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A lei de licitações à luz da norma fundamental e do utilitarismo: A supressão das finalidades da licitação em favor do bem comum

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Agenda 30/10/2013 às 14:15

O formalismo da Lei de Licitações deve ser ceder em face do interesse público quando verificados desacordos com normas fundamentais norteadas pelo bem comum.

Resumo: A Lei n.º 8.666/93 trata dos princípios e algumas regras do procedimento licitatório brasileiro com excessivo formalismo. Porém, na prática, existe a possibilidade de a formalidade da lei, considerando cada caso concreto, por vezes, afastar direitos protegidos por normas fundamentais. Considerando que as normas fundamentais surgem, em tese, de Direitos Naturais inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis, deve-se ponderar as finalidades da lei instrumental das licitações diante dessas normas constitucionais fundamentais. Assim os princípios da licitação pública e todas as regras baseadas nestes ditames precípuos da Lei de Licitação, devem se adequar às normas fundamentais, ainda tendo em vista a utilidade/”vantajosidade” da lei infraconstitucional diante do bem comum, sendo este a finalidade dos direitos fundamentais do homem.

Palavras-chave: Princípios da Administração Pública; Princípios da Licitação Pública; Normas Fundamentais; Direito Natural; Utilitarismo.

SUMÁRIO: Introdução. 1.  A flexibilidade da “volutas” da lei de licitações diante das normas fundamentais (naturais) da Constituição. 2. A finalidade utilitarista das normas fundamentais capaz de afastar o interesse público da lei de licitação diante do caso concreto. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO

A Lei n.º 8.666/93 elenca em seu artigo 3º seus princípios e finalidades que norteiam todo o processo licitatório no Brasil. Ocorre que, nota-se pelas disposições o seu excessivo formalismo, o que determina, segundo o prisma da Lei de Licitações, uma vinculação inflexível entre particulares e o Estado, somente rompida em determinados momentos excepcionais de dispensa e inexigibilidade de licitação[1] (Art. 65 da Lei de Licitações), mas, visando sempre, em qualquer caso, a “vantajosidade” e a isonomia. Sobre o tema, se discute no presente trabalho quais as perspectivas do termo “vantajosidade” tratado pela lei, e se o princípio (da “vantajosidade”) diz respeito ao o que é vantajoso para o “interesse público” (Estado) ou para o “bem comum” (povo). Acerca da questão, discute-se a constitucionalidade da Lei de Licitações quando em confronto com disposições constitucionais (ou, mais especificadamente, com normas fundamentais) e sua finalidade prática, sob o prisma do utilitarismo (que visa o bem comum ou bem-estar social) tendo em vista a real utilidade das disposições de leis infraconstitucionais diante de casos concretos.

Desde as Ordenações Filipinas (século XIX)[2], diante da ausência de vagas para todos aqueles que podem vir a desejar participar da Administração Pública e da concorrência que esta falta poderia produzir (ou, de certa forma, sempre produz), surgiu a ideia de seleção, um “certame”, para, da disputa, emergirem aqueles mais qualificados ou que atendam melhor aos interesses públicos, presentes e/ou futuros[3]. Segundo Ronny Charles Lopes de Torres, hoje “a finalidade da licitação reúne a busca pela contratação mais vantajosa e o respeito ao tratamento igualitário e impessoal a todos os interessados em firmar a contratação administrativa (‘vantajosidade’ + ‘isonomia’)”. Sendo, desde já, entendidos os princípios da licitação como supervenientes às “balizas legais legitimamente estabelecidas”, caracterizando apenas finalidades relativas (e não absolutas)[4].

Para traduzir suas finalidades, a Lei n.º 8.666, de 21 de junho de 1993, expõe seus princípios basilares no seu Art. 3º:

“Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos”[5].

O primeiro princípio norteador da licitação exposto pelo dispositivo legal é a isonomia, que, por sua vez, determina que deva existir o livre acesso de qualquer interessado à disputa em busca da contratação com a Administração Pública. Salienta-se que a isonomia, segundo Marçal Justen Filho, incide tanto na primeira fase, quando “são fixados os critérios de diferenciação” no ato convocatório, quanto “depois de editado o ato convocatório” quando se inicia a fase externa da licitação (“a isonomia na execução da licitação”)[6].

