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A aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia.

Um estudo lusitano-brasileiro com base na teoria geral do direito policial de Guedes Valente

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Agenda 18/07/2013 às 16:56

O artigo aborda a questão da aplicação do Princípio da Insignificância pelo Delegado de Polícia em sua função de Polícia Judiciária e na condição de carreira jurídica.

Resumo: O artigo aborda a questão da aplicação do Princípio da Insignificância pelo Delegado de Polícia em sua função de Polícia Judiciária e na condição de carreira jurídica. A questão é discutida na doutrina, sendo apresentados os argumentos existentes sobre o tema, bem como um breve estudo do próprio princípio em discussão. O referencial teórico é assentado na Teoria Geral do Direito Policial do autor lusitano Guedes Valente.

Palavras-chave: Princípio da Insignificância – Delegado de Polícia – Teoria Geral do Direito Policial – Aplicabilidade – Polícia Judiciária – Inquérito Policial.

Sumário: 1- Introdução. 2- O Princípio da Insignificância.  2.1 – Conceito.  2.2 – Origem  2.3 – Algumas distinções importantes.  2.4- Previsão legal e acatamento doutrinário – jurisprudencial no Brasil. 3- O Delegado de Polícia e o arquivamento da “notitia criminis”. 4- Teoria Geral do Direito Policial em Guedes Valente e a Polícia como instrumento de garantia dos direitos fundamentais. 5- Conclusão. 6- Referências.


1-INTRODUÇÃO

O acatamento e aplicação do denominado “Princípio da Insignificância ou da Bagatela” no Direito Penal brasileiro tem sido tema de muitas discussões que vão desde o repúdio absoluto até sua aceitação de acordo com determinados regramentos que vêm sendo moldados pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal.

Em geral o Princípio da Insignificância tem contado com aceitação nos meios jurídicos brasileiros, razão pela qual o desenvolvimento de um estudo sobre sua aplicabilidade seria de parca relevância. Entretanto, o objeto deste trabalho se constitui da análise de uma faceta específica da aplicabilidade do Princípio da Insignificância no dia a dia policial e forense. Trata-se da abordagem da questão que diz respeito à possibilidade ou não de sua aplicação diretamente, já no estágio da investigação criminal, pela Autoridade Policial, ou seja, pelo Delegado de Polícia. Afinal, diante de um fato bagatelar, poderia o Delegado simplesmente deixar de lavrar um auto de prisão em flagrante ou de instaurar inquérito policial, mediante despacho fundamentado? Poderia, inclusive, deixar de proceder sequer ao registro da ocorrência? Ou estaria o reconhecimento da insignificância atrelado ao crivo ministerial e judicial necessariamente?

Essa problemática não é despicienda, pois que influi nas decisões a serem tomadas pelos operadores do Direito em seu cotidiano e, especialmente, apresenta grande relevância naquilo que concerne ao Direito de Liberdade dos cidadãos, bem como ao seu direito de não serem submetidos a atos de investigação e coerção policial sem justa causa.

O estudo da questão posta implica inicialmente numa apresentação do Princípio da Insignificância em termos conceituais, bem como em sua descrição prática e dogmática, abordando a polêmica em torno do tema e o estado atual de seu reconhecimento pela comunidade jurídica brasileira. No seguimento faz-se necessária a abordagem da amplitude e dos limites da atividade do Delegado de Polícia no que se refere à possibilidade de arquivamento de Boletins de Ocorrência ou quaisquer outros veículos de apresentação de “notitia criminis”. Isso porque somente tendo uma clara visão dessa amplitude e limites é que se pode concluir com maior segurança quanto ao campo legítimo de exercício das atribuições policiais enquanto manifestação de um chamado “poder – dever”. Em seguida será esboçada uma “Teoria Geral do Direito Policial” com fulcro nas pesquisas desenvolvidas pelo autor português Manuel Monteiro Guedes Valente, emprestando especial ênfase ao aspecto garantista inerente ao cumprimento das atribuições policiais. Com base nessas exposições é que se poderá chegar a uma visão adequada do papel do Delegado de Polícia como um dos garantidores (e na linha de frente) dos Direitos Fundamentais, ensejando uma melhor visão sobre sua eminente função no que tange aos casos abrangidos pelo Princípio da Insignificância.  Por fim, far-se-á uma retomada dos tópicos desenvolvidos ao longo do trabalho, apresentando seu desenlace conclusivo.


