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Reflexões acerca da perda da patente dos oficiais da Polícia Militar e da graduação dos praças

Agenda 21/09/2013 às 14:14

O fato de se permitir que os praças sejam excluídos da corporação por mero ato administrativo, independentemente de ratificação judicial, não retira do Poder Judiciário a possibilidade de rever este ato.

I - Introdução

O presente artigo tem por objetivo trazer à baila um novo paradigma, um novo olhar acerca da interpretação do art. 125, §4º, da Constituição da República, à luz da sua necessária integração com os demais princípios constitucionais que permeiam a matéria.


II – O art. 125, §4º, da CRFB/88 entendido à luz de uma hermenêutica integradora:

Com efeito, o art. 125, §4º, da CRFB/88 determina que compete ao Tribunal de Justiça, nos Estados em que este faz as vezes de segundo grau de jurisdição da Justiça Militar Estadual, decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação dos praças.

A ultima ratio do art. 125, §4º, da Constituição da República foi dar tratamento isonômico aos integrantes das forças armadas estaduais, sejam eles Oficiais ou Praças.

Entretanto, sendo os Oficiais os integrantes do ápice da carreira militar, ou seja, estando eles no topo da hierarquia castrense, a jurisprudência firmou o entendimento de que são merecedores de garantias que lhes proporcionem o exercício de suas atribuições de forma mais isenta e independente, residindo aqui o ponto de divergência entre a carreira dos Oficiais e dos Praças no que diz respeito à exclusão da corporação.

Vale dizer, com vistas a se garantir um maior resguardo da carreira do Oficial da Polícia Militar, bem como uma apuração mais isenta de suas responsabilidades, a perda da sua patente somente pode ocorrer por decisão transitada em julgado do Tribunal competente.

Não basta, para a exclusão do Oficial da Polícia Militar das fileiras da Corporação, a decisão do Comandante-Geral, do Secretário de Segurança Pública ou do Governador – o que irá variar de acordo com a legislação de cada Estado – ao término do Conselho de Justificação que apura a conduta daquele policial. Exige-se uma decisão judicial transitada em julgado para que tal exclusão produza efeitos jurídicos.

A perda da patente do Oficial da Polícia Militar constitui, pois, verdadeiro Ato Administrativo Complexo, na medida em que para a consecução da vontade final da Administração exige-se a participação de órgãos diversos, cada qual com autonomia em suas manifestações.

Ao tratar da definição do Ato Administrativo Complexo, o Professor José dos Santos Carvalho Filho assim nos ensina, verbum et verbum:

Atos complexos são aqueles cuja vontade final da Administração exige a intervenção de agentes ou órgãos diversos, havendo certa autonomia, ou conteúdo próprio, em cada uma das manifestações.”[1]

É exatamente o que acontece nas hipóteses de exclusão de Oficiais da Polícia Militar, na medida em que, como já afirmado, para a consecução da vontade da Administração faz-se necessária a intervenção de dois órgãos distintos, a saber: o órgão administrativo (seja ele o Comando-Geral, a Secretaria de Segurança ou a Governadoria) e o órgão judicial, sendo certo que cada um deles possui autonomia na exteriorização da sua vontade.

Nesse sentido, nos Estados em que há Tribunal de Justiça Militar, a exclusão dos Oficiais somente se aperfeiçoa após decisão passada em julgado daquele Tribunal, não sendo suficiente apenas a decisão administrativa. A seu turno, nos Estados em que não há Justiça Militar especializada, o próprio Tribunal de Justiça avocará para si esta competência.

Aliás, este entendimento deu azo, inclusive, à edição do verbete nº 673 da súmula de jurisprudência predominante da Eg. Suprema Corte, vazado nos seguintes termos:

“O art. 125, § 4º, da Constituição, não impede a perda da graduação de militar mediante procedimento administrativo.”

Veja que a redação da súmula acima transcrita fala expressamente em “perda da graduação”; de onde se infere que somente os Praças podem ser excluídas por meio de processo administrativo. Assim não fosse e da súmula deveria constar a expressão “perda da patente e da graduação”.

