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A greve do servidor público civil e os direitos humanos

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01/02/2002 às 01:00
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11. A NATUREZA POLÍTICA DA GREVE DO SERVIDOR PÚBLICO CIVIL

            É sabido que o Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado, decidiu que o servidor público civil não pode entabular negociação coletiva, celebrar convenção ou acordo coletivo ou ajuizar dissídio coletivo na Justiça do Trabalho (STF-ADin n. 492-1-DF, Rei. Min. Carlos Veloso, DJU 12.3.93).(15)

            Ocorre que a greve, como obtempera Arion Sayão Romita(16), é

            "elemento essencial da negociação coletiva. Se se pretende implantar o método de negociação coletiva para solucionar conflitos de trabalho, será indispensável assegurar liberdade sindical: sem autonomia, os sindicatos de trabalhadores estão desarmados. Trata-se, no caso, do postulado fundamental para a convivência democrática. E a greve é a arma de luta dos trabalhadores na negociação coletiva! Sem direito de greve não pode haver negociação coletiva digna deste nome´ (grifos nossos).

            Afigura-se-nos rigorosamente equivocado o entendimento do STF ao confundir negociação coletiva com convenção ou acordo coletivo.

            Com efeito, negociação coletiva é um procedimento preparatório destinado à posterior celebração dos referidos contratos-leis ou, no caso brasileiro, ajuizamento de dissídio coletivo perante a Justiça do Trabalho (CF, art. 114, § 2º).

            É certo que o reconhecimento das convenções e acordos coletivos previsto no art. 7º, XXVI, da CF ao servidor público da administração direta, autárquica ou fundacional encontra obstáculos nos princípios da legalidade e do orçamento público, pois compete ao chefe do Executivo a iniciativa do processo legislativo que implique aumento de despesas dos servidores públicos.

            Mas isso não significa, de forma alguma, que os servidores, por intermédio de seu sindicato, não possam entabular negociação coletiva diretamente com o representante do respectivo ente da Administração Pública.

            Mesmo porque, como bem observa Arion Sayão Romita,

            "A negociação coletiva enseja o debate de uma grande variedade de assuntos, que não se restringem aos reajustamentos salariais: qualidade de vida no trabalho, saúde e segurança, mudanças tecnológicas, flexibilização do trabalho, não-discriminação, participação nas decisões".(17)

            Tanto é assim, que a Constituição reconhece expressamente aos servidores públicos o direito à livre associação sindical (CF, art. 37, VI), sendo certo o art. 8º, VI, da mesma Carta, determina a obrigatoriedade da participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho.

            Ora, negociar coletivamente não significa que as partes sejam obrigadas a celebrar convenção ou acordo coletivo. No setor privado, como já dito, da negociação coletiva pode resultar um "contrato-lei" ou, em caso de malogro, a possibilidade de ajuizamento de dissídio coletivo, cabendo ao Judiciário Trabalhista estabelecer normas e condições, dentro dos limites fixados no vértice do ordenamento jurídico.

            No âmbito da Administração Pública direta, autárquica ou fundacional, é juridicamente possível que a negociação coletiva seja operacionalizada – pouco importa o nomen iuris – como um protocolo de intenções, uma mesa redonda, do qual participem, de um lado, o representante do ente público e, de outro lado, o sindicato representativo dos servidores, tudo em perfeita sintonia com os princípios fundamentais que regem o Estado Democrático de Direito.

            Desse protocolo de intenções poderá surgir um projeto de lei, encampando, materialmente, as cláusulas que contemplam o acordo de vontades entre as partes, pressupondo, sempre, que o representante do ente público paute sempre a sua conduta pela observância do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse de classe ou particular.

            Obviamente que o projeto de lei será encaminhado ao Poder Legislativo, onde se abrirão amplos debates inerentes ao processo legislativo, e, se aprovado na Casa Legislativa, retornará para a sanção do chefe do Executivo.

