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Da coculpabilidade penal

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Agenda 20/11/2013 às 07:43

4 ASPECTOS SOCIAIS

4.1 A Falência do Direito Penal: Instrumento de Controle Social da Classe Dominante

O Direito como um todo existe para regular a vida em sociedade. As normas jurídicas se prestam a disciplinar as condutas dos cidadãos, sendo indispensáveis ao convívio coletivo.

Cada sociedade tem seu próprio “direito”. Em outras palavras, as normas de determinado grupo social não podem ser aplicadas a outra sociedade de forma uniforme, pois o fenômeno jurídico apenas pode ser entendido quando se leva em conta a sociedade para o qual se destina e visa regular, conforme ensinamento de Paulo Queiroz, “O direito, que, como norma de conduta, padroniza coercitivamente certos comportamentos, não pode ser compreendido senão em referência (e a partir) ao sistema social em que se insere”.[9]

Nesta seara está inserido o Direito Penal. O Direito Penal, como um todo, nada mais é do que um meio de controle social, junto com os outros ramos do Direito, visto que seu escopo é solucionar conflitos. Cabe ao Direito Penal determinar infrações de natureza penal e suas respectivas sanções, visando tornar possível a convivência pacífica.

Hoje em dia o Direito Penal é praticamente o único ramo do direito a impor pena corporal, consistente em restrição da liberdade de locomoção. Estas penas, ou medidas de segurança se prestam a sancionar condutas previamente eleitas pelo Estado como ilícitas para alcançar o fim precípuo, que é a harmonia na convivência social. Nesse sentido:

O Direito Penal é o setor do ordenamento jurídico que define crimes, comina penas e prevê medidas de segurança aplicáveis aos autores das condutas incriminadas. A definição de crimes se realiza pela descrição de condutas proibidas; a cominação de penas e a previsão de medidas de segurança se realiza pela delimitação de escalas punitivas ou assecuratórias aplicáveis, respectivamente, aos autores imputáveis ou inimputáveis de fatos puníveis.[10]

Vale dizer que o Direito Penal é regido pelo princípio da subsidiariedade. Neste sentido, o Direito Penal é o ramo do Direito que só é utilizado quando os outros ramos falham em coibir uma conduta considerada incompatível com a vida em sociedade. Além disso, decorre da aludida subsidiariedade e também da fragmentariedade do Direito Penal que este deve tutelar apenas os bens jurídicos tidos como mais importante, e punindo apenas as condutas mais danosas.

O Direito Penal é a chamada Ultima Ratio, ou, ultima razão do Estado, eis que possui a forma mais violenta de punição e a mais opressora dos meios de controle social. Continuando com as lições de Paulo Queiroz:

O caráter subsidiário do direito penal em face de outras formas de controle social decorre, portanto, de imperativo político-criminal proibitivo do excesso: não se justifica o emprego de um instrumento especialmente lesivo da liberdade se se dispõe de meios menos gravosos e mais adequados de intervenção, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade.[11]

Este caráter subsidiário e fragmentário exige, ou deveria exigir, do legislador maior cuidado ao selecionar bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal.

Assim, dignos ou merecedores de tutela são aqueles bens que integram a ordem constitucional por terem sido reconhecidos em uma dada sociedade como relevantes para sua conservação, observando-se que essa dignidade não é suficiente para justificar a criminalização, fazendo-se ainda mister verificar, no caso concreto, se existe a necessidade da tutela de natureza penal.[12]

Inobstante, na prática, não se verifica a seleção criteriosa de bens jurídicos a serem tuteladas pelo Direito Penal.

Ao contrário, o que se verifica é que a classe dominante é quem determinas quais serão os bens jurídicos tutelados, as condutas proibidas e as penas cominadas, além, é óbvio, quais pessoas serão selecionadas como clientes do Direito Penal.

