Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A greve do servidor público civil e os direitos humanos

Exibindo página 2 de 4
Agenda 01/02/2002 às 01:00

5. POSIÇÃO DA ONU

            A DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos contempla de forma implícita o direito de greve, ao estabelecer, no seu art. XX, n. 1, que "Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas", e no art. XXIII, n. 4, ao garantir que toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses."

            Já foi dito em linhas pretéritas que, ao proclamar o direito de reunião e associação, bem como o direito de organizar e associar-se a sindicatos, a DUDH acaba por reconhecer o direito de greve que, a rigor, constitui uma forma proteção dos interesses da pessoa que trabalha.

            Embora a DUDH não contenha referência expressa ao direito de greve, cumpre sublinhar que a Resolução n. 2.200 (A), de 16.12.1966, adotada na XXI Assembléia Geral da ONU, que instituiu o PIDESC – Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, enaltece, no art. 8, n. 1, d, in verbis:

            "Art. 8. 1. Os Estados Partes do presente Pacto se comprometem a garantir:

            (...) d) o direito de greve exercido em conformidade com as leis de cada país".


6. POSIÇÃO DA UNIÃO EUROPÉIA

            A Carta Social Européia, de 1961, dispõe textualmente no art. 6, n. 4, in verbis:

            "Art. 6 – A fim de assegurar o exercício eficaz do direito de negociação coletiva, as Partes Contratantes

            .................................

            reconhecem:

            4. O direito dos trabalhadores e dos empregadores, em caso de conflito de interesses, a recorrera a ações coletivas, inclusive o direito de greve, sob ressalva das obrigações que possam resultar das convenções coletivas em vigor".

            Esse documento internacional é de extrema importância, não apenas sob o aspecto político, filosófico e sociológico que historicamente representam os padrões ideais de vida oriundos das democracias ocidentais do continente europeu, mas igualmente sob a perspectiva jurídico-dogmática, uma vez que consolida a idéia de que, efetivamente, a greve constitui um legítimo instrumento para assegurar o eficaz direito de negociação coletiva.


7. POSIÇÃO DA OIT

            A Organização Internacional do Trabalho - OIT não possui convenção específica sobre greve, mas a doutrina é praticamente unânime em afirmar que as Convenções 87 e 98, que dispõem sobre liberdade sindical e negociação coletiva(5), contemplam, implicitamente, a greve como um direito fundamental dos trabalhadores, tanto do setor público quanto do setor privado, sendo certo que apenas os funcionários das forças armadas podem ter, segundo aquele organismo internacional, algumas restrições ou até mesmo vedações ao exercício do direito de greve.

            É importante assinalar que a Convenção 151 da OIT(6), também conhecida como "Convenção sobre as Relações de Trabalho na Administração Pública", no seus consideranda, reconhece, entre outros aspectos, a expansão dos serviços prestados pela administração pública em muitos países e a necessidade de que existam sadias relações de trabalho entre as autoridades públicas e as organizações de empregados públicos.(7) Para tanto, prescreve expressamente no seu art. 7º, in verbis:

            "Deverão ser adotadas, sendo necessário, medidas adequadas às condições nacionais para estimular e fomentar o pleno desenvolvimento e utilização de procedimentos de negociação entre as autoridades públicas competentes e as organizações de empregados públicos sobre as condições de emprego,(8) ou de quaisquer outros métodos que permitam aos representantes de empregados públicos participar na determinação de tais condições".

            No que tange à greve do servidor público, o Comitê de Liberdade Sindical vem editando verbetes no sentido do recomendar que os países membros reconheçam a greve como um direito dos servidores públicos, somente admitindo restrições em casos muito particulares.

            Nesse sentido, o Comitê editou o verbete n. 394, que dispõe:

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

            "O direito de greve só pode ser objeto de restrições, inclusive proibição, na função pública, sendo funcionários públicos aqueles que atuam como órgãos de poder público, ou nos serviços essenciais no sentido estrito do termo, isto é, aqueles serviços cuja interrupção possa pôr em perigo a vida, a segurança ou a saúde da pessoa, no todo ou em parte da população".

            Segundo a OIT, pois, "só são pertinentes as limitações aplicadas aos funcionários públicos que atuem na qualidade de órgãos do poder público. Não se incluem, porém, nesta categoria os trabalhadores públicos dos setores de educação ou dos transportes".(9)

            O verbete n. 386 cuida da possibilidade de conciliação a arbitragem em serviços essenciais e funções públicas.

