4 Segunda vertente de controle: desarticular a ação dos cabeças no domínio do fato
Pode um policial, eventualmente, cometer excessos e abusos no desempenho da sua função, ainda que “(...) o papel da polícia em uma sociedade democrática seja a de auxiliar os cidadãos e fazer com que todos observem as leis” (COMPARATO, 2005, pg. 4). Entretanto, quando um mesmo policial ou vários policiais de uma mesma Unidade ou instituição policial passam a praticar sucessivas condutas infracionais, algo de muito grave está acontecendo e, invariavelmente, direta ou indiretamente, teremos como responsável solidário ou intelectual, um profissional de direção, do qual passaremos a identificar como cabeça.
O Código Penal Militar, assim dispõe sobre os cabeças:
Art. 53. Quem de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas.
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§ 4º Na prática de crime de autoria coletiva necessária, reputam-se cabeças os que dirigem, provocam, instigam ou excitam a ação.
§ 5º Quando o crime é cometido por inferiores e um ou mais oficiais, são estes considerados cabeças, assim como os inferiores que exercem função de oficial.
De forma parecida, o Código Penal Brasileiro, destaca o concurso de pessoas, dispondo:
Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.
§ 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço.
§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.
Em matéria de direito, quando tratamos de distinguir autor e partícipe, um dos critérios utilizados é o final-objetivo, ou em outras palavras, a teoria do domínio do fato, fruto da construção do finalismo de Hans Welzel, sendo dominante na Alemanha, seguida por Roxin e Jescheck, também aceito no direito penal brasileiro, conforme destaca Bierrenbach em seu livro “Teoria do Crime” (2009, pg. 242). Para essa teoria, o autor da conduta criminosa não precisa estar inserido nas hipóteses de autor executor ou mediato, bastando dominar funcionalmente o fato. Nessa linha de raciocínio, eliminamos mentalmente a conduta do agente e verificamos se, sem ela, o delito fracassaria, possibilitando concluir que se trata de conduta de autor.
Pois bem, se um dirigente de uma Unidade policial qualquer, defende a estúpida e criminosa apologia do discurso de que bandido bom é bandido morto, os fins justificam os meios e de que os infratores são inimigos da sociedade, ninguém duvida se tratar de um profissional perfeitamente apto a estabelecer critérios pouco ortodoxos para se fazer cumprir a lei. Com o domínio da estrutura e do poder de polícia, esse cabeça tem plenas condições de identificar sob seu comando, subordinados dispostos a levar em curso esse raciocínio, articulando escalas de serviço constituídas de policiais dispostos à prática de violência para a indevida e desproporcional aplicação da lei. Ainda, fornecerá armamento e toda a logística necessária a propiciar um ambiente adequado para os fins lícitos e ilícitos que lhes sejam convenientes.
Por outro lado, ainda que não estabeleça uma relação de participação dolosa com o executor da ação violenta, muitos cabeças fecharão os olhos para a recorrente prática de delitos de seus subordinados, e embora tenham a obrigatoriedade moral e legal de afastá-los das ruas, imediatamente, manterão a estrutura intacta, pois algumas condutas fora de controle justificam a redução dos índices de criminalidade, assegurando cumprir com os acordos de resultados estipulados pelo Estado para mensuração da eficiência policial. Por último, outros cabeças não abrirão mão da famigerada amizade de caserna e da necessidade de se legitimar como um chefe operacional, sob pena de se manter ilhado em sua própria Unidade, uma vez que o pensamento ideológico do grupo sufoca a voz da estrita legalidade e inibe a eficiência da tropa.