A bem da verdade, os princípios garantidores do Direito Penal são relativizados em nome da vontade da classe detentora do poder. Notoriamente o Direito Penal é elaborado em prol da classe economicamente dominante em prejuízo dos menos abastados, as classes excluídas e marginalizadas. Este é o entendimento de Grégore Moura, “Esses valores, porém, são escolhidos e determinados pela “classe dominante”, fazendo do sistema penal um produto ideológico, ou seja, reflete a ideologia política, sociológica e filosófica da classe “privilegiada” em determinado período histórico”.[13]

Desta forma, o Direito Penal se apresenta formalmente como um sistema justo e igualitário. Contudo, materialmente, quando posto em prática, demonstra características amplamente discriminatória, haja vista atingir quase que exclusivamente pessoas pertencentes a círculos sociais específicos.

Este é o entendimento de Zaffaroni e Pierangeli:, “[...] o direito é sempre a expressão do poder da classe dominante, que impõe seus valores do bem e do mal às classes dominadas. No século XIX, Marx viria sustentar que o direito é a superestrutura ideológica da classe dominante para submeter as classes exploradas”[14]

Desta forma, a conclusão necessária é a de que o Direito Penal encontra-se carente de legitimação, eis que não se aplica a todos de forma igualitária. Ademais, o Direito Penal desencadeia uma verdadeira desestruturação social, tendo em conta seu caráter criminógeno, seletista e excludente (QUEIROZ, ob. cit.pag. 100).

Esta deslegitimação decorre do fato de que o Direito Penal, na prática, não cumpre sua função de prevenção geral e especial, conforme acentuado por Rogério Greco, “Quando o Estado consegue fazer valer o seu ius puniendi, com a aplicação da pena previamente cominada pela lei penal, essa pena não cumpre as funções que lhe são conferidas, isto é, as funções de reprovar e prevenir o delito”.[15].

A prevenção geral seria aquela dirigida á toda sociedade, reforçando a proteção dos bens jurídicos tutelados e desmotivando a prática delituosa. No entanto, empiricamente se percebe que as pessoas se afastam da prática delituosa por motivos de índole moral, e não apenas pelo fato da lei a proibir e cominar uma sanção.

Já no que diz respeito à prevenção especial, que vem a ser aquela dirigida ao condenado, com o fito de ressocializar e coibir a reincidência, é flagrante a deslegitimação, eis que o tirocínio demonstra a total falência desta missão. O que realmente ocorre é o “estigma” do delinquente.

Tudo isto não é novidade, conforme se depreende dos ensinamentos de Juarez Cirino dos Santos.

[D]epois desses momentos decisivos da história do direito penal e da criminologia, não é mais possível explicar a prisão pela ideologia penal, expressa na teoria polifuncional da pena criminal como retribuição, prevenção especial e prevenção geral do crime; igualmente, não é mais possível explicar a pena criminal pelo comportamento criminoso, porque exprime a criminalização seletiva de marginalizados sociais, excluídos dos processos de trabalho e consumo social, realizada pelo sistema de justiça criminal (polícia, justiça e prisão); enfim, também não é possível explicar o crime pela simples lesão de bens jurídicos, porque exprime a proteção seletiva de valores do sistema de poder econômico e político de formação social. Ao contrário, somente a lógica contraditória da relação social fundamental capital/trabalho assalariado pode explicar a proteção seletiva de bens jurídicos pelo legislador, a criminalização seletiva de sujeitos com indicadores sociais negativos e, finalmente, a prisão como instituição central de controle social formal, da sociedade capitalista.[16]

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Para além dos fatores já citados, outro fator que corrobora para o reconhecimento da deslegitimação do Direito Penal é a chamada “cifra oculta, referentes a um volume imenso de fatos que apesar de sua aparente tipicidade não recebem qualquer resposta do sistema penal. Tais cifras, em determinados delitos, alcançam percentuais espantosos”.[17].

