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Aplicação de penalidade em processos administrativos punitivos no âmbito da Administração Pública: ato vinculado ou discricionário?

Agenda 10/09/2013 às 15:42

Ainda que presentes os requisitos para a aplicação de sanção administrativa ou mesmo para a instauração do processo administrativo, a Administração pode estar diante de caso em que se mostra inconveniente movimentar o aparelho administrativo.

1. Introdução:

O processo administrativo no âmbito federal é, regra geral, disciplinado pela Lei nº 9.874, de 29 de janeiro de 1999[1]. Ao estabelecer regras para todos os tipos de processos administrativos, o referido diploma legal deixou, todavia, detratar das peculiaridades inerentes ao processo administrativo punitivo.

O processo administrativo punitivo, por ter como objetivo a apuração de infração e a possível aplicação de penalidade ao responsável, possui uma série de princípios próprios se comparado aos demais processos administrativos que podem estar em curso na Administração Pública. Trata-se do que a doutrina denomina princípios e regras comuns a todo o direito público sancionador[2]. Assim, alguns princípios tradicionalmente considerados típicos ao processo penal devem ser aplicados ao processo administrativo punitivo, por constituírem, na verdade, mera individualização dos princípios gerais da legalidade e da segurança jurídica.[3]

Nesse contexto, tratando-se de apuração de irregularidades, é imprescindível estar atento ao disposto no art. 5º, inciso LV, da Constituição da República, que estabelece que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Obedecer ao disposto no mencionado artigo significa dar ao administrado a garantia de que o processo correrá dentro da legalidade, resguardando-o contra eventuais abusos por parte da Administração Pública.

Sobre o assunto, cabe transcrever lição de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari:

Somente se pode pensar em efetiva realização do princípio democrático quando e onde possa o administrado participar do querer administrativo, ou da sua concretização efetiva. Para tanto, imprescindível é que se assegure ao cidadão o postular junto à Administração, com as mesmas garantias que lhe são deferidas no processo jurisdicional – particularmente, as certezas do contraditório, da prova, do recurso e da publicidade.[4]

O devido processo legal no âmbito do direito administrativo, especialmente nos processos que resultem sanções, deve garantir, nos termos do inciso X do parágrafo único do art. 2º da Lei n° 9.784, de 1999, a comunicação, a apresentação de alegações finais, a produção de provas e a interposição de recursos, no intuito de se resguardar o direito de defesa dos administrados. Além disso, a aplicação de penalidade deve pressupor a comprovação de elementos como a materialidade da infração e a respectiva autoria[5]. Cumpridos tais requisitos, a Administração Pública está autorizada a impor a penalidade cabível, exaurindo-se a finalidade para a qual o processo foi instaurado.


2. A extinção do processo administrativo: análise sob o enfoque dos princípios que regem a Administração Pública e o processo administrativo

A regra geral de extinção do processo administrativo determina que o processo deve ser finalizado quando exaurida a sua finalidade. No âmbito do processo administrativo punitivo, a finalidade é alcançada com a punição do autor ou com a sua absolvição, caso não seja possível demonstrar, de forma inequívoca, os pressupostos exigidos para a aplicação da sanção administrativa.

É importante consignar, todavia, que, além da regra geral exposta, o art. 52 da Lei nº 9.784, de 1999, estabelece que o órgão competente poderá declarar extinto o processo quando o objeto da decisão se tornar impossível, inútil ou prejudicado por fato superveniente.

Sobre o dispositivo em referência, cabe questionar: essa regra pode ser utilizadanos casos em for comprovada a materialidade e a autoria da infração? Pode a Administração Pública deixar de punir o administrado quando presentes os requisitos exigidos para a aplicação da penalidade?

 A resposta imediata sempre vem respaldada no princípio da legalidade que, em linhas gerais, estabelece que a Administração Pública somente pode fazer o que a lei antecipadamente autorize[6]. Assim, no âmbito punitivo,se por um lado a Administração somente pode aplicar a penalidade se houver prévia disposição legal, por outro, não deve deixar de aplicá-la na hipótese em que presentes os requisitos para tanto.