            Esses verbetes, é imperioso ressaltar, vinculam o Brasil, uma vez que a nosso país se reportam os informes correspondentes da OIT.(10)

            Vê-se, assim, que a orientação da OIT é no sentido de permitir amplamente a greve dos servidores públicos civis, salvo para aqueles que atuam como órgãos de poder público, isto é, os que exercem parcela da soberania do Estado, como os juízes, membros do Ministério Público, diplomatas, ministros, secretários, diretores das estatais etc.


8. A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

            A Constituição de 1988 insere o direito de greve no elenco dos direitos sociais fundamentais dos trabalhadores do setor privado, nos seguintes termos:

            "Art. 9º - É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

            § 1º - A lei definirá os serviços e atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.

            § 2º - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei".

            Não há mais lugar, portanto, para a proibição de greve nos serviços essenciais, mas há necessidade de se atender às necessidades inadiáveis da comunidade.

            Aos servidores públicos civis, quer investidos em cargos, quer investidos em empregos, também foi reconhecido, no art. 37, inciso VII, da CF/88, o direito de greve. Todavia, o legislador constituinte estabeleceu que exercício desse direito dependeria da edição posterior de lei complementar que, diga-se de passagem, jamais fora editada. Pelo contrário, ao invés de regulamentar o direito de greve mediante lei complementar, o legislador ordinário preferiu alterar a redação original da Carta através da Emenda Constitucional n. 19/98, estabelecendo, assim, no que concerne ao servidor público civil, que "o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica".


9. A MORA LEGISLATORIS EM REGULAMENTAR O EXERCÍCIO DO DIREITO

            No âmbito da Administração Pública direta, autárquica e fundacional não há negar que a mora legislatoris em regulamentar o inciso VIl do art. 37 da Constituição tem suscitado tormentosas discussões doutrinárias e jurisprudenciais.

            Duas correntes se destacam.

            A primeira sustenta a eficácia contida(11) do preceito em exame, pelo que possível o exercício do direito antes mesmo da edição de lei complementar(12), sendo aplicável, por analogia, a Lei 7783/89(13).

            A segunda, entendendo ser o referido dispositivo not self-executing, advoga no sentido de que o servidor somente poderá exercer o direito de greve após editada norma infraconstitucional (antes, lei complementar; agora, "lei específica"), exigida, também, pela Emenda Constitucional n. 19/98. Dito de outro modo, a segunda corrente sustenta que a norma constitucional é de eficácia limitada.

            O STF, quando vigia a redação original do inciso VII do art. 37 da CF, adotou a segunda corrente, como se infere do seguinte julgado:

            "Insuficiência de relevo de fundamentação jurídica em exame cautelar, da argüição de inconstitucionalidade de decreto estadual que não está a regular (como propõem os requerentes) o exercício do direito de greve pelos servidores públicos; mas a disciplinar uma conduta julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal, até que venha a ser editada a lei complementar prevista no art. 37, VII, da Carta de 1988 (M.I. n. 20, sessão de 19.5.94).´ (STF-TP- ADIN n. 1306-BA, Rel. Min. Octavio Galloti, requerentes: Partido dos Trabalhadores - PT e outros; requerido: Governador do Estado da Bahia, j. 30.06.95, DJU 27.10.95, p. 01806 - os grifos não constam do original).


10. A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 19 E A RECEPÇÃO DA LEI N. 7.783/89

            Cremos que, em virtude da novel Emenda Constitucional ri. 19/98, que não mais menciona ´lei complementar", mas, tão-somente, "lei especifica", a orientação até então reinante no Pretório Excelso está a exigir urgente modificação.

            Ora, diante do atual texto constitucional, parece-nos que, enquanto não for editada a referida lei específica para regular o exercício do direito de greve do servidor público, mostra-se perfeitamente aplicável, por analogia, a atual Lei (específica) de Greve (Lei ri. 7.783/89).

            Com efeito, o art. 16 da lei n. 7.783189, que exigia lei complementar para regular o exercício do direito de greve do servidor público, não mais vigora no nosso ordenamento jurídico, porquanto incompatível com o texto atual da Carta Magna. Em outros termos, o art. 16 da LG não foi recepcionado pelo art. 37, VII, da Constituição.

            Ademais, se não há, no sistema referente ao processo legislativo, distinção entre as leis ordinárias e específicas (a expressão "lei específica", a rigor, não encontra previsão no art. 59 da Constituição), também não há falar em hierarquia entre tais modalidades normativas.