Significa dizer que a maior parte dos “fatos criminosos” jamais serão alcançados pelo Direito Penal, geralmente porque desconhecido o fato ou mesmo o autor, podendo-se afirmar que a regra no sistema penal não é a condenação, mas sim a escusa.

Destarte, todo o arcabouço até aqui delineado, demonstrando a falência e elitização do sistema penal, vem a fundamentar e demonstrar a necessidade de institutos tais como o princípio da coculpabilidade, ou mesmo a necessidade da pena, parte integrante da reprovabilidade no funcionalismo penal de Roxin, com vistas a imputar ao Estado e a sociedade a sua parcela de responsabilidade, pelo não cumprimento inclusive de norma constitucional, o princípio da igualdade material.

Tais princípios e teorias visam reerguer e legitimar o Direito Penal, buscando evitar que este continue a ser utilizado para segregar e reafirmar o poder da classe dominante, transformando-o em um sistema igualitário e justo.


5 ASPECTOS PRÁTICOS

5.1 Doutrina

Estabelecida as premissas teóricas do princípio da coculpabilidade, bem como seu fundamento constitucional e os aspectos sociais que culminaram com a construção do aludido princípio, é hora de analisar como se dá a aplicação do princípio da coculpabilidade na prática.

Primeiramente, impende destacar que o princípio da coculpabilidade, como já dito, não é expressamente previsto no ordenamento jurídico pátrio, sendo por completo uma construção dos jurisconsulto, através da interpretação das normas vigentes.

Primeiramente, entende a melhor doutrina que o princípio da coculpabilidade deve servir de parâmetro para o legislador, visando evitar a criação de tipos que venham a perpetuar a exclusão social e a marginalização de parcela da sociedade.

Grégore Moura, em monografia sobre o tema aqui em comento, visualiza a aplicação do princípio da coculpabilidade na criação de um “espírito crítico e responsável” que deve orientar toda a sociedade.

A diminuição do poder de autodeterminar-se deve ser reconhecida por meio da corresponsabilidade do Estado e da sociedade. Acentue-se, no entanto, que o princípio da coculpabilidade não elimina a seletividade do sistema penal, mas atua como princípio corretor dessa seletividade, diminuindo sobremaneira seus impactos, dando ensejo ao desenvolvimento de um espírito crítico e responsável que oriente toda a sociedade.[18]

Como dito, a coculpabilidade consiste no reconhecimento da parcela de culpa do Estado e da sociedade no cometimento de delitos por cidadãos marginalizados e excluídos socialmente.

Contudo, seria impossível, na prática, imputar a conduta delituosa ao Estado, pois, é óbvio, que o Estado, titular do jus puniendi não pode se “autopunir” penalmente. Além do fato de que os outros pressupostos do delito, conduta, elemento subjetivo, e etc, não se verificarem em relação ao Estado.

Cumpre registrar que alguns ordenamentos jurídicos alienígenas já positivaram o princípio da coculpabilidade, a exemplo do código penal peruano de 1991, que em seu art. 45, I, leciona que: “Artículo 45.- Presupuestos para fundamentar y determinar la pena El Juez, al momento de fundamentar y determinar la pena, deberá tener en cuenta: 1. Las carencias sociales que hubiere sufrido el agente; (...).

No mesmo sentido, o Código Penal da Argentina, em seu artigo 41, 1º, traz previsão expressa do princípio da coculpabilidade.

ARTICULO 41.- A los efectos del artículo anterior, se tendrá en cuenta:

[...]

2º. La edad, la educación, las costumbres y la conducta precedente del sujeto, la calidad de los motivos que lo determinaron a delinquir, especialmente la miseria o la dificultad de ganarse el sustento propio necesario y el de los suyos, la participación que haya tomado en el hecho, las reincidencias en que hubiera incurrido y los demás antecedentes y condiciones personales, así como los vínculos personales, la calidad de las personas y las circunstancias de tiempo, lugar, modo y ocasión que demuestren su mayor o menor peligrosidad. El juez deberá tomar conocimiento directo y de visu del sujeto, de la víctima y de las circunstancias del hecho en la medida requerida para cada caso.