Nessa esteira, dúvidas não há de que os Oficiais da Polícia Militar somente podem perder a sua patente mediante decisão judicial transitada em julgado.

Questão assaz controvertida diz respeito à situação dos Praças.

Justamente por estarem na parte mais basilar da carreira castrense e em razão do seu enorme efetivo, é preciso proporcionar à Administração meios de se dar uma resposta mais célere e efetiva às transgressões disciplinares daqueles que integram esta carreira; dessarte, via de regra, os Estados da Federação editam atos normativos que concedem ao Comando-Geral da Polícia Militar a possibilidade de excluir os Praças das fileiras da Corporação ex officio e a bem da disciplina, sendo despicienda, nesta hipótese, a manifestação do Tribunal.

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Ocorre, todavia, que o fato de se permitir que os Praças sejam excluídos da Corporação por mero Ato Administrativo, independentemente de ratificação judicial, não retira do Poder Judiciário a possibilidade de rever este ato, em razão do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição.

Nestes casos, malgrado não se discuta a possibilidade de o Comando-Geral proceder administrativamente à exclusão dos Praças das fileiras da Corporação castrense a bem da disciplina, ao nosso sentir isto não impede que o Tribunal venha a reavaliar este ato administrativo, confirmando-o ou reformando-o, entendimento este que empresta máxima efetividade ao mandamento constitucional constante do art. 125, §4º, da CRFB/88.

Neste particular podemos falar em efeito integrador da norma constitucional relativo à eficácia das normas infraconstitucionais integradas ao texto magno, como reiteradamente vem decidindo o C. Supremo Tribunal Federal.

Outrossim, este entendimento se coaduna perfeitamente com o princípio da inafastabilidade da jurisdição, insculpido no art. 5º, XXXV, da CRFB/88, visto que no sistema americano de jurisdição una adotado pelo direito brasileiro, ainda que a lesão – ou ameaça de lesão – advenha de uma decisão administrativa, tal decisão não faz coisa julgada material, cabendo ao Poder Judiciário revê-la para garantir a observância dos direitos do cidadão.

Nesse diapasão, uma vez instaurado, no âmbito administrativo, o Conselho de Disciplina e, ao seu final, tendo o Comandante-Geral da Polícia Militar decidido pela exclusão ex officio do Praça, resta ao Poder Judiciário a possibilidade de rever esta decisão quando devidamente provocado pela parte interessada, confirmando-a ou reformando-a.

Frise-se que qualquer outro entendimento levaria a um indesejável esvaziamento dos dispositivos constitucionais já mencionados, o que, por via de consequência, aviltaria até mesmo a regra de hermenêutica constitucional que determina ser necessário outorgar às normas da constituição a máxima efetividade.

 


III – Conclusão:

Muito embora não se discuta a necessidade de se garantir meios mais céleres para a apuração das responsabilidades das condutas dos Praças da Polícia Militar no exercício de suas atribuições, esta necessidade não pode ser transformada em carta branca para a prática de arbitrariedades pela Administração Pública.

Não há dúvidas de que o desvio ou o excesso nas condutas desses policiais deve ser punido com rigor, na medida em que sua função primordial é atuar em prol da sociedade e dos cidadãos, e não contra eles, o que traduziria um aviltamento do próprio fundamento da existência da Polícia Militar e também da lógica jurídica. Porém, o numeroso efetivo dos integrantes dessa carreira não pode alicerçar exclusões divorciadas de elementos que a fundamentem.

Ao longo dos últimos anos, em razão de nossa atuação profissional, temos visto a Administração adotar um posicionamento deveras temerário: qualquer desvio na conduta desses policiais, independentemente do seu grau ou de uma apuração fidedigna, escorada nas garantias fundamentais dos acusados – as quais, diga-se de passagem, também se aplicam aos acusados em Processo Administrativo Disciplinar –, resulta na sua exclusão da Corporação, restando a eles percorrer o árduo caminho de comprovar judicialmente que tal punição se deu de forma desarrazoada, desproporcional ou mesmo arbitrária.