2-O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

2.1–CONCEITO

O Princípio da Insignificância ou da Bagatela consiste na afirmação de que lesões mínimas, de parca significância, aos bens jurídicos tutelados, as quais não chegam a legitimar com proporcionalidade e razoabilidade a aplicação das severas e estigmatizantes sanções penais, tornam o fato atípico, impedindo, portanto, a atuação desse ramo sancionatório do Direito.

Trata-se de concepção que se assemelha à frase atribuída a Confúcio, a qual se tornou popular, de que “não se deve usar canhões para matar mosquitos”.

Em suma, como bem aduz Teles, o Princípio da Bagatela se refere ao tratamento adequado a lesões insignificantes, “aquelas que ao Direito Penal, por sua natureza limitada, por seus objetivos tutelares, não interessa proibir, dada sua insignificante lesividade”. [1]

Na dicção de Toledo:

“Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai  até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas”. [2]

Enfim, para que uma conduta, ainda que formalmente típica, adquira foros de relevância jurídico – penal capaz de  ensejar a aplicação de sanções dessa natureza é necessário que ela tenha produzido alguma lesão ou ao menos perigo de lesão considerável a bens jurídicos tutelados.

2.2 – ORIGENS

Tem sido apontada como fonte remota do Princípio da Insignificância pela doutrina o conhecido brocardo romano de natureza civilista “de minimis non curat praetor”, ou seja, a orientação de  que o magistrado não deve preocupar-se com questões insignificantes. Mais proximamente, nos idos de 1964, Claus Roxin introduz o referido princípio na seara penal como meio para a concretização “dos objetivos sociais traçados pela moderna política criminal”. [3]

Efetivamente Roxin propõe o Princípio da Insignificância com a finalidade de excluir a tipicidade de danos ou perigos de danos de pouca importância na maioria dos tipos penais. [4]

Já Welzel indicava a insuficiência de uma tipicidade formal a exigir a complementação por uma tipicidade material, ou seja, um fato pode ser típico em termos de simples subsunção à descrição legal, mas, para além disso, deve-se sempre perquirir se ainda assim essa conduta chega a afetar realmente as relações sociais, abalando interesses relevantes, prejudicando a paz e a harmonia da convivência. Daí sua formulação da chamada “Teoria da Adequação Social”, com fulcro na qual desde logo afastava da seara penal as lesões insignificantes. [5]

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Constata-se, assim, que a introdução da insignificância como elemento de aferição da tipicidade material no Direito Penal não é propriamente obra original de Roxin. Na verdade, conforme assinala Toledo, Welzel (1930) entendia que o “Princípio da Adequação Social” seria suficiente para excluir da seara penal lesões de parca significância. Não obstante, a crítica dogmática considerou discutível essa suposta suficiência da adequação social. Aí é que entra Claus Roxin, propondo “a introdução no sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação”. Nada mais seria este do que o conhecido “Princípio da Insignificância”, a permitir, na maioria dos tipos penais, a exclusão de danos de pouca monta. Dessa forma, os Princípios da Adequação Social (Hans Welzel) e da Insignificância (Claus Roxin) são complementares na formulação de uma concepção material e não somente formal do tipo. [6]

É interessante lembrar que a terminologia “Princípio da Insignificância” é obra de Roxin, enquanto que a nomenclatura também usual de “Princípio de Bagatela” é oriunda da pena de Klaus Tiedemann, que também advoga a tese de ser necessária “uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal”, de forma que muitas “condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material”. E, assim sendo, é viável “afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado”. [7]

2.3-ALGUMAS DISTINÇÕES IMPORTANTES

Não é difícil confundir o Princípio da Insignificância com outros princípios ou institutos penais semelhantes. Uma primeira abordagem de importância crucial é anotar que a insignificância não se confunde com os Princípios da Lesividade ou Ofensividade e nem da Intervenção Mínima.