Inobstante os exemplos das codificações vizinhas, enquanto não se positiva o princípio da coculpabilidade no ordenamento jurídico brasileiro, sua aplicação prática é construída pela doutrina, não havendo consenso em como esta aplicação se dá.

Para Rogério Greco, o princípio da coculpabilidade ora deve ser uma atenuante genérica, com fulcro no art. 66 do Código Penal, e ora acarreta a absolvição do autor, por conta de seu atuar não culpável.

Mas, na prática, como podemos levar a efeito essa divisão de responsabilidade entre a sociedade e aquele que, em virtude de sua situação de exclusão social, praticou determinada infração penal? Não podemos, obviamente, pedir a cada membro do corpo social que cumpra um pouco da pena a ser aplicada. Assim, teremos, na verdade, duas opções: a  primeira, dependendo da situação de exclusão social que se encontre a pessoa que, em tese, praticou um fato definido como crime será a sua absolvição; a segunda, a aplicação do art. 66 do Código Penal.[19]

Prossegue o ilustre autor, exemplificando sua conclusão:

Suponhamos que, durante uma ronda policial, um casal de mendigos, cuja ‘morada’ é embaixo de um viaduto, seja surpreendido no momento em que praticava relação sexual. Ali, embora seja um local público, é o único lugar onde esse casal conseguiu se estabelecer, em face da inexistência de oportunidades de trabalho, ou mesmo de programas destinados a retirar as pessoas miseráveis da rua a fim de colocá-las em lugar habitável e decente. Poderíamos, assim, atribuir a esse casal a prática do delito de ato obsceno, tipificado pelo art. 233 do Código Penal? Entendemos que não, pois que foi a própria sociedade que o marginalizou e o obrigou a criar um mundo próprio, uma sociedade paralela, sem as regras ditadas por essa sociedade formal, legalista e opressora. Não poderíamos, portanto, no exemplo fornecido, concluir que o casal atuou culpavelmente, quando a responsabilidade, na verdade, seria da sociedade que os obrigou a isso. Pode acontecer, contudo, que alguém pratique determinada infração penal porque, marginalizado pela própria sociedade, não consegue emprego e, por essa razão, o meio social no qual foi forçosamente inserido entende que seja razoável tomar com as próprias mãos aquilo que a sociedade não lhe permite conquistar com seu trabalho. A divisão de responsabilidades entre o agente e a sociedade permitirá a aplicação de uma atenuante genérica, diminuindo, pois, a reprimenda relativa à infração penal por ele cometida.[20]

Seguindo o mesmo raciocínio, Juarez Cirino dos Santos, também defende o reconhecimento da coculpabilidade como circunstância atenuante genérica, com fundamento no mesmo art. 66 do Código Penal.

Finalmente, as circunstâncias atenuantes não-expressas admitidas textualmente no art. 66 do CP, constituem outras características relevantes do fato anteriores ou posteriores ao crime, não previstas legalmente mas capazes de influir no juízo de reprovação do autor pela realização do tipo injusto. Assim, crimes realizados no contexto de condições sociais adversas, por sujeitos marginalizados do mercado de trabalho e do processo de consumo, insuficientes para configurar o conflito de deveres como situação de exculpação, podem caracterizar a circunstância atenuante inominada do art. 66, porque exprimiriam hipóteses de co-culpabilidade da sociedade organizada no poder do Estado, pela sonegação de iguais oportunidades sociais.[21]

Aníbal Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho coadunam da posição dos autores até aqui citados, asseverando que:

