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Decisões vinculantes

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Agenda 01/05/2000 às 00:00

5. As decisões vinculantes e a independência dos juízes da inferior instância

Na esteira do stare decisis (o trocadilho é proposital), tem tomado corpo, conforme alinhei acima, a idéia de que a adoção da vinculação dos precedentes judiciais, incidentes verticalmente no edifício do Judiciário, da maior à menor instância, resolveria o afogamento imposto ao Poder, notadamente depois do registro do inesperado número de demandas, oriundas da descoberta da cidadania pelo povo brasileiro, após o advento da Constituição de 1988. A vigente Carta Política, se coberta de defeitos fosse, haveria de mostrar pelo menos um ponto positivo: lembrou ao homem brasileiro que ele existe e compõe o Estado, como Nação, não sendo apenas súdito do Rei, mas sócio deste. Pois bem! Descobrindo que pode reclamar do Estado pelas peraltices dos seus gerentes, o homem comum achou de bater às portas do Judiciário reclamando da insuportável e confusa carga tributária; dos desmandos administrativos, notadamente na área de pessoal; da incorreção dos cálculos dos proventos previdenciários etc. E com freqüência considerável, esse chamado aconteceu junto ao juízo singular, na inferior instância. Foi nesta que foram proferidas as primeiras decisões mandando o INSS igualar os ganhos dos rurículas aposentados aos dos trabalhadores da ativa (CF, art. 201, § 5º) e dela saíram as primeiras decisões liminares ordenando o desbloqueio dos cruzados retidos quando da edição do Plano Collor (1990), apenas por exemplos.

O alentado volume de ações aforadas em muito pouco tempo, assoberbou de serviço o Poder Judiciário, que padece de sério, muito sério mesmo, estrangulamento. A situação é insuportável. Os magistrados reclamam, os advogados lamentam e o povo grita. Urge uma solução. E a que se apresenta como mais viável é a da força vinculante dos precedentes ou súmula vinculante.

O instituto que se comenta ( a súmula vinculante) é capaz de despertar paixões e ódios, que balizam, em lados opostos, posições eqüidistantes e equilibradas, bem possíveis de encontrar aí uma saída para o congestionamento das instâncias forenses, ainda que conjunturalmente.

Tentaremos alinhar aqui, alguns argumentos contrários à adoção da súmula vinculante.

          5.1. Respeitáveis argumentos contrários à Súmula Vinculante

Diz-se que os limites do exercício da função jurisdicional são a lei e a consciência jurídica, devendo esta última ser o norte do magistrado, que no seu labor deve extrair o sentido da lei, através da interpretação. Não deve o juiz, portanto, renunciar a essa atividade conciliatória da sua consciência jurídica com o objetivo da lei em nome da celeridade da prestação jurisdicional, pois esta não é o único nem o maior valor a ser considerado em matéria judicial. Afinal, o aforismo "justiça que tarda não é justiça" é eivado de relativismo, pois é preferível que o jurisdicionado obtenha o proveito desejado, ainda que demorado.

É afirmado, outrossim, que em um sistema tripartite de poderes como o nosso, configura ignomínia o Judiciário desprezar a produção legislativa para firmar-se em princípios por ele próprio construídos. A legitimidade da atividade judicante promana da vinculação do Poder Judiciário às leis e à Constituição. No instante em que o juiz estiver vinculado às normas elaboradas pelo seu próprio Poder, desaparecerá a sua legitimação democrática legal-representativa, restando fraturado o princípio da harmonia e da autonomia entre os poderes estatais, porque um estaria subtraindo a competência do outro, para enfeixá-la em poucas mãos (as da cúpula).

Para URBANO RUIZ, Presidente da Associação Juízes Para a Democracia, "a criação do efeito vinculante impediria que o juiz decidisse livremente" (11), no que é criticado por ANTONIO CELSO AGUILAR CORTEZ, também integrante dessa associação, que afirma: "Dizer, por outro lado, que a proposta põe em risco a liberdade de decidir dos juízes é uma redução simplista da questão. Importante é observar que, normalmente, a evolução da jurisprudência, sua sintonização com a expectativa da sociedade, não acontece de cima para baixo, mas sim de baixo para cima. Muito mais do que os tribunais ‘inferiores’ ou ‘superiores’, os juízes de primeiro grau ‘sentem’ os problemas vivos no contato direto e pessoal com as partes e os advogados." (12).

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LUIZ FERNANDO RIBEIRO DE CARVALHO, Presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, também critica o rumo que se vem traçando para a solução do problema: "Propõe-se a adoção de súmula vinculante na reforma do Judiciário, ressuscitando os Assentos das Casas de Suplicação, considerados inconstitucionais pelo STF desde a fundação da República. Como pontificava Ruy Barbosa - lembrado por Evandro Lins e Silva em artigo publicado no Jornal do Brasil de 16 de setembro-, na defesa (em 1895) do juiz de Direito do Rio Grande do Sul Alcides de Mendonça Lima que, por considerá-la inconstitucional, negou aplicação a uma lei estadual que abolira características essenciais à instituição do júri e acabou processado em seu próprio Tribunal (que firmou posição contrária acerca do tema) por crime de prevaricação e condenado à pena de nove meses de suspensão, tal entendimento criava o ‘crime de hermenêutica’." (13).