Em conformidade com o pensamento de Maria Sylvia Di Pietro, o princípio acima, chamado também de (ou inserido no) “princípio da igualdade” (Art. 37, XXI, da Constituição Federal), permite que a Administração Pública escolha a melhor proposta[7], o que já o liga instantaneamente ao segundo princípio exposto no Art. 3º da Lei de Licitações, a “vantajosidade”. Sobre este último, chamado por Justen Filho de princípio da República (o qual “impõe a todo o governante o dever de promover a melhor gestão possível”), orienta a princípio da “vantajosidade” que a melhor proposta é justamente a mais vantajosa, mas, contudo, deve-se ater ao fato de que “a vantagem caracteriza-se como a adequação e satisfação do interesse coletivo por via da execução do contrato”[8].

Mas o doutrinador, em confronto com o que havia afirmado anteriormente, assevera que “a maior vantagem corresponde à situação de menor custo e maior benefício para a Administração”, sendo esta uma relação “custo-benefício” entre o particular contratante e o Estado[9]. Porém, o entendimento restringe a relação apenas às partes contratantes e elimina a vantagem (utilidade) para o povo (ou para o bem comum).

Expostos estes questionamentos mais adiante, tratando no momento dos teóricos princípios e finalidades da licitação, o Art. 3º da lei ainda expõe a “promoção do desenvolvimento nacional sustentável”[10], com a finalidade de se atender às leis e normas ambientais sem prejuízo dos demais normativos[11]. A seguir seguem a legalidade, a impessoalidade, a moralidade (que se vincula à probidade), e a publicidade, princípios constitucionais comuns a todo o Direito Administrativo. Sobre a legalidade (tratando da progressão de vinculação dos atos às leis), a qual disciplina toda e qualquer atividade administrativa (Art. 5º, II e 37, da CF), entende Justen Filho, que “há graus diversos de autonomia (dos atos e contratos), de modo que certos aspectos da competência são vinculados enquanto outros são discricionários”, e a “exaustão da discricionariedade” é “anterior à elaboração do instrumento convocatório” (princípio a vinculação ao edital)[12].

Daí falar-se em vinculação ao instrumento convocatório, já que o edital (“aviso” ou “convocação”) ou carta-convite são, de acordo com Edmir Netto de Araújo, “a oportunidade em que a Administração fixa as regras do jogo” (...), “que não podem ser modificadas com o jogo em andamento”, portanto é “a lei interna da licitação”. Segundo o mesmo, ainda, as regras do Edital devem seguir os princípios (e finalidades) da Lei das Licitações. A rigidez é tamanha que “no caso de necessidade (técnica, jurídica, financeira, formal, administrativa, de oportunidade/conveniência) de sua alteração antes da habilitação e abertura das propostas, o Poder Público é obrigado a reabrir (devolver) o prazo ainda fluindo aos licitantes, publicando a alteração”[13]. A inobservância do preceito gera a nulidade do procedimento, descumprindo também os princípios da publicidade, livre competição e do julgamento objetivo com base nas regras do edital[14].

Sobre o julgamento objetivo, também elencado expressamente no caput do Art. 3º da Lei de Licitações, o mesmo determina que “o julgamento das propostas há de ser feito de acordo com os critérios fixados no edital” pela Comissão de licitação[15]. Mas será que a vinculação é tão possante diante das tantas outras disposições normativas, incluindo as constitucionais?  Marçal Justen Filho, sobre o formalismo da Lei n. 8.666/93, diz que “não se cumpre a lei através do mero ritualismo dos atos” e o formalismo previsto visa exclusivamente o acolhimento da proposta mais vantajosa, gerando nulidade quando não o foi. E mais. O doutrinador ainda diz que “o trabalho de interpretação e aplicação desse diploma deve ser norteado à realização da solução mais justa e compatível com o sistema jurídico vigente” (todo o sistema)[16].