            Assim, embora materialmente tenha havido a negociação coletiva, do ponto de vista formal ter-se-á, não um acordo coletivo, mas sim, uma lei regulando as relações de trabalho entre os servidores e o Estado.

            Nas palavras de Pinho Pedreira, para que a negociação coletiva

            "passe a produzir os efeitos normativos dependerá da incorporação a um ato do Executivo ou do Legislativo ou da aprovação de um desses Poderes de modo a harmonizar a negociação coletiva dos servidores públicos com a competência constitucional dos Poderes Executivo e Legislativo".(18)

            Desse modo, restariam observados os princípios da legalidade e, sobretudo, da democracia participativa nas relações entre a Administração e o seu pessoal.

            Afinal, como disse o Min. Marco Aurélio no voto dissidente do citado acórdão do STF,

            "impossível é deixar de admitir que a negociação coletiva pode visar ao afastamento do impasse, do conflito seguido de greve, mediante a iniciativa, exclusiva do Executivo, de encaminhar projeto objetivando a transformação em lei do que acordado na mesa de negociações".

            Sem direito à negociação coletiva e sem poder exercer (segundo o atual entendimento do STF) o direito de greve, o certo é que, no mundo dos fatos, a realidade é outra.

            A todo instante, como é notório, a imprensa noticia inúmeras greves eclodidas nos diversos setores da administração pública direta e indireta, inclusive em atividades essenciais, corno as da saúde e segurança públicas.

            E sem o canal de negociação coletiva, não há negar que a greve do servidor público brasileiro tende a ser necessariamente política, pois ela é a última e única alternativa para pressionar o Executivo a desencadear o processo legislativo destinado a atender às reivindicações dos trabalhadores do setor público.


12. JURISPRUDÊNCIA

            Já foi dito que a jurisprudência do STF é no sentido de que o direito de greve do servidor público está ainda a depender de lei, antes complementar, agora específica, nos termos do art. 37, VII, da Constituição da República.

            Cumpre frisar que a Suprema Corte não fez distinção entre servidor público estatutário e servidor público celetista.

            Nesse passo, é importante trazer à coleção a disparidade do entendimento adotado pelo TST e pelo STJ.

            No âmbito do TST, a jurisprudência da Seção de Dissídios Coletivos-SDC, mesmo na vigência da EC 19/98, continua acenando que o direito de greve para o servidor celetista está ainda a depender de lei específica e, enquanto esta não for editada, o movimento paredista é ilegal. É o que deflui do seguinte aresto:

            "SERVIDOR PÚBLICO REGIDO PELA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO. GREVE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA APRECIAR A LEGALIDADE DA GREVE. É a Justiça do Trabalho competente para decidir quanto à legalidade de greve de servidor público regido pela legislação trabalhista. O servidor público, mesmo regido pela legislação trabalhista, não pode exercitar o direito de greve, pois ainda não existe a lei específica prevista no art. 37, VII, da Constituição Federal" (TST RODC 614621/1999, Ac. SDC, DJ 24-05-2001, p. 81. Recorrente: Ministério Público do Trabalho Da 2ª Região; Recorridos: Sindicato dos Médicos de São Paulo e Município de Carapicuíba; Rel. Min. Carlos Alberto Reis de Paula).

            Colhe-se, ainda, do referido julgado do c. TST que o recurso do Ministério Público do Trabalho foi provido, por maioria, para declarar a ilegalidade da greve dos servidores públicos (investidos nos cargos de médicos), com as conseqüências previstas em lei, nos termos da fundamentação do voto do Exmo. Ministro Relator, que reformulou o entendimento manifestado anteriormente. Ficaram vencidos os Exmos. Ministros Ronaldo Lopes Leal, que extinguia o processo sem julgamento do mérito, por impossibilidade jurídica, e Rider Nogueira de Brito, que votava pela não-abusividade do movimento grevista.

            Já no âmbito do STJ, o entendimento majoritário, mesmo antes da Emenda Constitucional n. 19/98, aponta que o direito de greve do servidor público estatutário pode ser exercitado amplamente enquanto não for regulamentado o inciso VII do art. 37 da Constituição.