O poder punitivo é uma prerrogativa de autoridade detida pela Administração Pública para ser utilizado em favor da coletividade[7], na hipótese de descumprimento de deveres por ela impostos. Percebe-se, assim, que tal poder é vinculado ao interesse público, que determina que certas condutas devem ser reprimidas. A partir desse argumento e considerando-se exclusivamente o princípio da legalidade, pode-se sustentar a tese de que a aplicação das penalidades administrativas é ato vinculado, especialmente se for considerada a premissa de que a Administração é obrigada a submeter-se a todos os comandos que a lei contém, não lhe sendo permitida qualquer conduta que a eles se contraponha.[8]

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A mesma conclusão se chega se analisarmos a questão sob a ótica do princípio da indisponibilidade, que estabelece que a Administração Pública não tem disponibilidade sobre os interesses públicos confiados à sua guarda e realização, já que os verdadeiros donos de tais interesses é a própria coletividade.

Não obstante tais entendimentos, não se pode analisar a matéria apenas sob o enfoque do princípio da legalidade e da indisponibilidade. A Constituição da República, ao disciplinar os princípios que regem a Administração Pública, também reconheceu a importância do princípio da eficiência, da moralidade e da publicidade. Além disso, a Lei nº 9.784, de 1999, ao relacionar os princípios aplicáveis ao processo administrativo, listou, dentre outros, o princípio da finalidade e da razoabilidade.

A combinaçãodos princípios em referência com o disposto no já mencionado art. 52 da Lei nº 9.784, de 1999, nos permite concluir que o ordenamento jurídico vigente autoriza, expressamente, da extinção do processo administrativo punitivo quando o objeto da decisão se tornar impossível, inútil ou prejudicado por fato superveniente, ainda que presentes os requisitos mínimos – comprovação de autoria e materialidade – exigidos para a aplicação da penalidade administrativa.

Mas não somente nos casos ali especificados pode a Administração Pública optar por não exercer seu papel de autoridade sancionadora. A meu ver, tanto o ato de instauração de um processo administrativo quanto a decisão sobre a aplicação de penalidade deve ser qualificado como ato discricionário.

A questão passaria, então, por uma ponderação entre princípios, deixando-se de lado a mera aplicação automática da lei e de seus dogmas para se buscar a concretização da supremacia do interesse público. Cabe à autoridade administrativa, então, efetuar valorações no processo decisório, considerando a peculiaridade dos casos submetidos à sua análise.

Assim, ainda que presentes os requisitos formais e materiais para a aplicação de sanção administrativa ou mesmo para a instauração do processo administrativo, pode a Administração Pública estar diante de caso em que se mostra inequívoca a inconveniência de se movimentar o aparelho administrativo.

Nesse sentido é o entendimento de Marcelo Madureira Prates:

(...)procuramos igualmente denotar que a Administração detém margem de discricionariedade na aplicação das sanções administrativas mesmo quando verificadas todas as condições de fato e de direito exigidas para esse efeito, se outros interesses públicos colidirem com o interesse público.[9]

(...)

na fase de apuração do ilícito administrativo, a Administração poderá, ou melhor, deverá deixar de iniciar o procedimento sancionador sempre que dispuser de elementos suficientes sobre a infração cometida e sobre a respectiva sanção que lhe indiquem, de pronto, a existência de outros interesses públicos preponderantes sobre o interesse sancionador, ou, quando menos, a inconveniência de se movimentar o aparelho administrativo em função da baixa reprovação que merecerá o ilícito concretamente praticado.[10]

A decisão administrativa, nessas hipóteses, poderia ser respaldada, por exemplo, no princípio da eficiência, que consiste na busca, pela Administração Pública, da obtenção dos melhores resultados ao fim colimado pelo interesse público[11]. A alegação de inconveniência de se movimentar o aparelho administrativo está presente, por exemplo, nos casos de caracterização da prescrição da pretensão punitiva da Administração Pública estabelecida na Lei n° 9.873, de 1999, na hipótese de insignificância da infração cometida, no caso de o administrado não ser encontrado por estar em local ignorado e, ainda, por estar a pessoa jurídica extinta ou com sua falência decretada. Em todos esses exemplos, não é conveniente que a Administração movimente toda a máquina administrativa para que, ao final, o objetivo de todo o procedimento – aplicação da sanção ­– não possa ser efetivado.

Da mesma forma que o princípio da eficiência, o princípio da proporcionalidade também deve ser considerado como fundamento para se afastar o exercício do poder punitivo estatal. Por força desse princípio, a Administração Pública deve atuar por meio de medidas que estejam em perfeita adequação com as necessidades administrativas, pois somente se sacrificam interesses individuais na medida da estrita necessidade.[12]Nesse sentido, o inciso VI do art. 2° da Lei n° 9.784, de 1999, ao vedar a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias a atendimento do interesse público.

