidade de recurso em sentido estrito (RSE) a um rol, majoritariamente, taxativo de decisões, tolhe o direito da parte de fiscalizar o acerto e o erro desse ato estatal, ampliando, em contrapartida, o poder interdital do magistrado na condução do procedimento e sujeitando alguns de seus atos a um espaço, diga-se de passagem, antidemocrático, imune à crítica.

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Nessa medida, propõe-se uma releitura das normas legais atinentes ao recurso em sentido estrito, de modo a permitir uma exegese compatível com o paradigma do Estado Democrático de Direito, segundo o qual cabe ao cidadão, enquanto parte legitimada ao processo, participar de todas as fases do procedimento, de maneira a influir, formar, gerir e resistir aos atos processuais, em igualdade de participação em relação à parte contrária.

Desta feita, qualquer decisão interlocutória e/ou com ânimo de definitividade que não resolva o mérito da lide, deve ser atacada por meio de recurso em sentido estrito. Nesse ponto, merece esclarecer que decisões com força de definitiva ou interlocutórias mistas terminativas são aquelas que extinguem o procedimento, sem adentrar no mérito da pretensão punitiva estatal, bem como aquelas que decidem questões incidentes de maneira definitiva, sem possibilidade de seu reexame pelo mesmo órgão julgador, explica Denilson Feitoza Pacheco (PACHECO, 2005, p. 1274).

A reforçar tal intelecção, segundo a qual o recurso cabível é o em sentido estrito, a Lei n. 11.689/2008 extirpou do rol do indigitado dispositivo legal as decisões de impronúncia e absolvição sumária (que apresentam natureza de sentença dado que resolvem o mérito da lide), fato que reafirma, em uma análise adequada ao direito pós-moderno, o cabimento do recurso em apreço para rediscussão de matéria que guarde relação com questões incidentes no curso da demanda penal e afasta o uso do recurso de apelação (porque não se está diante de decisão definitiva de condenação e/ou absolvição), em precipitada interpretação do art. 593, II, do citado diploma legal.

Por isso, resta clara que a nova redação do art. 581 do CPP não se harmoniza com o Estado Democrático de Direito em duas vertentes passíveis de análise, a saber: primeira, restringe o direito de defesa do acusado via recurso em sentido estrito às hipóteses numerus clausus que anuncia e, segunda, impede o acesso ao direito naquelas situações jurídicas em que descabe tanto o RSE como o habeas corpus e o mandado de segurança criminal.

Além do mais, cabe ressaltar que nem todos os casos em que inadmitido o RSE, o manejo tanto de habeas corpus (quando se tutela imediatamente a liberdade deambulatória) como de mandado de segurança criminal (para tutela de direitos líquidos e certos) seja procedimento adequado à rediscussão do provimento jurisdicional, exatamente porque são demandas de espectro limitado à incontrovérsia fática da pretensão que veiculam. Por exemplo, quando o acusado pretende rediscutir decisão que indefere meio de prova, e justifica sua imprescindibilidade na possibilidade de demonstrar sua inocência, acaso não comprovada a certeza de sua eficácia enquanto meio de prova, não há que se falar em incontrovérsia fática hábil a ensejar algum desses remédios. Assim, resta criado um espaço de não decidibilidade e tutela do direito pelo processo, em flagrante violação de direitos fundamentais do acusado, mormente o de acesso ao direito (art. 5º. XXXV da CRFB).


4.  Por uma filtragem constitucional da sistemática recursal penal

O Código de Processo Penal tem suas bases fixadas no sistema inquisitório e fascista, de inspiração germânica, no qual o decididor, aqui, Estado-juiz, está umbilicalmente comprometido, de um lado, com a apuração e comprovação dos fatos objeto da persecução penal, como se parte interessada no êxito da pretensão punitiva fosse e, de outro, com um decidir sempre solitário e imune a qualquer interferência discursiva externa.

Para tanto, foram idealizados poderes amplos e irrestritos de iniciativa de persecução, instrução (“dever” de alcançar a “verdade real”) e decisão, concentrados nas mãos de um homem pré-destinado à descoberta de uma verdade enxergada por poucos privilegiados, à feitura do bem e ao alcance da ilusória paz social, o juiz (LEAL, 2002, p. 112).