Então a rigidez formalista quando contraposta a “vantajosidade” pode desconstituir a finalidade primaz de qualquer norma do sistema jurídico, qual seja o bem comum. Daí se pensar se uma norma continuaria útil à coletividade (ou aos homens individualmente em suas condições humanas) quando o formalismo engessa os meios pelos quais atingiria sua finalidade. Novamente Marçal Justen Filho contribui para o tema. O doutrinador diz que “a vantajosidade abrange a economicidade, que é uma manifestação do dever de eficiência”[17], sendo esta, inclusive, um dos princípios e deveres da Administração Pública (inserida pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998) em “melhorar não apenas a organização e o pessoal do Estado, mas também suas finanças e todo o seu sistema institucional-legal, de forma a permitir que o mesmo tenha uma relação harmoniosa e positiva com a sociedade civil”[18].

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Apresentados alguns dos principais princípios da licitação pública (os quais norteiam todas as suas regras), quase todos eles fortemente interligados e baseados em previsões constitucionais, criam-se nesse ponto vários questionamentos. Se a formalidade da licitação existe, até quando esta é vantajosa? E a licitação deve ser vantajosa para quem? Qual seria a verdadeira finalidade/utilidade da lei de licitações, atender ao interesse público ou ao bem comum? A Lei de Licitações deve observar a vontade dela própria ou das normas fundamentais? Deve atender o que quer a Administração Pública (o Estado) ou o que deseja o povo? E, para atender as perguntas, como a Lei n.º 8.666/93 deve ser interpretada?

Para responder as questões, deve haver um retorno às finalidades da Lei de Licitações e associa-las às finalidades do Direito, buscando os preceitos no dispositivo que a criou, qual seja a Constituição Federal[19]. Porém existem diferenciações entre princípios fundamentais e gerais do direito constitucional[20], o quê cria uma necessidade de consultar suas normas fundamentais teoricamente imutáveis (ou naturais). A relevância do regresso às origens tem importância ímpar para a aplicação adequada da Lei n.º 8.666/93, tendo em vista sua “vantajosidade”/utilidade para os homens.  


1. A FLEXIBILIDADE DA VOLUTAS DA LEI DE LICITAÇÕES DIANTE DAS NORMAS FUNDAMENTAIS (NATURAIS) DA CONSTITUIÇÃO

Apresentados os princípios da Lei n.º 8.666/93 e os posteriores questionamentos, é evidente que não se esgotam suas finalidades (na própria lei) e, por sua vez, o fato inviabiliza sua formalidade. Em combate a formalidade da lei infraconstitucional, assevera Marçal Justen Filho sobre a natureza instrumental da licitação:

“Daí se segue, primeiramente, que a licitação é um instrumento jurídico para a realização de valores fundamentais e a concretização dos fins impostos à Administração Pública. Portanto, a licitação não apresenta fins em si próprios. É imperioso ter em vista que a realização das formalidades próprias à licitação não satisfaz, de modo automático, os interesses protegidos pelo Direito”[21].

O autor ainda afirma que existe uma “espécie de presunção jurídica” da efetiva observância das formalidades próprias da licitação, efetividade essa caracterizada pelo atendimento dos fins do Direito, o que de modo algum pode “transformar a licitação numa espécie de solenidade litúrgica, em que se ignora sua natureza teleológica”. Mas, por outro lado, diz que a natureza instrumental da licitação não pode caracterizar-se um argumento para a fuga da Lei de Licitações[22]. E é nesse último ponto onde reside a discórdia.

O último entendimento de Justen Filho elimina a obediência das leis infraconstitucionais à Constituição e à unidade do Direito, distanciando os fatos concretos novos, que podem ser acobertados pela Carta Magna, dos ditames constitucionais, e, sujeitando-os apenas a Lei de Licitações. A medida engessa os fatos e, ao mesmo tempo flexibiliza as que não podem ser flexibilizadas, qual sejam, as normas fundamentais constitucionais. Ademais, mesmo que a lei licitatória seja vinculada ao artigo 37 da CF, este último dispositivo (“a matriz constitucional do dispositivo”[23]), diante de um caso específico no mundo do ser (diferente do dever-ser), pode conflitar com outros ditames constitucionais mais sensíveis, como os princípios e garantias fundamentais expostos no artigo 5º da mesma Carta Maior.