A aplicação do princípio da insignificânciaaos ilícitos administrativos pode ser considerado o principal exemplo da utilização do princípio da proporcionalidade. Assim, sempre que a lesividade da conduta não for suficiente para atingir o bem jurídico protegido, não há razão para se justificar a movimentação de todo aparato administrativo.

Embora não disciplinado expressamente como um princípio a ser seguido pela Administração Pública, o princípio da boa-fédeve ser levado em conta no exercício do poder sancionador. Considerando o atual cenário da regulamentação estatal, de intensa intervenção nos mais diversificados setores, pode haver casos de ausência de clareza dos deveres impostos aos administrados ou mesmo de comportamento administrativo contraditório, que devem ser considerados no momento de tomada da decisão administrativa.

Obviamente, ao exercer essa atividade de ponderação de interesses públicos, a Administração deve observar os princípios da impessoalidade, da igualdade e da moralidade, pois não pode acarretar tratamento desigual aos administrados em situações semelhantes. Ademais, a decisão administrativa deve desconsiderar fatores de caráter pessoal que possam interferir na moralidade da conduta, que deve ser desempenhada visando principalmente ao interesse público.[13] Sobre o tema, leciona Marcelo Madureira Prates:

Porém, no domínio administrativo sancionador, essa tolerância há de ter caráter geral, e nunca singular. A Administração não pode, à face de situações idênticas, ser tolerante em relação a alguns administrados infratores, enquanto sanciona outros (...). Se por um lado é de se admitir o recurso à oportunidade no exercício do poder administrativo sancionador, por outro é de se exigir a boa-fé e a imparcialidade da atuação administrativa.[14]

Além disso, não se pode deixar de mencionar que a observância do princípio da supremacia do interesse público é condição para a validade da decisão administrativa que deixar de exercer o poder sancionador. Assim, tal decisão não pode ter como finalidade atender o interesse privado do administrado ou outros interesses que não o público.


3. Conclusão:

Por todo o exposto, a conclusão a que se chega é pela possibilidade de o agente público, diante de um caso concreto e após a análise da situação frente aos princípios que norteiam a Administração Pública, deixar de exercer o poder sancionador mesmo diante da existência de requisitos que autorizariam a instauração de processo administrativo ou a imposição de penalidades. Tratando-se, portanto, de ato discricionário, não é demasiado recordar a necessidade de fundamentação da decisão administrativa, a fim de tornar público os motivos que determinaram o afastamento da prerrogativa sancionadora da Administração Pública no caso concreto.


Notas

[1] Afasta-se a aplicação desse diploma normativo apenas na hipótese de existência de lei específica, conforme preconiza o seu art. 69

[2] PRATES, Marcelo Madureira. Sanção Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia.Coimbra: Almedina, 2005, p. 29.

[3] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 80.

[4] FERRAZ, Sérgio e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 21/22.

[5] É certo que existem outras condições que devem ser observadas para a penalização do administrado. Entretanto, por não ser o objeto da questão não vão ser aqui discutidas.

[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.76.

[7] PRATES, Marcelo Madureira. Sanção Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia.Coimbra: Almedina, 2005, p. 37.

[8] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal (Comentários à Lei nº 9.784, de 29/1/1999), Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001, p. 50.

[9] PRATES, Marcelo Madureira. Sanção Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia.Coimbra: Almedina, 2005, p. 55.

[10]Idem. p. 69.

[11] FERREIRA, Luiz Tarcísio Teixeira. “Princípios do Processo Administrativo e a Importância do Processo Administrativo no Estado de Direito (arts. 1° e 2°)”, in AA.VV. Comentários à Lei Federal de Processo Administrativo (Lei n° 9.784/99), Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 32.

[12]  FERRAZ, Sérgio e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 64.

[13] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal (Comentários à Lei nº 9.784, de 29/1/1999), Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001, p. 55.

[14] PRATES, Marcelo Madureira. Sanção Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia.Coimbra: Almedina, 2005, p. 71/72

Sobre a autora
Eliane Coelho Mendonça

Procuradora do Banco Central do Brasil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDONÇA, Eliane Coelho. Aplicação de penalidade em processos administrativos punitivos no âmbito da Administração Pública: ato vinculado ou discricionário? . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3723, 10 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25264. Acesso em: 22 nov. 2024.

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