A proposta de reformulação ou, até mesmo, de recodificação da teoria processual penal fortaleceu-se com o advento da Constituição de 1988, que, ao imprimir contornos democráticos ao exercício da função jurisdicional e definir nova estrutura ao sistema acusatório brasileiro, qualificada de garantista (pois calcada no status libertatis, no princípio da inocência e no devido processo legal), impôs, além de uma adequação interpretativa das normas procedimentais ao texto constitucional, uma mudança de paradigma (do estado social e liberal para o democrático procedimentalizado), em que a participação do cidadão deve ser precedente legitimante de qualquer decisão.

Nessa perspectiva, o estudo da teoria dos recursos, com ênfase na sistemática do recurso em sentido estrito, apresenta-se de fundamental importância para a efetividade do devido processo legal e da amplitude do direito de defesa no procedimento penal, eis que “há de se assegurar o processo, tal qual esclareceu Fazzalari, em todo o cronograma de produção, atuação e aplicação da legalidade” (LEAL, 2002, p. 112).

O modelo constitucional de Processo, como referido alhures, define-se a partir da combinação dos princípios do contraditório, da ampla defesa, da isonomia, da fundamentação das decisões, da participação do terceiro imparcial que formam uma base principiológica uníssona (devido processo legal) de tipologia plúrima, segundo a qual o processo funciona como instituto garantidor de direitos fundamentais e reitor inafastável da legalidade e legitimidade dos atos estatais. É por meio do processo, que o cidadão participa da tomada de decisão e fiscaliza a atuação dos órgãos estatais, que desempenham funções fundamentais no Estado brasileiro, enfim, são criados, exercitados, modificados e extintos direitos constitucionalizados.

O princípio do contraditório, em direito democrático, além da mera bilateralidade da audiência e possibilidade jurídica de contradizer, pressupõe a efetiva participação na formação da decisão por meio da influência e garantia de não-surpresa, ensina Barros (2009, p. 18). A aceitabilidade racional da decisão, então, decorreria da verificação no corpo do provimento das alegações das partes, que deverão ser fundamentadamente acatadas ou repelidas pelo órgão público decisor.

A seu turno, a ampla defesa consiste, em linhas gerais, no direito da parte afetada de suscitar, discutir, resistir, enfim, argumentar livremente, com o fito de participar, em simétrica paridade em relação à parte ex adversa e ao julgador, da formação e revisitação do provimento, em tempo processual oportunizado pela lei. Da mesma maneira, também lhe é assegurado o direito ao amplo requerimento de prova e à assistência de Defensor Público ou Advogado (BARROS, 2009, p. 21).

Nesse ponto, cabe assinalar que o direito do acusado à Defensoria Pública é imperativo inarredável do sistema democrático, sem o qual não há que se falar em validade e legitimidade da sanção penal eventualmente dotada. Por isso, o Código de Processo Penal, em sintonia com a Lei Orgânica da Defensoria Pública, impõe a comunicação a esta Instituição de defesa pública das prisões em flagrante daqueles que estejam desprovidos de advogado.

A isonomia congrega a igualdade para criticar, no sentido popperiano, a lei; a igualdade de interpretar a lei, já que as partes e o julgador estão em posição homotópica; e a igualdade legal.

Nessa quadra, o direito ao recurso possibilitaria uma inafastável e irrecusável “intervenção das partes e um diálogo destas com o juízo todas as vezes que a decisão recorrida não tenha levado em consideração o seu contributo crítico” (NUNES, 2006, p. 163). Então, caberia ao recurso, continua Dierle Nunes (2006) fomentar e estruturar um “espaço procedimental discursivo”, no qual se viabilizaria, além da intervenção efetiva e comparticipada dos interessados na lide e seus provimentos, o “controle da falibilidade do sistema processual”. (NUNES, 2006, p. 60).

A fiscalidade irrestrita da constitucionalidade dos provimentos é decorrência da participação discursivo-construtiva das partes envolvidas no conflito (agentes de efetivação da cidadania (LEAL, 2002, p. 109-111)) e, amiúde, das bases democráticas do Estado. Assim:

(...) não se pode conceber que o magistrado, que recebe do Estado, mesmo no paradigma liberal, a ordem-dever de aplicar direitos, possa ter faculdades ou poderes de ditar o direito ao seu alvedrio ou sentimento se, como ressaltado, sequer o Estado tem, nos sistemas democráticos atuais, arbítrio ou discricionariedade no cumprimento de sua função jurisdicional. Está também a instituição do Estado, como pessoa de direito público interno e externo, passível de controle pelo processo que, em última análise, é a expressa afirmadora dos direitos fundamentais da cidadania processualmente criados pela soberania popular para construção da Sociedade Democrática de Direito, com ampla reafirmação nos ordenamentos supranacionais das Comunidades (Tratados) (g.n., LEAL 2009, 39).