Também rebelde quanto à súmula vinculante, bradou o Des. JOÃO ALBERTO MEDEIROS FERNANDES, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: "O direito do cidadão de ver o seu caso concreto examinado pelo seu advogado e pelo seu juiz é inalienável, decorre de princípio constitucional, mas jamais de aplicações de decisões preconcebidas, também chamadas de stare decisis." (...) "Criada a referida súmula de aplicação obrigatória é possível fechar os escritórios de advocacia, as comarcas, calar a Ordem dos Advogados do Brasil e aposentar juízes, mas, é certo que, antes, o cidadão morrerá de injustiça. A súmula vinculante é uma maneira de oprimir o povo porque ele não tem consultoria jurídica em Brasília, nem força econômica para contratar os maiores juristas do país, ao passo que o governo, os bancos e as multinacionais, pelos caminhos certos, estabelecerão a imutabilidade futura das decisões que lhe favoreçam." (14).

Incontáveis outras abordagens, contrárias à súmula vinculante, poderiam ser colacionadas neste ensaio. Existem a mancheias, não raro brilhantemente defendidas. Mas os exemplos acima são significativos da recusa do instituto em apreciação.


6. Razões pelas quais acredito na eficiência das decisões vinculantes

Longe de mim ditar a última palavra sobre assunto tão polêmico. Longe de mim, também, a idéia de ficar omisso em face de questão tão crucial para todos os partícipes da cena jurídica. Daí a ousadia de listar alguns argumentos, derivados das observações que tenho empreendido sobre a matéria, visando unicamente estimular a busca de soluções para o caos em que está mergulhada a atividade jurisdicional.

Penso que o primeiro passo a ser empreendido por quem realmente deseja reverter o galopante necrosamento do Judiciário é despir-se de vaidades e de pruridos que, se afagam o ego, "afogam" a ação profissional e institucional (com perdão pelo trocadilho proposital). Basta a elevação do pensamento para os sítios do bem comum, para que sejam esquecidos ciúmes e receios que são diminutos, se comparados ao tamanho da crise ora analisada.

Não acho que a adoção do precedente vinculante seja uma invasão tão periculosa assim aos domínios do Poder Legislativo. Nos Países do Common Law, conforme é sabido, o costume judicial dá a tônica da prestação jurisdicional e nem por isso o Poder Legislativo é diminuído. O exemplo da Inglaterra é irrespondível.

Mas, considerando que o modelo de tripartição dos poderes não conta ainda três séculos (o que é muito pouco, em termos de história da humanidade), haveria algum mal terrível que fosse essa divisão repensada? Lembro agora as palavras de WALTER CENEVIVA, convocando os operadores jurídicos para a reversão dos problemas enfrentados neste passar de milênio: "A curto prazo não há luz no fim do túnel, mas as más conseqüências serão contornáveis se os operadores do direito compreenderem a conveniência da sua união para o enfrentamento das grandes teses. A tripartição dos poderes deve ser repensada. Estamos precisando de um novo Monstequieu no caminho de uma nova Ágora, na qual todos os cidadãos possam manifestar-se sobre os destinos da cidade. A Internet nos mostra que isso será tecnicamente possível em breve prazo." (15)

Volvendo ao cerne do questionamento ora posto, reitero não temer pela minha independência de juiz em face da vinculação das decisões superiores sumuladas. O modelo defendido pela Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB é marcado pela moderação naturalmente esperada de um ente representativo do pensamento dos juízes do Brasil. Assim, acolhendo a posição do Deputado Jairo Carneiro, relator do substitutivo da reforma constitucional pertinente, defende a AMB que "a edição da súmula vinculante somente será dada pelo voto de 3/5 dos membros do STF e Tribunais Superiores, após reiteradas decisões sobre a validade, a interpretação e eficácia de normas ou matérias específicas e determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica, sujeitas, ainda, ao controle de constitucionalidade", conforme reporta ANTONIO FERNANDO GUIMARÃES (16). Visto está, portanto, que a necessidade da ocorrência de repetidas decisões sobre a validade, a interpretação e a eficácia de certas normas ou de matérias especificadas, afasta por todo o "fantasma" da indébita invasão legislativa, dita perpetrável pelo Judiciário. Consolidar julgados reiteradamente discutidos pelo órgão ápice do Poder Judiciário não pode ser confundido com atividade legislativa anômala...

Outro ponto que foi bem acolhido pela AMB, através do seu Conselho Executivo e do seu Conselho de Representantes, diz respeito à alteração ou revisão das súmulas vinculantes. Pelo substitutivo Jairo Carneiro, será franqueado aos tribunais inferiores, ao Ministério Público da União ou dos Estados, à União, aos Estados ou ao Distrito Federal, ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e à Associação dos Magistrados Brasileiros a proposta de alteração ou de cancelamento da súmula editada.