            Dessa forma, diante da lacuna existente e, considerando o fenômeno da recepção da atual Lei de Greve pela nova Emenda Constitucional n. 19, cabe ao intérprete, pelo menos até que sobrevenha (se é que isso verdadeiramente venha a acontecer) a nova "lei especifica", dar a máxima efetividade à norma constitucional, mediante a integração do sistema.

            Colhe-se, por oportuno, o judicioso entendimento de lvani Contini Bramante, para quem

            "Visitando o ordenamento, verifica-se que já existe no mundo jurídico uma lei ordinária federal que regula, especificamente, o direito de greve, as atividades essenciais e o atendimento às necessidades inadiáveis da comunidade: a lei 7.783, de 28 de junho de 1989.

            Inicialmente, cumpre verificar que o art. 16, da lei 7.783/89, está revogado (...) E, aqui, ocorreu a chamada eficácia revogativa ou eficácia negativa, que também é desobstrutiva, pois a norma constitucional traçou novo esquema dependente para a sua atuação, exigente de uma lei ordinária normativa, diferente do sistema anterior, o qual remetia à lei complementar.

            Destarte, a Lei 7.783/89 foi recepcionada, sendo, doravante, aplicável aos servidores públicos, porque em perfeita compatibilidade vertical-formal-material com o Texto Constitucional. Operou-se o chamado fenômeno da eficácia construtiva da norma constitucional, visto que a Lei 7.783/89, que trata do direito de greve, recebeu da Carta Política um novo jato de luz revivificador que a revaloriza para a ordem jurídica nascente, ou seja, aquilo que a técnica jurídico-constitucional denomina de recepção da lei anterior.

            É, portanto, dispensável o apelo ou futura interferência do legislador para aperfeiçoar a apliçabilidade da norma constitucional (.,.) Poder-se-ia objetar: a lei 7.783/89 não se trata, obviamente, de lei ordinária reguladora, especificamente, da greve dos servidores públicos civis, mas de empregados regidos por contrato de trabalho. Todavia, a objeção não resiste. Os limites do direito de greve, e até mesmo sua proibição, em certos casos, para algumas categorias específicas de empregados ou de funcionários públicos, justifica-se não em razão do status do trabalhador, mas em decorrência da natureza dos serviços prestados, que são públicas, essenciais, inadiáveis, imantados pelo princípio da predominância do interesse geral. É cediço que os serviços essenciais à comunidade tanto podem ser prestados pelos trabalhadores do setor privado quanto do setor público, cuja abstenção não pode causar aos outros interesses tutelados constitucionalmente, como aqueles possuidores de caráter de segurança, saúde, vida, integridade física e liberdades dos indivíduos. Não se justifica, assim, o tratamento diferenciado ou separado. Onde há a mesma razão, igual deve ser a regulamentação e solução"(14).

            A bem ver, porém, o STF, já na vigência da EC 19/98, decidiu que o direito de greve do servidor público civil ainda continua dependendo de regulamentação, como se depreende do seguinte aresto:

"EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PORTARIA Nº 1.788, DE 25.08.98, DA SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL. Texto destinado à regulamentação do estágio probatório, que se acha disciplinado pelo art. 20 da Lei nº 8.112/90, com a alteração do art. 6º da EC nº 19/98 e, por isso, insuscetível de ser impugnado pela via eleita. Inviabilidade, declarada pelo STF (MI nº 20, Min. Celso de Mello), do exercício do direito de greve, por parte dos funcionários públicos, enquanto não regulamentada, por lei, a norma do inc. VII do art. 37 da Constituição. Não-conhecimento da ação" (STF ADI-1880 / DF, Ac. TP, Rel. Min. ILMAR GALVAO, DJ 27-11-98, p. 7, julg. 09-09-1998).

            Lamentavelmente, o referido acórdão não enfrenta a questão da recepção ou não da Lei federal n. 7.783/89 que, como já frisado, é a única norma prevista no ordenamento vigente que pode ser aplicada analogicamente ao servidor público civil.

Sobre o autor
Carlos Henrique Bezerra Leite

procurador Regional do Trabalho da 17ª Região (Espírito Santo), mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP, professor adjunto da graduação e pós-graduação em Direito da UFES, membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. A greve do servidor público civil e os direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2612. Acesso em: 30 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!