O art. 581 do Código de Processo Penal restringe, sobremaneira, o direito à defesa, na medida em que define quais provimentos jurisdicionais poderão ser reexaminados, mediante provocação da parte. Machado (2009) ensina:

Como a própria nomenclatura já revela, o recurso em sentido estrito se destina à impugnação de decisões que se referem a apenas alguns aspectos do processo e não à totalidade da causa. De modo que, por meio desse recurso, não há a possibilidade de reexame de todas as questões de direito e de fato que compõem a lide penal. [...] O recurso stricto sensu, basicamente, destina-se à revisão das decisões interlocutórias, mais ou menos nos moldes do que ocorre com o agravo de instrumento no processo civil. Como os despachos de expediente são irrecorríveis, e as sentenças definitivas de mérito, que absolvem ou condenam o réu, são objeto do recurso de apelação, as decisões interlocutórias, simples ou mistas, é que são mesmo, em regra impugnáveis por meio do recurso em sentido estrito. [...] As hipóteses em que é cabível o recurso stricto sensu estão elencadas no art. 581 do CPP e entende-se que o rol desse artigo é taxativo (MACHADO, 2009, p. 611-613).

E reforça Greco Filho (1991): “o rol legal é taxativo, não comportando ampliação por analogia, porque é exceptivo da regra da irrecorribilidade das interlocutórias” (GRECO FILHO, 1991, p. 320).

Para os demais casos [não referidos no supracitado dispositivo legal], restaria, em última análise, apenas o descontentamento pessoal da parte em relação à decisão proferida, quando inviável a sua rediscussão por habeas corpus ou mandado de segurança. Nesse sentido, esclarece Mirabete (2002), para quem: "O indeferimento de exame pericial ou sua renovação não é constrangimento ilegal e não comporta recurso. Só pode ser desfeito pela via de reconsideração ou de mandado de segurança, se presentes seus requisitos." (Mirabete, 2000, p. 442). Admitir esse espaço vazio de decidibilidade e refutabilidade é negar eficácia ao direito ao acesso à tutela jurisdicional, além de perpetuar a violação ao direito à defesa e impedir um tempo adequado para o desenvolvimento do esforço reconstrutivo do caso pelas partes envolvidas, dentro do recinto jurídico-discursivo, procedimentalizado que é o processo.

Por outro lado, há que se levar em consideração que os remédios constitucionais são garantias que devem ser utilizadas apenas quando a legislação infraconstitucional não indicar medida jurídica para contornar a violação dos direitos do acusado, in casu, quando não houver previsão de recurso específico.

A Lei fundamental brasileira juridifica (constitucionaliza no sentido de co-institucionalizar) inúmeros institutos, atribuindo-lhes igual importância, mediante o estabelecimento de um plano poliárquico de atuação.

Desse modo, o Estado (decisor e acusador) “não é mais o todo do ordenamento jurídico, mas está no ordenamento jurídico em situação homotópica (isonômica) com as outras instituições” (LEAL, 2009, p. 38) [Defensoria Pública] e, assim, no plano processual, está submetido à demonstração de seus direitos como qualquer outra parte, livre de privilégios ou preferências hegelianas. Com efeito, a deflagração das citadas ações constitucionais se por um lado corrigiria algumas distorções inerentes a decisões judiciais não atacáveis, de imediato, por RSE, por outro lado, sobrepujariam o contraditório e a simétrica paridade em cotejo com a parte contrário/acusador, eis que nesses tipos de demandas, nem sempre será franqueada a participação deste, sobretudo quando ostentar a qualidade de querelante.

Entrementes, atendido estaria o contraditório, nessas situações, se ao invés do remédio constitucional fosse aviado o RSE, e franqueada a fala do contendor consubstanciada no respectivo contrarrazoado.