Essa é uma incômoda verdade, tanto que ao fazer a apresentação do livro do jornalista Caco Barcellos, “Rota 66”, Narciso Kalifi (1992, pg. 5) afirma que escolher o lado certo, o da justiça, profissionais sofrem muitas pressões, pois lutam por princípios, não sendo um lado confortável e que exige talento, sensibilidade mas, antes de tudo, coragem. Na verdade, muitos cabeças se encontram entre a cruz e a espada, e por vezes são obrigados a adotar postura omissiva diante de arbitrariedades praticadas por seus subordinados. Sabem da existência de uma velada imposição institucional que prestigia e legitima a existência desses homens, haja vista o elevado índice de recompensas administrativas recebidas por profissionais violentos. Como destaca Barcellos (1992, pg. 239), esses homens são, não raras as vezes, “(,,,) policiais que conquistaram inúmeros elogios, troféus, promoções, ocuparam funções de prestígio e gozam do respeito corporativo em diversos níveis hierárquicos”. E não tenham dúvida, a percepção do jornalista evidenciando a existência de policiais violentos e heróis nos anos noventa, viceja ardente neste século XXI.
Na introdução dos “indicadores para avaliar o funcionamento policial” no México, de autoria de Alejandra Mohor[11] (2013/b, pg. 2), ao se discorrer sobre notas e experiências para a reforma policial, a especialista afirma que:
La policía se constituye como la puerta de acceso al sistema de justicia, aquella que está en contacto permanente con la ciudadanía, con las víctimas y los victimarios. Es también la que concentra el mayor número de procedimientos operativos, tiene presencia en todo el territorio de una nación y es habitualmente responsabilizada, desde la mirada ciudadana, por el estado de la seguridad pública. Por lo anterior es que resultará fundamental incorporar de manera permanente sistemas de medición de la actuación policial que permitan efectuar un monitoreo sobre ella y el cumplimiento de sus objetivos.
Muito além da importância de se estabelecer indicadores que forneçam medidas que ajudem a elaborar dados significativos sobre o trabalho policial, como de impacto, resultados e processos, carece medir a relação dos dirigentes de forças policiais com seus subordinados e com a aceitação ou não da violência como forma de trabalho (indicadores de más práticas). Para tanto, as Unidades policiais devem e podem ser comparadas em dados que indiquem a ocorrência de condutas violentas entre seus integrantes e a postura dos cabeças com esses eventos. Identificar agentes e facilitadores de ações criminosas, afastando-os imediatamente do comando e das ruas é uma providência imprescindível para o controle da atividade policial.
Ao estudar o comportamento criminoso de policiais militares americanos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, o psicólogo Philip Zimbardo identificou que esses profissionais realizavam toda a ação com total conhecimento e autorização velada de seus superiores e comandantes. Entretanto, durante um dos processos para julgamento por crimes de tortura nessa prisão, ao atuar como assistente da defesa de um dos policiais, constatou que os mesmos comandantes negavam participação no evento, afirmando de “que o erro era inteiramente de índole, uma consequência de o Sgt Chip Frederick ter escolhido livremente envolver-se com o mal” (2012, pg. 14). Para o estudioso, a postura dos comandantes militares americanos apenas:
Contribuiu para minha consternação perceber que muitos relatórios investigativos “independentes” depositaram claramente a culpa pelos abusos aos pés dos oficiais superiores e em suas lideranças omissas e defeituosas. Tais relatórios, conduzidos por generais e antigos oficiais do governo de altas patentes, tornaram evidentes que a hierarquia militar e civil erigira um “barril podre”, no qual um grupo de bons soldados foi transformado em “maças podres”. (grifos nossos)
O acompanhamento do ambiente institucional e sua relação ideológica com a violência no exercício da atividade é uma vertente significativa de controle que merece ser trabalhada, pois a ajuda externa e social propiciará na conformação de uma nova relação entre cabeça e corpo de tropa.
Fatalmente, em seu esforço para cumprir com as metas constitucionais, pode acontecer de a polícia incorrer em más práticas como violência desnecessária e arbitrariedades em suas ações (MOHOR, 2007, pg. 7), entretanto, mesmo que as corporações estejam trabalhando efetivamente para sedimentar formas legítimas de atuação profissional, a opção para a prática da estrita legalidade jamais será alcançada, embora possa ser efetivamente restaurada a parâmetros razoáveis de comportamento ético. Por fim, ainda que o estudo elaborado por Alejandra Mohor não identifique indicadores vinculados diretamente ao comportamento motivacional negativo dos cabeças em relação aos subordinados, como indicadores de más práticas policiais, a pesquisadora mexicana enumera algumas válidas sugestões (2007, pg. 15):
Indicadores de malas prácticas:
En el marco del proyecto Metágora, FUNDAR, Centro de Análisis e Investigación indagó en las Irregularidades, abuso de poder y maltrato en el Distrito Federal y la relación de los agentes policiales y del Ministerio Público con la población. El estudio realizado viene a complementar los datos posibles de obtener de fuentes institucionales (ONG’s de derechos humanos y departamento de Asuntos Internos de la Policía) respecto de dichas malas prácticas policiales. Se trata de un estudio cuantitativo y cualitativo que mide dichos hechos en el Distrito Federal de México.