            A única restrição apontada pelo STJ diz respeito ao pagamento dos dias de paralisação, como se infere dos seguintes arestos:

            "CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROFESSORES ESTADUAIS. GREVE. PARALISAÇÃO. DESCONTO DE VENCIMENTOS. O direito de greve assegurado na Carta Magna aos servidores públicos, embora pendente de regulamentação (art. 37, VII), pode ser exercido, o que não importa na paralisação dos serviços sem o conseqüente desconto da remuneração relativa aos dias de falta ao trabalho, a mingua de norma infraconstitucional definidora do assunto. Recurso desprovido" (STJ ROMS 2873/SC, Ac. 6ª T. (1993/0009945-0), DJ 19-08-1996, p. 28499; Relator Min. VICENTE LEAL, julg. 24-06-1996). "DIREITO DE GREVE. SERVIDOR PUBLICO. POSSIBILIDADE DO EXERCICIO, INDEPENDENTEMENTE DA REGULAMENTAÇÃO PREVISTA NO ART. 37, VII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. No caso dos autos, não se pode discutir a questão do desconto nos vencimentos, porque não ha certeza de que as faltas procedam tão-somente da greve. Fatos complexos que escapam ao exercício do ‘mandamus’. Embargos declaratórios com finalidade de prequestionamento. Descabida a multa. Recurso parcialmente provido" (STJ ROMS 2673/SC, Ac. 6ª T. (1993/0007484-9), DJ 22-11-1993, p. 24975, Rel. Min. José Cândido de Carvalho Filho, julg. 19-10-1993).

            A discrepância entre os Tribunais Superiores está a revelar que o servidor público estatutário encontra-se em posição de vantagem em relação ao servidor público celetista, o que não deixa de ser um paradoxo, uma vez que o regime contratual (celetista) mostra-se mais propício a admitir a aplicação analógica da atual Lei de Greve do que o regime estatutário unilateral.


13. A QUESTÃO DA REMUNERAÇÃO DURANTE A GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO

            Um dos temas que tem causado grandes celeumas é, seguramente, o que diz respeito ao pagamento da remuneração dos servidores durante a greve.

            São inúmeros os equívocos que, segundo nos parece, vêm sendo perpetrados, tanto pelos servidores quanto pelas autoridades governamentais.

            No que concerne aos servidores, o equívoco, para não dizer contradição, consiste no fato de que, quando deflagram a paralisação, invocam a aplicação da atual Lei de Greve (Lei 7.783/89) que, como é sabido, é destinada, em linha de princípio, aos trabalhadores que estão submetidos ao regime contratual da CLT.

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            Ocorre que o art. 7º da Lei 7783/89 dispõe textualmente que a greve implica suspensão das relações jurídicas individuais de trabalho, nos seguintes termos:

            "Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho" (grifos nossos).

            Mas o que significa suspensão do contrato de trabalho?

            Para responder, pedimos vênia para transcrever pequeno trecho de obra de nossa autoria:

            "Alguns autores preferem utilizar as expressões suspensão parcial ou suspensão total do contrato no sentido de interrupção ou suspensão do contrato, respectivamente.

            A lei brasileira (CLT, Título IV, Capítulo IV), utiliza, literalmente, as expressões suspensão e interrupção, embora não defina nem uma nem outra.

            Em rigor científico, contudo, não há suspensão ou interrupção do contrato, mas sim dos seus efeitos, isto é, das obrigações atribuídas a cada uma das partes figurantes da relação de emprego. É por esta razão que melhor seria falar em suspensão ou interrupção do trabalho, e não do contrato, uma vez que este, em ambos os casos, continua vigindo e até produzindo efeitos.

            Dá-se a suspensão (ou suspensão total) quando inexistir obrigatoriedade da prestação de serviço e pagamento de salário, sendo certo que o tempo de serviço, em regra, não é computado para os efeitos legais.