Da mesma forma, inviável o manejo de apelação, para os casos em que descabido o RSE, já que é recurso voltado a atacar decisões definitivas que resolvem o mérito da demanda penal (seja para condenar, seja para absolver o réu) e, em cotejo com o iter procedimental do RSE, é mais gravoso ao acusado, posto que não lhe é assegurado o efeito regressivo. A Constituição da República ao prescrever a irretroatividade da lei penal e ressalvar apenas às hipóteses em que a aplicação da lex posteriori beneficie o acusado, sinaliza por uma exegese das normas infraconstitucionais com essa mesma finalidade. Assim, aviado o RSE, o acusado teria nova oportunidade para reabrir o debate processual acerca da matéria decidida e lograr modificar a decisão recorrida pelo mesmo julgador, com substancial economia de tempo processual.

Por essas razões, também se impõe a supressão dos poderes de atuação irrestrita e ex officio do julgador (v.g., imunidade crítico-discursiva de parte das decisões interlocutórias proferidas no curso do procedimento penal), decorrentes em boa parte do princípio autoritário (NUNES, 2009, p.58-59), porque dissonantes do paradigma democrático, pelo qual a distribuição, especificação e delimitação das funções fundamentais do Estado (legislar, julgar, acusar e defender) são acometidas a instituições, previamente estabelecidas no texto constitucional e cujos poderes decorrem do sistema de garantias fundamentais definidoras do modelo constitucional de Processo. E desautoriza o legislador a impor restrições ao direito de defesa e à capacidade ampla de recorribilidade dos provimentos jurisdicionais pelas partes interessadas.

A proposta, então, seria reconhecer o direito do acusado de recorrer, de imediato, de qualquer decisão interlocutória e/ou com força de definitiva que lhe prejudique, e, dessa forma, condicionar o exercício da jurisdição na solução dos conflitos e validar a tutela judicacional.

Mais especificamente, reafirmar o processo como instituto estruturante e essencial à tomada de decisão, em que a “isonomia dos interlocutores em contraditório se exercite pelos aspectos isotópicos (igualdade perante a lei), isomênicos (igualdade de interpretar a lei) e isocríticos (igualdade para destruir ou recriar a lei)”, como propõe Leal, (2002, p. 109). É de se assegurar um tempo processual e um meio de impugnação específico para que a defesa possa exercer em amplitude a sua tarefa de reconstrução constante do caso e efetiva participação na formação do provimento final, garantindo, assim, com efetividade, direitos fundamentais do cidadão (“cidadania com participação consciente nas esferas de decisão”,(CATTONI DE OLIVEIRA; MACHADO, 2009, p. 353)), através do processo como mola propulsora do Estado Democrático de Direito (LEAL, 2009, p. 96-98).

Desta feita, repise-se, busca-se uma interpretação constitucional da nova redação do art. 581, do CPP adequada ao processo, como garantia constitutiva de direitos. Por um lado, essa nova redação reconhece que o RSE serve, tão-somente, para impugnar decisões interlocutórias, e não mais sentenças, ao estabelecer que os provimentos que veiculam absolvição sumária e impronúncia devem ser atacadas por apelação. Por outro, perpetua a flagrante incompatibilidade material com o modelo constitucional de Processo, já que restringe o direito ao recurso aos casos que enumera.

Nesse contexto, não cabe ao judiciário por meio do direito penal tentar impingir uma ética inerente ao Estado Liberal de Direito [ao impedir a rediscussão da matéria via recurso] e formatar o acusado a um modelo subjetivo [“normal”], pressuposto na mente prodigiosa do julgador[2] que exprime a ideologia das classes dominantes.

A defesa deve funcionar como freio à atuação desmedida e arbitrária do decididor descompromissado com os imperativos do Estado Democrático de Direito, já que, enfatize-se, é inconciliável com a sociedade democrática, cuja pluralidade decorre de sua essência, a definição de um modelo universal de conduta, em que inviável a coexistência de diferenças pelo exercício consciente e livre dos direitos fundamentais. Retirar a possibilidade de rediscussão do tema mediante RSE significa impor ao acusado uma realidade pressuposta na mente do julgador, o qual ao rejeitar as alegações e pedidos da defesa, como, v.g., de realização de certa diligência tida como importante para a demonstração de inocência do réu, reduz o espaço de influência assegurado pelos princípios da ampla argumentação e contraditório.

Sobre o autor
Leonardo Cardoso de Magalhães

Defensor Público Federal, mestrando em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento na Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha/Espanha e Especialista em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Leonardo Cardoso. Do recurso em sentido estrito: por uma releitura crítico-democrática do Código de Processo Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3653, 2 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24845. Acesso em: 23 nov. 2024.

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