É consequência do Princípio da Lesividade a inexistência de tipicidade sem que ocorra ofensa a um bem jurídico, sendo possível que tal ofensa se constitua em uma lesão (dano) ou em um perigo. [8]

Por seu turno,

“o princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta  só se legitima se constituir meio necessário para a prevenção de ataques contra bens jurídicos importantes. Ademais, se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Assim,  se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas as que devem ser empregadas, e não as penais”. [9]

 Na verdade, o Princípio da Insignificância pode ser encarado como uma decorrência prática ou concreção dos princípios anteriores. Costuma-se lecionar que enquanto os Princípios da Lesividade e da Intervenção Mínima são voltados para a orientação do legislador, o princípio da insignificância tem sua aplicação num momento ulterior que cabe ao aplicador do Direito Penal. Resumindo, o legislador, ao criar um tipo penal, deve levar em conta a lesividade que lhe indica que somente pode erigir em infração penal condutas que provoquem lesões a bens jurídicos. Por seu turno, a intervenção mínima está diretamente ligada à Fragmentariedade e “Ultima Ratio” do Direito Penal, de modo que também cabe ao legislador lançar mão dessa espécie sancionatória e controladora somente em casos excepcionais para os quais outros ramos do Direito sejam inócuos ou insuficientes. Mas, após a criação de uma norma penal, em sua aplicação a casos concretos, ainda caberá, agora ao intérprete e aplicador do Direito, avaliar se a lesão ao bem jurídico é suficiente para legitimar a reação penal estatal. Torna-se visível o liame existente entre lesividade, minimalismo e insignificância, mas não se podem confundir os conceitos, eis que operam em fases distintas, embora complementares e coerentes entre si.

Como oportunamente leciona Dotti:

“Não se confundem as noções dos aludidos princípios. Há hipóteses em que embora a lesão seja considerável , não se justifica a intervenção penal quando o ilícito possa ser eficazmente combatido pela sanção civil ou administrativa, por exemplo. Enquanto o princípio da intervenção mínima se vincula mais  ao legislador, visando reduzir o número de normas incriminadoras, o da insignificância se dirige ao juiz do caso concreto, quando o dano ou o perigo de dano são irrisórios. No primeiro caso é aplicada uma sanção extrapenal; no segundo caso, a ínfima afetação do bem jurídico dispensa qualquer tipo de punição”. Pode-se falar então em intervenção mínima (da lei penal) e insignificância (do bem jurídico afetado). [10]

Outra confusão que não pode ocorrer é entre o fato insignificante e “Infração de Menor Potencial Ofensivo”. As infrações de menor potencial ofensivo são aquelas definidas no artigo 61 da Lei 9099/95, ou seja, todas as contravenções penais e os crimes com pena máxima não superior a 2 anos. Para essas infrações há previsão de um procedimento especial, menos formal e mais célere, submetido a um modelo de “Justiça Consensuada”, mas isso não significa que haja ocorrências bagatelares dispostas por força de lei. A infração de menor potencial não é necessariamente insignificante. A aferição da insignificância, como já se viu, se processa no caso concreto e conduz à atipicidade. A mera classificação de uma infração como de menor potencial apenas altera o procedimento a que ela é submetida, bem como o tratamento penal dado ao caso, mas não a transforma, sem mais, em fato bagatelar.

Na dicção de  Teles:

“Não se deve confundir o princípio da insignificância, também denominado de princípio da bagatela, que exclui a tipicidade do fato formalmente típico, ajustado ao tipo, quando a lesão causada for insignificante, de escassa expressão, com a locução criminalidade de bagatela, ultimamente muito utilizada, que quer referir-se  àquelas infrações penais de menor potencial ofensivo – locução constante da Constituição Federal, no art. 98, I – e que foram recentemente definidas na Lei 9.099/95 como todas as contravenções penais e os crimes com pena máxima não superior a dois anos. O princípio da bagatela exclui a tipicidade do fato, aplicando-se a todo e qualquer tipo legal de crime, ao passo que criminalidade de bagatela quer referir-se  aos crimes de menor potencial ofensivo, crimes menos graves, crimes menores. Quando incide o princípio da bagatela, não há crime; na criminalidade de bagatela, o crime existe, todavia, o tratamento processual e penal é diverso, com a possibilidade  da suspensão condicional do processo, transação com a vítima, reparação do dano, aplicação de pena não privativa de liberdade, e outros institutos de natureza processual”. [11]

Também não há que se confundir o Princípio da Insignificância com os conceitos criminológicos de microcriminalidade e macrocriminalidade. Essas conceituações, usuais na seara da criminologia, nada têm a ver com a questão da insignificância. Segundo lecionam Newton e Valter Fernandes, a microcriminalidade é aquela que diz respeito à criminalidade individual, mais visível socialmente (furtos, roubos, homicídios etc.), enquanto que a macrocriminalidade configura-se como uma espécie de “delinquência em bloco conexo e compacto, incluída no contexto social de modo pouco transparente (crime organizado) ou sob rotulagem econômica lícita (crime de colarinho branco)”. [12]  A denominada “microcriminalidade” poderia gerar confusão com o conceito de insignificância, mas, como visto, é afeta a uma classificação criminológica que somente diz respeito a essa área e nada tem em comum com a insignificância ou bagatela.