Pelos motivos expostos até o momento, objetivaremos nossa hipótese de trabalho na seguinte afirmação: a precária situação econômica do imputado deve ser priorizada como circunstância atenuante obrigatória no momento da cominação da pena. Apesar de não estar prevista no rol de circunstâncias atenuantes do art. 65 do Código Penal brasileiro, a norma do art. 66 possibilita a recepção do princípio da co-culpabilidade, pois demonstra o caráter não taxativo das causas de atenuação. O Código Penal, ao permitir a diminuição da pena em razão de “circunstância relevante” anterior ou posterior ao crime, embora não prevista em lei, já fornece um mecanismo para a implementação deste instrumento de igualização e justiça social.[22]

Vale dizer que praticamente a totalidade da doutrina que admite o princípio da insignificância defende sua aplicação como atenuante genérica, com fulcro no artigo 66 do Código Penal, assim como os autores citados.

5.2 Jurisprudência

Em que pese toda a argumentação até aqui esposada, no sentido da viabilidade e fundamentação teórica para a aplicação do princípio da coculpabilidade a jurisprudência tem se mantido reticente quanto a aplicação do aludido princípio, principalmente ao argumento de que a coculpabilidade não é positivada no ordenamento jurídico pátrio, ou que esta teoria não poderia ser enquadrada como causa atenuante genérica, com fundamento no art. 66 do Código Penal.

Esta tem sido a posição do Superior Tribunal de Justiça.

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. CONDENAÇÃO. APELAÇÃO JULGADA.

PRETENSÕES DE ABSOLVIÇÃO E DESCLASSIFICAÇÃO. VIA INADEQUADA. EXAME APROFUNDADO DAS PROVAS. TEORIA DA CO-CULPABILIDADE DO ESTADO. NÃO CONFIGURAÇÃO. ORDEM DENEGADA.

1.  Hipótese em que as instâncias originárias examinaram, com profundidade, os elementos de convicção produzidos nos autos da ação penal, concluindo pela condenação do paciente. Inviável atender a pretensão defensiva, de absolvição ou desclassificação da conduta, nesta via estreita do mandamus, em que vedado o revolvimento fático-probatório.

2. O Superior Tribunal de Justiça não tem admitido a aplicação da teoria da co-culpabilidade do Estado como justificativa para a prática de delitos. Ademais, conforme ressaltou a Corte estadual, sequer restou demonstrado ter sido o paciente prejudicado por suas condições sociais.

3. Habeas corpus denegado.[23]

CRIMINAL. HABEAS CORPUS. ROUBO. DOSIMETRIA. PENA-BASE FIXADA ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO. TESE NÃO APRECIADA PELO TRIBUNAL A QUO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. TESE DE CO-CULPABILIDADE.

NÃO APRECIAÇÃO PELO JUIZ SINGULAR. AUSÊNCIA DE NULIDADE. SENTENÇA FUNDAMENTADA. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E DENEGADA.

[...]

III. A teoria da co-culpabilidade, invocada pelo impetrante, no lugar de explicitar a responsabilidade moral, a reprovação da conduta ilícita e o louvor à honestidade, fornece uma justificativa àqueles que apresentam inclinação para a vida delituosa, estimulando-os a afastar da consciência, mesmo que em parte, a culpa por seus atos.[24]

Vale dizer que os Tribunais de Justiça também não tem adotado a teoria da coculpabilidade, conforme os acórdãos que seguem, a título de ilustração.