Indicadores vinculados a las fuerzas policiales
1. Porcentaje de contactos con abuso policial respecto del total de contactos con la policía
2. Porcentaje de contactos con abuso físico y no físico respecto del total com abuso.
3. Porcentajes de abusos según formas de abuso:
a. Solicitar dinero (mordida)
b. Insultar o humillar a alguien
c. Amenazar con levantar cargos falsos
d. Amenazar para obtener información o una confesión
e. Amenazar de lastimar a la persona
Além do rol de indicadores supra descritos, é oportuno salientar o desenvolvimento pela Corregedoria da Polícia Militar de Minas Gerais, sob a coordenação de profissionais de segurança e da área de saúde, de uma ferramenta de controle que, se viabilizada, irá estabelecer um diferencial significativo e inovador na eficiência e eficácia da ação de controle. Trata-se de uma tecnologia de informação denominada de “Sistema de Alarme Prévio” e que poderá ser aproveitado por todos os órgãos de controle, interno, externo e social. Por essa ferramenta estratégica, os eventos praticados por determinado policial ou em determinada Unidade/Região territorial, alimentarão um banco de dados que comunicará, automaticamente, um perfil de agente ou de área que mereça acompanhamento especial e intervenção ativo-preventiva, antes que se torne um fator de investigação para ações reativas. O projeto em fase avançada de desenvolvimento teórico aguarda oportunidade de investimentos financeiros para sua viabilidade, que pode facilmente ser satisfeito pelo envolvimento dos demais agentes de controle.
Certo é que o menor valor investido em atividades de prevenção anula os elevados gastos em trabalhos de investigação e castigo, a não ser pelo fato de que manter ambientes de conflito seja oportuno para determinados seguimentos políticos. Inegavelmente, há mais ações de estado voltadas para a satisfação de interesses particulares, se considerarmos os resultados com a solução de problemas públicos. Como afirma o jurista e doutrinador latinoamericano Eugenio Raúl Zaffaroni (2009, pg. 16), “(...) vivemos um tempo em que se criar a figura do “inimigo” se tornou importante mecanismo para justificar guerras unilaterais com fins claramente econômicos e, por conseguinte, providenciais ‘estados de exceção’, em série e em alta velocidade”.
5 Terceira vertente de controle: o registro físico da abordagem policial
Devemos ter em mente que, deflagrado um evento negativo resultante de uma abordagem policial, o que determinará a legalidade ou ilegalidade da ação serão os meios de provas disponíveis para se apurar a conduta. A máxima em um processo de investigação não é o que eu ou as pessoas sabem sobre o ocorrido, mas o que podemos provar nos autos, assim, o testemunho é interessante, mas o vídeo é convincente. Basta verificar o que aconteceu durante a copa das confederações neste ano de 2013 no Brasil, muito do que aconteceu nas ruas não seria esclarecido adequadamente se não fossem as inúmeras imagens captadas por câmeras de redes de televisão e por equipamentos eletrônicos de particulares. Sem a tecnologia audiovisual, a busca da justiça seria sustentada em temerosas versões de vítimas, agressores e testemunhas, sem, contudo, jamais alcançarmos a verdade dos fatos.