            Na suspensão, portanto, empregado e empregador ficam dispensados, transitoriamente, do cumprimento das obrigações ínsitas ao contrato de trabalho".(19)

            Em relação à greve, pode-se, assim, dizer que, em princípio, ela implica suspensão da relação jurídica de trabalho, isto é: a) não é obrigatório o pagamento de salários; b) não é obrigatória a prestação do trabalho; c) o tempo de serviço não é computado.

            E é exatamente em razão do não pagamento da remuneração durante o movimento de paralisação coletiva que as greves têm geralmente curta duração. E isso acontece em todos os países nos quais a greve é considerada um direito dos trabalhadores. Na França, por exemplo, a greve dos servidores não dura mais de dois dias, mas os seus efeitos são sentidos em todos os setores econômicos, políticos e sociais, na medida em que a adesão ao movimento importa ações diretas que sensibilizam a sociedade como um todo.

            É preciso que os trabalhadores públicos brasileiros se conscientizem acerca da própria natureza instrumental da greve e assumam os riscos que a deflagração do movimento lhes impõe. A greve no serviço público exige, necessariamente, a conscientização e a participação não apenas dos servidores, mas, também, dos destinatários dos serviços por eles prestados. Assim, por exemplo, no âmbito das universidades públicas, a greve deve contar com o apoio e participação direta do corpo docente e discente, dos demais servidores, dos pais dos alunos, dos especialistas, políticos, juristas etc. Para tanto, é factível organizar passeatas, seminários, mesas redondas e outros eventos e manifestações que tenham por fim divulgar, debater e esclarecer todos os objetivos do movimento.

            Por outro lado, o equívoco das autoridades governamentais está em estabelecer sérias restrições e até sanções aos servidores que participam de greve, o que é incompatível com a fundamentalidade dessa espécie de direito humano, como já vimos alhures.

            No plano federal, por exemplo, o Presidente da República editou o Decreto n. 1.480, de 03.05.1995 (DOU 04.05.1995), que, em linhas gerais, disciplina que as faltas decorrentes de participação de servidor público federal nos movimentos de paralisação de serviços públicos não poderão, em nenhuma hipótese, ser objeto de abono, compensação ou cômputo, para fins de contagem de tempo de serviço ou de qualquer vantagem que o tenha por base.

            Além disso, o referido Decreto, de duvidosa constitucionalidade,(20) determina até mesmo a exoneração ou dispensa dos servidores ocupantes de cargos em comissão ou de funções gratificadas constantes da relação encaminhada pela chefia imediata do servidor ao órgão de pessoal respectivo a relação dos servidores cujas faltas se enquadrem na hipótese nele prevista, discriminando, dentre os relacionados, os ocupantes de cargos em comissão e os que percebam função gratificada.

            Ora, a Constituição não fez qualquer distinção entre os servidores públicos civis efetivos e os servidores ocupantes de cargos em comissão, sendo certo que as funções de confiança devem ser, por força da Emenda Constitucional n. 19/98, ocupadas exclusivamente por servidores ocupantes de cargos efetivos.

            Vale dizer, a atitude da administração, como a de qualquer outro empregador, deve ser tão-somente a de, durante a greve, não efetuar o pagamento da remuneração dos servidores, sem qualquer distinção, que tenham aderido ao movimento. Dito de outro modo, não há obrigatoriedade do pagamento da remuneração porque não há trabalho. Nada mais.(21)

            Isso não significa, em absoluto, que os excessos eventualmente praticados pelos grevistas não sejam objeto de sanção civil, administrativa, trabalhista e penal, tal como previsto no art. 15 da Lei n. 7783/89.

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Sobre o autor
Carlos Henrique Bezerra Leite

procurador Regional do Trabalho da 17ª Região (Espírito Santo), mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP, professor adjunto da graduação e pós-graduação em Direito da UFES, membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. A greve do servidor público civil e os direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2612. Acesso em: 29 mar. 2024.

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