Ainda conforme o substitutivo acima mencionado, a força vinculante da súmula está demonstrada pela possibilidade da oposição de reclamação, dirigida ao poder editante, quando a mesma não for aplicada por juízo inferior ou for desrespeitada por ente administrativo. Uma vez acatada a reclamação, será anulado o ato administrativo ou cassada a decisão judicial. Ainda que a reclamação não configure, em senso estrito, um recurso, decerto será um meio deveras hábil a inibir o poder público de procrastinar feitos judiciais ou providências administrativas em descompasso com a interpretação sumulada.

Por último, o mais polêmico dos temas: não adotando o juízo inferior o regramento passado pela súmula vinculante, estará o magistrado cometendo infração penal?

A elevada missão de distribuir justiça, ao instante em que o juiz é o próprio Estado, posto que integrante de um dos Poderes deste, não compadece ameaças ou ralhamentos prévios, ainda que editados no corpo da Constituição. Pela magnitude da atividade judicante e pela respeitabilidade que os juízes devem ostentar perante os jurisdicionados, acho perfeitamente desprezível a inserção, no texto legal, de ameaças de prisão ou de outras sanções negativas para os casos concretos de desatenção às súmulas vinculantes. Entretanto, não posso olvidar que o juiz, como servidor público lato sensu que é, está exposto ao cometimento de crimes contra a administração pública, máxime o de prevaricação. Assim, quando um juiz de inferior instância recebe um julgado do tribunal que lhe é superior e deixa de a ele dar cumprimento ao argumento de que, por exemplo, "não concorda com a posição doutrinária desposada pela corte", estará agindo criminosamente, imbuído por sentimento pessoal (CP, art. 319). Acho que quanto a isso não há dúvida.

De igual modo, tendo o Supremo Tribunal Federal sumulado um conjunto de decisões e ordenado que os juízos inferiores a eles rendam obediência, nada mais estará fazendo do que aquilo que faria, de forma fracionada, nos processos "a", "b", "c" .... E por qual razão o magistrado da instância inferior cumpre uma decisão isolada, sem opor discussões, e terá receios de cumprir um conjunto sumulado de decisões? Será que a mentalidade da magistratura brasileira ainda está sediada na época em que a reforma de uma sentença consistia num aviltamento ao trabalho do juiz singular? E se, sabido que o juiz pode perfeitamente ser sujeito ativo do crime de prevaricação, previsto há mais de meio século no Código Penal, por que haveria de recusar a possibilidade de ser também sujeito ativo de semelhante prática delituosa em um novo diploma legal?


7. Concluindo...

Na atual conjuntura experimentada pelo Poder Judiciário do Brasil, a edição da súmula vinculante constitui sério instrumento para imprimir maior velocidade e melhor racionalização na atividade jurisdicional, sem que isso macule a independência e a capacidade criativa dos juízes subordinados aos tribunais editores, principalmente se forem adotados mecanismos de revisão ágeis e democráticos.


NOTAS

(1) 2ª edição, São Paulo, José Bushatsky Editor, 1974, página 70.

(2) "Direito Sumular", em Revista Jurídica LEMI, nº 148, S. Paulo, março de 1980, página 44.

(3) "Instituições de Direito Civil", vol. I, 2ª edição (universitária), Rio de Janeiro, Forense, 1991, página 41. Obra citada, pág. 44.

(4) "O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência francesa", em Boletim Jurídico TRAVELNET, veiculado pela Internet, (http://www.travelnet.com.br/juridica), datado de 20.6.1996.

(5) Prefácio ao livro "Direito Sumular", de Roberto Rosas, 4ª edição, São Paulo, Editora RT, 1989, pág. 9. Mesma obra, pág. 8.

(6) Stare Decisis, tradução de Ellen Gracie Northfleet, em Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, vol. 122, Ed. Jurídica Vellenich, S. Paulo, 1994, págs. 56 e 57.

(7) ob. cit., pág. 58.

(8) ob. cit., pág. 60.

(9) "Justiça poderia evitar 90% dos processos", em Gazeta Mercantil, 12.02.1997.

(10) "Súmulas dogmáticas e interesse público", em O Estado de São Paulo, 17.02.1997.

(11) "Uma questão de incompatibilidade de gênios", publicado na home page da AMAERJ (http://www.nutecnet.com.br/amaerj), em 13.02.97.

(12) "A ditadura está chegando à Justiça", em Jornal do Comércio, Porto Alegre, 31.10.96.

(13) "Operadores do Direito", coluna Letras Jurídicas, Folha de São Paulo, edição de 07.12.96.

(14) "A AMB e a súmula vinculante", em Jornal do Magistrado, órgão oficial da AMB, ano VII, nº 39, dezembro/96, pág. 12.

Sobre o autor
Ivan Lira de Carvalho

juiz federal, professor de Direito na UFRN

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Ivan Lira. Decisões vinculantes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 41, 1 mai. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/254. Acesso em: 19 dez. 2024.

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