Não bastando, o artigo 37 da Constituição Federal não é suficientemente clara sobre as licitações, e nem poderia, pois seria impossível prever todas as possibilidades de acontecimentos surgidos em variados processos licitatórios. Ademais, há de se questionar qual a finalidade da Lei das Licitações e do artigo 37 da Carta Maior. Paulo Nader afirma que o Direito “se contenta com o mínimo ético, ou seja, com o mínimo de moral necessária ao bem-estar social”[24]. A afirmação do doutrinador traz a tona o alicerce do Direito: o bem-estar social, uma finalidade que flexibiliza até a moralidade, princípio presente tanto na Lei de Licitações, quanto no artigo 37 da CF.

E como atingir a finalidade da lei, quando esta não atende aquela? Frente à ineficiência da lei ou sua inaplicabilidade, “pois o Direito divorciado da realidade não cumpre a sua finalidade e constitui um obstáculo ao progresso”, o aplicador deve seguir a fonte principal (“acessorium sequitur suum principale” – o acessório segue o principal), qual seja o Direito Natural traduzido em princípios fundamentais inspiradores dos princípios gerais do Direito (“diretivas mais abstratas e amplas”), estes os quais, por sua vez, indissociáveis do Jus Naturae[25]. Lembrando que a questão não trata da falta de norma para ao caso concreto e sim da ineficiência dela diante de uma norma constitucional superior (ou primaz), tendo em vista um caso concreto onde existe um direito que é atacado pela própria Lei de Licitações e sua rigidez.

Partindo do ponto presente, pergunta-se: qual seria a finalidade da norma? Sobre o questionamento, primeiramente, cientificada está a comunidade jurídica que existe uma “oscilação entre um fator subjetivo – o pensamento do legislador – e outro objetivo – o espírito do povo”. Essa “oscilação” se traduz em duas teorias, a subjetivista (volutas legislatoris) e a objetivista (volutas legis), respectivamente[26]. Considerando os dias atuais, existe uma prevalência da corrente objetivista a passo que, aqueles que afirmam que o legislador é apenas uma ficção, vencem “pelo argumento da integração, pelo qual só a concepção que leve em conta os fatores objetivos em sua contínua mutação social explica a complementação e até mesmo a criação do direito pela jurisprudência”[27].

Desse modo, é presumível constatar que a vontade da lei emerge do povo e não da lei em si, já que nem mesmo o legislador é necessariamente relevante para a formação da “volutas”. Daí se perguntar o quê o povo quer das normas ou, o quê o povo espera da Lei n.º 8.666/93? É seguro acreditar que a Lei de Licitações quando foi redigida e publicada emitiu a vontade de preservar os bens públicos e o conceito frágil de justiça, mas, sobretudo, a vontade primordial traduzida em Direitos Naturais, certamente não teve a intenção de afastar direitos e garantias fundamentais (ou mesmo os princípios gerais do direito, ligados ao Direito Natural), pois esses últimos regem o que há de mais sensível e relevante em uma sociedade.

Assim, constatando que o Direito surge verdadeiramente antes da positivação das vontades dos homens de Estado (administradores públicos e legisladores), ou seja, emerge do “espírito do povo”, necessária é a diferenciação dos conceitos de “interesse público” e “bem comum”, ligando o primeiro aos anseios da máquina pública e o último à verdadeira vontade do povo. A separação entre os conceitos é necessária para afastar o chamado “desvio de poder” ou “desvio de finalidade”, pois, na verdade, a finalidade do Direito (administrativo ou não, vista a unidade do Direito) não é o interesse público e sim o bem comum. Partindo dessas ideias é oportuna a vinculação entre o conceito de bem comum com a ideologia utilitarista, pois esta se dedica ao estudo da exposição do que seria o bem comum ou o bem-estar social, e afasta definitivamente a mistura entre os interesses do Estado e dos homens do povo.


2. A FINALIDADE UTILITARISTA DAS NORMAS FUNDAMENTAIS CAPAZ DE AFASTAR O INTERESSE PÚBLICO DA LEI DE LICITAÇÃO DIANTE DO CASO CONCRETO

Baseando-se no fato de que a Lei de Licitações não se afastou, e nem deveria se afastar, dos ditames pétreos da Constituição Federal, entendendo estes como as finalidades reais de qualquer norma, lei ou regra, percebe-se que até estes conceitos (direitos e garantias fundamentais) encontram-se em constante mutação. Os direitos fundamentais podem ser entendidos como “direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem”[28]. Mas, mesmo com tantas definições, existem características inerentes a esses, quais sejam, a inalienabilidade ou indisponibilidade, a imprescritibilidade e a irrenunciabilidade[29].