A doutrina tem ainda falado em “Princípio da Bagatela ou Insignificância Imprópria” ou “ Irrelevância jurídico – penal do fato”. Nesses casos, não há insignificância na conduta e nos seus resultados, mas por algum motivo específico a aplicação de uma sanção penal se torna desnecessária e, eventualmente, até mesmo contraproducente. São exemplos casos de perdão judicial em homicídio culposo ou lesão corporal culposa nos quais o agente é atingido tão gravemente que a pena seria inócua (artigos 121, § 5º.,CP e 129, § 8º., CP); casos de imunidade absoluta em crimes patrimoniais não violentos e em que a vítima não é idosa (artigo 181, I e III c/c 183, CP), dentre outros. A conduta é criminosa e a lesão não é insignificante, mas o legislador opta por não aplicar pena por questões político – criminais que a tornam descabida nos casos que especifica. [13]

2.4-PREVISÃO LEGAL E ACATAMENTO DOUTRINÁRIO – JURISPRUDENCIAL NO BRASIL

Já comentava o escritor Mark Twain que “(...) a história da nossa raça e a experiência de cada um estão cheias de provas de que é fácil matar uma verdade e que uma mentira bem contada é imortal”. [14]

Demonstrar-se-á como em nossa literatura e ensino jurídico tem-se espraiado um erro quanto ao denominado “Princípio da Insignificância ou da Bagatela”, mediante a afirmação corrente e praticamente unânime (e já dizia Nelson Rodrigues que “toda unanimidade é burra”) [15] de que este se estabelece como princípio do Direito, albergado pela doutrina e jurisprudência, mas que não conta com previsão legal alguma em nosso ordenamento jurídico.  

Em geral a orientação de aplicação do Princípio da Insignificância em solo brasileiro tem sido acatada na doutrina, na jurisprudência e no dia a dia forense. Não obstante, há uma falsa informação que dá conta de que esse princípio não apresenta previsão legal no Brasil, conforme acontece, por exemplo, “no Código Penal da antiga República Soviética da Rússia, no Código Penal da Tche-coslováquia, no Código Penal Português, no Código Penal Austríaco, no Código Penal Cubano, no Código Penal da República da China e no Código Penal Alemão (art. 3º – não subsiste o crime, se, não obstante a conformidade da conduta à descrição legal de um tipo, as conseqüências do fato sobre direitos e os interesses dos cidadãos e da sociedade e a culpabilidade do réu são insignificantes). Prevêem também disposições semelhantes: o Código Penal Polonês, o Código Penal da Bulgária e o Código Penal da Romênia”. [16]É exemplo de manifestação doutrinária nesse sentido equivocado a afirmação de Silva Júnior de que o Princípio da Insignificância “é um princípio que não existe na legislação penal brasileira, mas que vem sendo admitido, ainda que de maneira tímida pela nossa jurisprudência”. [17]

No mesmo diapasão vem à baila o escólio de Mirabete e Fabbrini:

“A excludente de tipicidade (do injusto) pelo princípio da insignificância (ou da bagatela), que a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo, não está inserta na lei brasileira, mas é aceita por analogia, ou interpretação interativa, desde que não contra legem”. [18]

Na jurisprudência também tem sido comum a invocação dessa suposta imprevisão do Princípio da Insignificância de modo geral na legislação pátria, inclusive para denegar sua aplicabilidade:

“Por sua vez, também não há que se falar em absolvição por crime de bagatela, posto que no direito brasileiro o princípio da insignificância ainda não adquiriu foros de cidadania, de forma a excluir tal evento da tipicidade penal, sendo irrelevante o fato do bem subtraído ser considerado, para os fins penais, como sendo ínfimo ou desprezível.” (TJSP: 14ª Câmara Criminal, Rel. Des. Fernando Torres Garcia. Apelação Criminal no. 990.08.089790-0, j. 05.03.2009, v.u.)”.

Conforme se vê está disseminada a afirmação de que na legislação brasileira não há previsão legal do Princípio da Insignificância, cuja aplicação se dá apenas por reconhecimento doutrinário – jurisprudencial.