Parece-nos haver aí uma inversão da lógica jurídica e das próprias garantias fundamentais do cidadão face ao Estado. Não se pode admitir uma punição no mais alto grau – que é a demissão – pelo simples fato de que o policial encontrava-se inadimplente com o pagamento de financiamento contraído para a compra do seu automóvel, como, malgrado seja difícil de se acreditar, já vimos acontecer!

Parece-nos que, muito embora se possa admitir que a existência de um policial inadimplente com seus deveres civis nos quadros da Corporação possa malferir o pundonor militar, a demissão deste policial fere de morte o princípio constitucional da razoabilidade e da proporcionalidade, este sob o prisma da adequação e da proporcionalidade no sentido estrito. E isso se afirma por uma razão muito simples: é evidente que, neste caso, uma punição em menor grau seria suficiente a alcançar o resultado desejado.

Não se pode admitir, da mesma forma, que um policial cujos assentamentos funcionais sejam impecáveis, detentor de diversas menções honrosas, seja excluído da Corporação tão somente porque figura como réu em uma ação penal na qual não há quaisquer elementos que denotem sua culpabilidade. Agir dessa forma é chancelar a arbitrariedade e o aviltamento mortífero do princípio constitucional da não culpabilidade.

Se a Constituição da República determina, em seu art. 5º, LVII, que ninguém poderá ser considerado culpado senão depois do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, parece-nos que não pode a Administração excluir seu servidor de seus quadros antes que este fenômeno se faça presente.

As garantias fundamentais previstas na Constituição possuem aplicabilidade direta e imediata, sendo certo que, conforme muito bem aponta o professor José Afonso da Silva[2], a nossa Constituição “é expressa sobre o assunto, quando estatui que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”; não por outro motivo devem ser irrestritamente observadas.

No mesmo sentido são as lições do Professor Pedro Lenza, senão vejamos:

“As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, de acordo com o art. 5º, §1º, da CF/88, tem aplicação imediata. Assim, podemos concluir que as normas de eficácia plena e contida possuem a referida aplicabilidade imediata, não acontecendo o mesmo com as normas de eficácia limitada, que normalmente, precisam de lei integrativa infraconstitucional para produzir integralmente os seus efeitos.”[3]

A razão de ser desta regra de interpretação constitucional é muito bem explicada pelo Professor Canotilho que, ao tratar da hermenêutica constitucional, afirma que as normas instituidoras de garantias fundamentais devem ser lidas sempre sob o prisma do princípio  da máxima efetividade (ou da eficiência, ou da interpretação efetiva).

Vejamos o magistério do festejado professor ao tratar do princípio acima referido, in expressis:

“...é um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (THOMA), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).”[4]

Resta, portanto, a pergunta: se todos fazemos jus à observância irrestrita dos direitos fundamentais que nos garantem face ao Estado, será que este mesmo Estado também não deveria observar essas garantias ao tratar da vida funcional dos seus servidores?

Parece-nos que o Estado deve agir cum granu salis nessas situações. Excluir um policial dos seus Quadros pelas razões mais banais, conforme temos visto acontecer, traduz-se por uma arbitrariedade que não pode ser chancelada pelo Poder Judiciário.


IV – Referências Bibliográficas:

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 14. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Saraiva, 2008.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.


Notas

[1] In CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 14. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. P. 112.

[2] In SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. P. 180.

[3] In LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Saraiva, 2008. P. 112.

[4] In CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993. P. 227.

Sobre o autor
Diogo Mentor de Mattos Rocha

Advogado. Pós-graduado em Direito Público e Privado pelo Instituto Superior do Ministério Público e Mestrando em Direito e Desenvolvimento pela Universidade Candido Mendes. Foi servidor das carreiras do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, tendo exercido a função de Diretor da Seção Criminal do Tribunal de Justiça e atuado como Assessor Jurídico dos Desembargadores.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Diogo Mentor Mattos. Reflexões acerca da perda da patente dos oficiais da Polícia Militar e da graduação dos praças. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3734, 21 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25378. Acesso em: 22 dez. 2024.

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