ROUBO SIMPLES. RECURSO DEFENSIVO. REJEIÇÃO DA QUESTÃO PRELIMINAR SUSCITADA DE INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 610 DO CPP. CONJUNTO PROBATÓRIO CONTUNDENTE A EMBASAR O ÉDITO CODENATÓRIO. ABRANDAMENTO DA PENA-BASE AO PATAMAR MÍNIMO COMINADO. PLEITO DE APLICAÇÃO DA CAUSA ATENUANTE GENÉRICA QUE NÃO MERECE PROSPERAR. ESTABELECIMENTO DO REGIME PRISONAL ABERTO. O apelante foi condenado pela prática delituosa prevista no artigo 157, caput do Código Penal às penas finais de 04 anos e 08 meses de reclusão, em regime semiaberto, e pagamento de 11 dias-multa. A questão preliminar suscitada pela Defesa de inaplicabilidade do artigo 610 do CPP deve ser rejeitada, sendo certo, que a jurisprudência pátria entende absolutamente cabível e necessária a atuação do Ministério Público nesta instância, como órgão fiscalizador da aplicação da lei penal, que em nada se confunde com sua atuação acusatória no 1º grau de jurisdição. No mérito, constata-se que autoria e materialidade delitivas restaram plenamente demonstradas por meio do robusto conjunto probatório trazido aos autos. Neste contexto, não há que se falar em fragilidade do reconhecimento judicial realizado pela vítima, uma vez que a mesma reconheceu, extreme de dúvidas, o réu, que possui características físicas singulares, como o autor dos fatos narrados na exordial oferecida pelo órgão do parquet. Em relação à dosimetria da pena, verifica-se que o Juiz monocrático utilizou-se de anotações de condenações em 1ª instância, sem trânsito em julgado, para justificar o aumento da pena-base aplicada ao apelante, o que fere o princípio constitucional da presunção de inocência. Assim, a pena-base deve ser redimensionada ao seu patamar mínimo cominado. Precedentes. Descabido o reconhecimento da circunstância atenuante rotulada de coculpabilidade estatal, sendo certo que a Defesa não carreou aos autos elementos que apontem parcela de responsabilidade a ser atribuída ao Estado na conduta do apelante. O regime de cumprimento de pena deve ser abrandado para aberto, face à circunstâncias objetivas e subjetivas previstas no artigo 33 do Código Penal. Face ao exposto, voto pelo conhecimento e parcial provimento do apelo defensivo para acomodar as penas finais do apelante Luis Felipe Del Bosco Fonseca em 04 anos de reclusão, em regime aberto, e pagamento de 10 dias-multa, mantida, no mais, a sentença vergastada.[25]

Mesmo o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, conhecido pela posição vanguardista de seus julgamentos, não vem aceitando e aplicado a teoria da coculpabilidade.

APELAÇÃO CRIME. FURTO QUALIFICADO. PERÍCIA. DOSIMETRIA. CULPABILIDADE. COCULPABILIDADE. REINCIDÊNCIA. MULTA. 1. Nos termos dos artigos 158 e 167, do CPP, o exame pericial direto é indispensável nos crimes que deixam vestígios, como é o caso do furto qualificado pelo rompimento de obstáculo. Inexistente esse, imperativo o afastamento dessa qualificadora. 2. Não há valoração negativa da circunstância do art. 59 do CP de culpabilidade aferida em grau médio, visto que pressupõe ser a do homem mediano, sendo neutralizada esta vetorial. 3. Não há previsão legal para a aplicação da "atenuante de coculpabilidade do Estado", não havendo nenhuma circunstância relevante no caso sub judice - esta sim prevista no art. 66 do CP - para a atenuação da pena. Outrossim, é notório que a criminalidade atinge a todas as classes sociais, indistintamente. Também é forçoso reconhecer que o Estado não cumpre com todas as suas obrigações assistenciais ao indivíduo, mas isso não quer dizer que tenha que ser responsabilizado por atos praticados por livre arbítrio dos agentes, não sendo a pobreza fator determinante para o cometimento de crimes. 4. A reincidência prestigia a isonomia, uma vez que confere tratamento desigual e mais gravoso ao réu que ostenta anterior condenação transitada em julgado. Agravante da reincidência aplicada. 6. Inviável substituição de pena, na forma doa RT. 44, II, do CP. 5. A multa é uma das três modalidades de pena cominadas pelo diploma penal e no preceito secundário do tipo no qual foi incurso o acusado está prevista de forma cumulativa, de modo que o seu afastamento implicaria em verdadeira afronta à lei. 6. Pena redimensionada, inclusive a de multa. APELAÇÃO DEFENSIVA PARCIALMENTE PROVIDA.[26]

Pelos julgados acima transcritos, percebe-se que, apesar da eloquência dos argumentos a favor da aplicação do princípio da coculpabilidade, a jurisprudência atual e peremptória em não admitir a aplicação do aludido princípio.