A verdade dessa assertiva é parcial. Se for considerado somente o Código Penal Brasileiro, bem como praticamente todas as legislações penais esparsas, realmente não há um exemplo sequer de previsão do Princípio da Insignificância, o que empresta foros de credibilidade à afirmação genérica acima mencionada muito comumente repetida como numa “Síndrome Jurídica de Papagaio”.

Ocorre que, na realidade, há duas previsões legais expressas do Princípio da Insignificância no ordenamento jurídico – penal brasileiro. Essas duas previsões são encontráveis no Código Penal Militar ao tratar dos crimes de lesões corporais e de furto.

O artigo 209, § 6º., do CPM estabelece que:

“No caso de lesões levíssimas, o juiz pode considerar a infração somente como disciplinar”.

Já o artigo 240, § 1º., do CPM assim determina:

“Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou considerar a infração como disciplinar” (grifo nosso, porque é nessa última figura que se encontra a expressão da insignificância, sendo as anteriores descritivas do chamado furto privilegiado). 

É visível que nesses dois casos o legislador considerou a insignificância para afastar o caso do Direito Penal e remetê-lo ao Direito Administrativo Disciplinar. Portanto, há um limite visível para a afirmação generalizante corrente de que na legislação pátria não há previsão do Princípio da Insignificância. A indicação dos dois casos acima do Código Penal Militar enseja o que se convencionou denominar de “exemplum  in contrarium”, o qual “impede uma generalização indevida, ao mostrar que ela é incompatível com ele, e indica, portanto, em qual direção somente a generalização é permitida”. [19]

Esse fato não passou incólume pela observação dos estudiosos especializados no Direito Castrense:

Loureiro Neto identifica nos casos acima a presença do Princípio da Insignificância legislado, asseverando ser inequívoca “a sua incidência” para os crimes militares, “por disposição expressa no Código Penal Militar”. [20]

Pela mesma senda caminham Neves e Streifinger afirmando que na lesão corporal “houve pela lei penal militar a positivação do princípio da insignificância”, assim como também há sua manifestação no caso do § 1º., “in fine”, do artigo 240 do CPM (furto). [21]

Igualmente, em estudo específico sobre o Princípio em destaque, chega à mesma conclusão Ivan Luiz Silva. [22]

Dessa forma comprova-se, infelizmente, que o erro é fecundo e quando é disseminado acaba se transformando em hábito e norma. [23] Não por outro motivo é que tem sido repetida a lição de que não existe previsão legal alguma do Princípio da Insignificância no ordenamento jurídico brasileiro, quando, na verdade, há duas previsões legais claras no bojo do Código Penal Militar, conforme acima demonstrado.

A lição correta é, portanto, que na legislação comum realmente até o momento não há qualquer previsão expressa do Princípio da Insignificância, embora este seja doutrinária e jurisprudencialmente reconhecido e aplicado. No entanto, há que lembrar a existência de duas exceções positivadas no Código Penal Militar, conforme acima mencionado.

A verdade é que a grande maioria da doutrina e da jurisprudência reconhecem sem embargos a aplicabilidade no Direito Penal Brasileiro do Princípio da Insignificância, seja em casos de previsão expressa (excepcionais), seja na ausência de previsão, enquanto princípio implícito derivado da lesividade ou ofensividade e da intervenção mínima, bem como da própria concepção de dignidade da pessoa humana, a qual não pode ser submetida ao calvário da seara criminal por uma bagatela.

Entretanto, esse pensamento, como bem demonstra Greco, não é pacífico. O autor aponta corrente radical na doutrina cujo entendimento é do de que “todo e qualquer bem merece a proteção do Direito Penal, desde que haja previsão legal para tanto, não se cogitando, em qualquer caso, do seu real valor”. Porém, como conclui o autor sob comento, esse pensamento conduziria a “situações absurdas” como a punição do furto de um caramelo, de uma lesão praticamente invisível a olho nu etc. [24]

Por derradeiro é bom aclarar que o Princípio da Insignificância não pode ser aplicado indistintamente a quaisquer delitos. Neste ponto a parca regulamentação legal do tema deixa lacunas indesejáveis, as quais vêm sendo preenchidas pela jurisprudência.

Por isso é importante destacar os critérios adotados pelo STF no HC 84.412/SP para viabilizar uma aplicação escorreita e justa do referido princípio: “a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada”. [25]

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia.: Um estudo lusitano-brasileiro com base na teoria geral do direito policial de Guedes Valente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3669, 18 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24967. Acesso em: 8 nov. 2024.

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