Já sobre o conceito de “garantias” existem interpretações divergentes. Alguns, como Ruy Barbosa fazia, diferem estas dos diretos fundamentais, entendendo que estes são “meramente declaratórios” e as garantias são “disposições assecuratórias” dos primeiros. Já Sampaio Dória afirmou que “os direitos são garantias, e as garantias são direitos”. Mas, segundo José Afonso da Silva, com contribuições de Luiz Bazdresch, Ferreira Filho, Grinover, Cunha Feraz, e Leovigildo Filgueiras, explica dois dos sentidos de garantia constitucional, o qual seria:

“(1) reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais; assim, a declaração de direitos seria simplesmente um compromisso de respeitar a existência e o exercício desses direitos, que não provêm de lei alguma, senão diretamente da qualidade e dos atributos naturais do ser humano; parte-se da ideia de que os direitos preexistem à Constituição, que não os cria nem outorga, reconhece-os apenas os garante; é uma ideia vinculada à concepção do direito natural ou da supra-estatalidade dos direitos fundamentais; (2) prescrições que vedam determinadas ações do poder público, ou formalidades prescritas pelas Constituições, para abrigarem dos abusos do poder e das violações possíveis de seus concidadãos os constitutivos da personalidade individual”[30].

Os entendimentos das correntes doutrinárias apresentam uma ideia de que existe um compromisso firmado na Constituição de garantir os direitos fundamentais (naturais), sendo que esses últimos poderiam até mesmo não estar previstos, já que apenas existem. Há então a ideia de superioridade das normas fundamentais e do risco de supressão dessas até pelo Poder Público (que cria leis infraconstitucionais). 

Em resumo, o que é relevante para o tema em tela é o entendimento da imperiosa importância de alguns direitos constitucionais (normas fundamentais) em face das leis infraconstitucionais. Devido à relação, a valoração comparativa entre normas fundamentais e leis espaças obriga o intérprete do ordenamento a adequar as últimas às primeiras, reside aí a necessidade da melhor interpretação das leis para que estas se adequem às normas fundamentais. Quanto ao tipo de interpretação mais adequada para o objetivo exposto, as interpretações teleológica e axiológica versam sobre a corrida até a finalidade da norma, qual seja o bem comum[31].

Mas, todavia, não há de se confundir “bem comum” com “interesse público”[32]. Desconstituindo a natureza absoluta dos princípios da legislação das licitações e rejeitando a “supremacia” do interesse público, a distinção dos conceitos é apresentada com maestria por Marçal Justen Filho, sendo evidente a clara incidência da ideologia utilitarista em seu raciocínio:

“A multiplicidade de interesses e a pluralidade de sujeitos existentes em sociedade não podem ser ignoradas. A realização da dignidade de um sujeito não pode ser produzida às custas do sacrifício da dignidade alheia. Existem muitos interesses protegidos e isso não autoriza a destruição de valores fundamentais. Promover a concretização dos princípios significa, necessariamente, conjugar os diversos valores e interesses, de modo a realizar a todos do modo mais intenso e satisfatório. (...) Justamente por isso, rejeita-se a tese tradicional da ‘supremacia’ do interesse público. O único valor supremo é a dignidade humana. A expressão ‘interesse público’ não apresenta conteúdo próprio, específico e determinado. Costuma ser invocada para a satisfação dos interesses escolhidos pelo governante, o que é absolutamente incompatível com a ordem jurírico-constitucional vigente”[33].