Postas essas considerações e vencidas as primeiras etapas, ainda resta ativar a vertente mais tecnológica da atividade de controle. A capacidade intelectiva e as ferramentas humanas de fiscalização são relativamente eficientes para selecionar os melhores candidatos às carreiras policiais, formar e treinar bons profissionais de segurança e identificar ótimos chefes. Agora, do ponto de vista operacional, não são minimamente capazes de conter os ímpetos humanos suscetíveis à prática de atos de corrupção e violência. No teatro de operações do policial, o espaço público e privado, somente equipamentos de registro audiovisuais são capazes de conter a tentação advinda de uma vida sob o domínio do perigo.
O estudo da violência policial, invariavelmente, nos remete a análise de um fenômeno que tem início no processo conhecido como abordagem, do qual resultam inúmeros procedimentos a serem observados pelo profissional de segurança. Esse processo inicia-se no labor da rua e encerra-se, em regra, no local da abordagem ou no registro da ocorrência no interior de delegacias. Para a pesquisadora Tânia Pinc[12] (2007, pg. 6), da Universidade de São Paulo, a abordagem “é um encontro entre a polícia e o público cujos procedimentos adotados variam de acordo com as circunstâncias e com a avaliação feita pelo policial sobre a pessoa com que interage, podendo estar relacionada ao crime ou a um procedimento policial”. Prossegue a estudiosa afirmando que este momento de encontro entre a força pública e a sociedade “(...) desagrada, se não todas, a grande parte das pessoas que passam por essa experiência”, simplesmente porque “(...) ninguém gosta de ter seus direitos cerceados e sua privacidade invadida, mesmo que seja por alguns minutos”.
E quando o cidadão não gosta da abordagem sofrida, seja ela legítima ou ilegítima, resta em muitos casos, o registro da notícia de um suposto excesso ou de abuso praticado pelo policial. Deflagrada a investigação pela autoridade administrativa, de polícia judiciária civil ou militar, ou pelo Ministério Público, o que se verifica ao final é a comprovação dos fatos ou o respectivo arquivamento do procedimento por insuficiência de provas, diga-se de passagem, a regra, isso quando não ocorre a morte de vítimas e testemunhas. Em todos os casos, uma investigação possui caráter bastante oneroso, pelo empenho prolongado de pessoas e de recursos logísticos o que, inequivocamente, seria bastante facilitado se existisse a gravação audiovisual do fato noticiado.
No Brasil, a Polícia Militar do Distrito Federal ganhou mais esta ferramenta de controle. Desde o final de 2012, os policiais da ROTAM (Rondas Ostensivas Táticas Motorizadas), grupo especializado em ocorrências de grande complexidade e periculosidade, vem se utilizando de câmeras adaptadas a óculos[13] que entram em funcionamento durante as operações. A ideia é usar as imagens e os sons como provas em processos e registrar com precisão como acontece a abordagem policial. De acordo com o Tenente Coronel Leonardo Santana[14], comandante (cabeça) da Rotam, “(...) o equipamento legitima o trabalho dos policiais (corpo) e ajuda nas investigações das ocorrências atendidas pela corporação”. O equipamento adquirido pela polícia do distrito federal já é utilizado nos Estados Unidos e está em fase de testes na Nova Zelândia e Colômbia. Ainda de acordo com o Comandante Santana, “além da transparência na atividade policial, o equipamento é um investimento que se justifica pela eficiência e eficácia no combate ao crime”. Sem sombra de dúvidas, uma ferramenta extraordinária com informações preciosas a ser compartilhada por todos os órgãos de controle interno, externo e social da atividade policial.
O determinante desse inovador equipamento tecnológico de registro audiovisual, felizmente, contraria a equivocada percepção daqueles que defendem somente a necessidade de vigiar o policial nas ruas. O que ele se propõe é, antes de tudo, melhorar o comportamento de todas as partes durante abordagens policiais, reduzir a ocorrência de queixas inverídicas e de processos pela captura precisa do vídeo da perspectiva do profissional de segurança. Esse comportamento economiza tempo e aumenta a eficiência dos agentes da lei que podem dedicar mais tempo a atividades de prevenção com uma dinâmica de trabalho que propicia a redução de esforços administrativos e judiciais levados a efeito pelas investigações. E o melhor dos resultados, aumenta a confiança do público e cria comunidades mais seguras por um custo muito menor.