5.3 Necessária positivação do princípio da coculpabilidade

Como visto, a ausência de previsão expressa do princípio da coculpabilidade no ordenamento jurídico vem frustrando sua aplicação prática pelos tribunais pátrios. Sua positivação, a exemplo dos ordenamentos jurídicos de Peru e Argentina, é de suma importância para sua efetividade prática.

Firmada a premissa de que a positivação se faz necessária, a questão passa a ser como este instituto deve ser integrado ao ordenamento jurídico.

O aludido princípio poderia ser integrado ao art. 59 do Código Penal, como circunstância judicial a ser analisada quando da fixação da pena base. Contudo, tendo em conta que a regra é a fixação da pena base no mínimo legal, e que na primeira fase do calculo de pena há impossibilidade de redução da pena aquém do mínimo, a aludida proposta se mostra discreta.

Uma segunda possibilidade seria incluir a coculpabilidade como uma atenuante, no rol das elencadas no art. 65 do Código Penal.

Novamente, tal inclusão não traria grandes utilidades práticas vez que, em que pese o art. 65 afirmar que “são circunstâncias que sempre atenuam a pena” o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento pacifico (vide súmula nº 231 do STJ), no sentido da impossibilidade de diminuição da pena aquém do mínimo legal nesta segunda fase de aplicação de pena.

Assim, proposta mais ousada consiste em tornar a coculpabilidade causa genérica de diminuição de pena, incluindo o instituto no art. 29 do Código Penal, se a condição de miserabilidade vier a interferir de forma direta no cometimento do delito:

[D]izendo que se o agente estiver submetido a precárias condições culturais, econômicas, sociais, num estado de hipossuficiência e miserabilidade sua pena será diminuída de um 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços). Assim, quanto pior as condições elencadas no supracitado parágrafo, maior seria a redução da pena. [27]

Esta é a posição de Grégore Moura, que prossegue afirmando:

É, a nosso sentir, a melhor hipótese para a positivação da co-culpabilidade, pois é a mais consentânea com o Direito democrático e liberal, na esteira do garantismo penal, uma vez que permite melhor individualização da pena aplicada, além de poder reduzir a pena aquém do mínimo legal, dirimindo qualquer dúvida nesse aspecto, com incidência na terceira fase de sua aplicação.[28]

Contudo, existe ainda uma proposta mais audaciosa, sustentando a positivação da coculpabilidade como causa de exclusão da culpabilidade.

A coculpabilidade seria positivada como uma causa de exclusão da culpabilidade, visto que o estado social de miserabilidade e vulnerabilidade do cidadão é tão caótico, proeminente e elevado, que sobre o agente não incidiria qualquer reprovação social e penal, já que seu comportamento, além de ser esperado pelos seus co-cidadãos, é conseqüência exclusiva da inadimplência do Estado.[29]

Ao que parece, é isso que sustenta Regério Greco para alguns casos, como no caso dos mendigos moradores de rua flagrados praticando ato obsceno, trecho já transcrito.

Analisando cada uma das hipóteses sustentadas, é de se concluir que a mais correta e correlata com os princípios constitucionais da igualdade material e da individualização da pena seria a previsão da coculpabilidade como causa geral de diminuição de pena, conforme defende Grégore Moura, além da previsão da exclusão da culpabilidade em casos extremos, como o exemplo trazido por Rogério Greco, dos mendigos totalmente excluídos da sociedade formal, que vivem em um “mundo próprio”, tendo como “lar” o vão de um viaduto.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOLDRINI, Luan Campos. Da coculpabilidade penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3794, 20 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25909. Acesso em: 30 abr. 2024.

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