Aproveitando todos os elementos e palavras da salutar concatenação teórica, chega-se a conclusão que o bem comum, traduzido em direitos fundamentais, vistos alhures como superiores às leis (e até a própria Carta Maior), podem suprimir os princípios legais expostos na Lei n. 8.666/93, entendendo que esses traduzem apenas o interesse público (estatal). E mais, ainda no já visto exercício da constatação da finalidade (vontade ou volutas) do Direito, pode-se fazer uma analogia entre interesse público e a corrente subjetivista (volutas legislatoris) e, entre o bem comum e a corrente objetivista (volutas legis). Sendo o bem comum traduzido na vontade do povo e o interesse público como os anseios dos homens de Estado. A diferenciação entre os conceitos de “interesse público” e “bem comum”, evidenciando o último como a finalidade do Direito (uno), pode caracterizar a não observância do bem comum como um desvio de poder ou desvio de finalidade[34], o que transformaria em inconstitucional o ato ou contrato administrativo.

O conceito de bem comum tem relação semiótica com a ideologia utilitarista, pois esta está na constante busca daquele.  Procurando entender o cerne do utilitarismo, com o fim de encontrar a vontade dos homens, Tim Mulgan, afirma que “os filósofos utilitaristas modernos falam em termos mais neutros (do que ‘felicidade’): bem-estar, bem-estar social, ‘o que quer que faça a vida valer a pena’; ao passo que os utilitaristas economistas tendem a usar o termo técnico de Bentham: utilidade”[35]. Assim, as normas fundamentais entendidas como corolário do bem comum (e não do interesse público) e baseadas não no bem-estar geral, mais individual, já que o núcleo duro da Constituição trata de direitos individuais, determinam tudo e todas as outras normas originárias daquelas. Portanto, por exemplo, o que é vantajoso (princípio da vantajosidade exposto no caput do Art. 3º da Lei 8.666/93) para a Administração Pública (e sua saúde financeira) pode não o ser para o bem comum, entendendo este como, não só a coletividade, mas as pessoas individualmente (e seus direitos fundamentais individuais)[36].

O utilitarismo ainda se liga aos fins da norma fundamental quando insere em seu pensamento a teoria da preferência, excluindo o paternalismo entranhado no hedonismo. A distinção entre hedonismo e a teoria da preferência (utilitarista) é descrita por Robert Nozick em seu conto “a máquina de experiência”, onde Ella (uma personagem) tem a oportunidade de viver em uma constante condição de bem-estar:

“Ella tem duas opções. Pode viver o resto da sua vida no mundo ordinário, ou pode ser conectada a uma máquina de experiência. Uma vez dentro da máquina, ela vai esquecer que está nela. Eletrodos ligados ao seu cérebro vão conferir-lhe exatamente as mesmas experiências que teria no mundo real, exceto que a sua vida será mais agradável. Ela será mais feliz, mais bonita, mais saudável, mais rica, mais bem sucedida – com mais amigos e menos sofrimento em sua vida. O que Ella deve fazer?”[37]

Segundo Tim Mulgan, já que a máquina teoricamente promove prazer, um “hedonista devoto forçaria as pessoas à máquina de experiência para tornar suas vidas melhores contra a sua vontade, ao passo que um teórico da preferência deixaria cada pessoa escolher por ela mesma”. A determinação paternalista do hedonismo, pressupondo que alguns sabem o que é melhor para outros, eliminaria de plano qualquer possibilidade de existirem pessoas que preferem uma conexão com a realidade pura[38]. A questão é de máxima relevância para a razão de ser do Estado. A determinação paternalista dos homens que governam pode confrontar com o que Montesquieu chama de “espírito do povo”, assim, desse modo, para o pai do atual sistema dos três poderes, “existem duas espécies de tirania: uma real, a qual consiste na violência do governo; a outra de opinião, e se faz sentir quando aqueles que governam ferem o modo de pensar de uma nação”[39].

Portanto seria inapropriada a determinação (do alto – interesse público) do que seria a preferência do povo (bem comum), eliminando as normas fundamentais fundadas em direitos naturais. Aliás seria não só inapropriada, mas inconstitucional. Assim, quando imposto o interesse público por meio de lei infraconstitucional, atacando o que determina a norma fundamental (em conformidade com o bem comum), cria-se, como chama José Afonso da Silva, uma “incompatibilidade vertical”, já que as normas inferiores somente valerão se estiverem em conformidade com as superiores. O desacordo ataca a unidade do Direito, como afirma o doutrinador:

“Essa inconformidade vertical de normas inferiores (leis, decretos etc.) com a constituição é o que, tecnicamente, se chama inconstitucionalidade das leis ou atos do Poder Público, e que se manifesta sob dois aspectos: (a) formalmente, quando tais normas são formadas por autoridades incompetentes ou em desacordo com formalidades ou procedimentos estabelecidos pela constituição; (b) materialmente, quando o conteúdo de tais leis ou atos contraria preceito ou princípio da constituição. Essa incompatibilidade não pode perdurar, porque contrasta com o princípio da coerência e harmonia das normas do ordenamento jurídico, entendido, por isso mesmo, como a reunião de normas vinculadas entre si por uma fundamentação unitária”[40].

A desconsideração da vontade popular sobre seus próprios direitos individuais não se abriga apenas em discussões sobre constitucionalidade ou inconstitucionalidade. A questão é mais prática do que aparenta, já que o bem-estar social neutraliza conflitos sociais e mantem a ordem pública. A ideia não é difícil de ser compreendida. Há uma relação entre as normas fundamentais e o utilitarismo e, esse relacionamento trata, especificamente, de segurança jurídica. Assim, v.g., as pessoas acreditam na norma porque acham que esta é útil para elas, e em contrapartida, se, por acaso, os indivíduos duvidarem de sua utilidade, a norma perde sua razão de existência. Ou seja, todo o sistema normativo necessita desesperadamente de crença. Configurada está aí a necessidade de segurança jurídica, valor este tão prestigiado por toda a doutrina.

Assim, v.g., no recente leilão do campo de Libra[41] podem ter sido avaliados tanto os benefícios para o bem comum, quanto para o interesse público. Mas, é de importância suprema que o bem-estar social, protegido pelos direitos que surgem da vontade do povo (independente de estarem positivados em leis infraconstitucionais ou mesmo na Carta Maior), seja vislumbrado, pois a sua não observância afastaria a finalidade das normas fundamentais e do Direito (considerando sua unidade), não importando as finalidades expostas no artigo 3º da Lei de Licitações. Assim, a licitação seria lícita, não só porque a ausência de concorrentes é legal, mas sim porque condiz com o bem comum, sendo o interesse público irrelevante diante do bem-estar social. Em contrapartida, se o bem comum não foi observado, a licitação carece de legitimidade, pois destoou do que determina o Direito.

E novamente os conceitos se interligam. Para Paulo Nader, a segurança jurídica, “em todas as suas dimensões, é indispensável ao bem-estar das pessoas. A segurança jurídica pode ser considerada objetivamente ou subjetivamente. Sob o primeiro aspecto é garantia efetiva de que os interesses principais dos seres humanos se encontram devidamente protegidos (...). Sob o aspecto subjetivo, há segurança quando, atendidas as condições objetivas, os indivíduos se sentem efetivamente protegidos em seus legítimos interesses”[42]. Portanto, a vontade do povo está nas normas fundamentais, pensar diferente é atentar contra a segurança jurídica e, consequentemente, em último caso, à existência do próprio Estado.

O tema transcende os assuntos da Lei de Licitações e abarca toda a produção legislativa dependente da norma fundamental. Desse modo, todo o ordenamento jurídico deve ser útil sob o prisma dos direitos naturais entendidos como indispensáveis aos seres humanos e reconhecidos por estes últimos nesta condição. Portanto, a ideia de supressão de quaisquer disposições legais que colidam com o bem comum, mesmo que de interesse público (do Estado), deve ser aceita diante, não só da perspectiva teórica do valor de sua constitucionalidade, mas, também, de sua aceitação prática pelos homens, já que a negação das normas produziria o caos da insegurança jurídica.

Sobre o autor
Lucas Maia Carvalho Muniz

Bacharelando do curso de Direito na Faculdade Ruy Barbosa.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MUNIZ, Lucas Maia Carvalho. A lei de licitações à luz da norma fundamental e do utilitarismo: A supressão das finalidades da licitação em favor do bem comum. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3773, 30 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25631. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Orientadora: Juliette Robichez, mestre e doutora em direito pela Université Paris I - Panthéon Sorbonne (França). Professora de Direito Internacional.

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