6. POSIÇÃO DA UNIÃO EUROPÉIA
A Carta Social Européia, de 1961, dispõe textualmente no art. 6, n. 4, in verbis:
"Art. 6. – A fim de assegurar o exercício eficaz do direito de negociação coletiva, as Partes Contratantes
.................................
reconhecem:
4. O direito dos trabalhadores e dos empregadores, em caso de conflito de interesses, a recorrera a ações coletivas, inclusive o direito de greve, sob ressalva das obrigações que possam resultar das convenções coletivas em vigor".
Esse documento internacional é de extrema importância, não apenas sob o aspecto político, filosófico e sociológico que historicamente representam os padrões ideais de vida oriundos das democracias ocidentais do continente europeu, mas igualmente sob a perspectiva jurídico-dogmática, uma vez que consolida a idéia de que, efetivamente, a greve constitui um legítimo instrumento para assegurar o eficaz direito de negociação coletiva.
7. POSIÇÃO DA OIT
A Organização Internacional do Trabalho - OIT não possui convenção específica sobre greve, mas a doutrina é praticamente unânime em afirmar que as Convenções 87 e 98, que dispõem sobre liberdade sindical e negociação coletiva5, contemplam, implicitamente, a greve como um direito fundamental dos trabalhadores, tanto do setor público quanto do setor privado, sendo certo que apenas os funcionários das forças armadas podem ter, segundo aquele organismo internacional, algumas restrições ou até mesmo vedações ao exercício do direito de greve.
É importante assinalar que a Convenção 151 da OIT6, também conhecida como "Convenção sobre as Relações de Trabalho na Administração Pública", no seus consideranda, reconhece, entre outros aspectos, a expansão dos serviços prestados pela administração pública em muitos países e a necessidade de que existam sadias relações de trabalho entre as autoridades públicas e as organizações de empregados públicos.7 Para tanto, prescreve expressamente no seu art. 7º, in verbis:
"Deverão ser adotadas, sendo necessário, medidas adequadas às condições nacionais para estimular e fomentar o pleno desenvolvimento e utilização de procedimentos de negociação entre as autoridades públicas competentes e as organizações de empregados públicos sobre as condições de emprego,8 ou de quaisquer outros métodos que permitam aos representantes de empregados públicos participar na determinação de tais condições".
No que tange à greve do servidor público, o Comitê de Liberdade Sindical vem editando verbetes no sentido do recomendar que os países membros reconheçam a greve como um direito dos servidores públicos, somente admitindo restrições em casos muito particulares.
Nesse sentido, o Comitê editou o verbete n. 394, que dispõe:
"O direito de greve só pode ser objeto de restrições, inclusive proibição, na função pública, sendo funcionários públicos aqueles que atuam como órgãos de poder público, ou nos serviços essenciais no sentido estrito do termo, isto é, aqueles serviços cuja interrupção possa pôr em perigo a vida, a segurança ou a saúde da pessoa, no todo ou em parte da população".
Segundo a OIT, pois, "só são pertinentes as limitações aplicadas aos funcionários públicos que atuem na qualidade de órgãos do poder público. Não se incluem, porém, nesta categoria os trabalhadores públicos dos setores de educação ou dos transportes".9
O verbete n. 386. cuida da possibilidade de conciliação a arbitragem em serviços essenciais e funções públicas.
Esses verbetes, é imperioso ressaltar, vinculam o Brasil, uma vez que a nosso país se reportam os informes correspondentes da OIT.10
Vê-se, assim, que a orientação da OIT é no sentido de permitir amplamente a greve dos servidores públicos civis, salvo para aqueles que atuam como órgãos de poder público, isto é, os que exercem parcela da soberania do Estado, como os juízes, membros do Ministério Público, diplomatas, ministros, secretários, diretores das estatais etc.
8. A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988
A Constituição de 1988 insere o direito de greve no elenco dos direitos sociais fundamentais dos trabalhadores do setor privado, nos seguintes termos:
"Art. 9º - É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
§ 1º - A lei definirá os serviços e atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2º - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei".
Não há mais lugar, portanto, para a proibição de greve nos serviços essenciais, mas há necessidade de se atender às necessidades inadiáveis da comunidade.
Aos servidores públicos civis, quer investidos em cargos, quer investidos em empregos, também foi reconhecido, no art. 37, inciso VII, da CF/88, o direito de greve. Todavia, o legislador constituinte estabeleceu que exercício desse direito dependeria da edição posterior de lei complementar que, diga-se de passagem, jamais fora editada. Pelo contrário, ao invés de regulamentar o direito de greve mediante lei complementar, o legislador ordinário preferiu alterar a redação original da Carta através da Emenda Constitucional n. 19/98, estabelecendo, assim, no que concerne ao servidor público civil, que "o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica".
9. A MORA LEGISLATORIS EM REGULAMENTAR O EXERCÍCIO DO DIREITO
No âmbito da Administração Pública direta, autárquica e fundacional não há negar que a mora legislatoris em regulamentar o inciso VIl do art. 37. da Constituição tem suscitado tormentosas discussões doutrinárias e jurisprudenciais.
Duas correntes se destacam.
A primeira sustenta a eficácia contida 11 do preceito em exame, pelo que possível o exercício do direito antes mesmo da edição de lei complementar12, sendo aplicável, por analogia, a Lei 7783/8913.
A segunda, entendendo ser o referido dispositivo not self-executing, advoga no sentido de que o servidor somente poderá exercer o direito de greve após editada norma infraconstitucional (antes, lei complementar; agora, "lei específica"), exigida, também, pela Emenda Constitucional n. 19/98. Dito de outro modo, a segunda corrente sustenta que a norma constitucional é de eficácia limitada.
O STF, quando vigia a redação original do inciso VII do art. 37. da CF, adotou a segunda corrente, como se infere do seguinte julgado:
"Insuficiência de relevo de fundamentação jurídica em exame cautelar, da argüição de inconstitucionalidade de decreto estadual que não está a regular (como propõem os requerentes) o exercício do direito de greve pelos servidores públicos; mas a disciplinar uma conduta julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal, até que venha a ser editada a lei complementar prevista no art. 37, VII, da Carta de 1988 (M.I. n. 20, sessão de 19.5.94).´
(STF-TP- ADIN n. 1306-BA, Rel. Min. Octavio Galloti, requerentes: Partido dos Trabalhadores - PT e outros; requerido: Governador do Estado da Bahia, j. 30.06.95, DJU 27.10.95, p. 01806. - os grifos não constam do original).
10. A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 19. E A RECEPÇÃO DA LEI N. 7.783/89
Cremos que, em virtude da novel Emenda Constitucional ri. 19/98, que não mais menciona ´lei complementar", mas, tão-somente, "lei especifica", a orientação até então reinante no Pretório Excelso está a exigir urgente modificação.
Ora, diante do atual texto constitucional, parece-nos que, enquanto não for editada a referida lei específica para regular o exercício do direito de greve do servidor público, mostra-se perfeitamente aplicável, por analogia, a atual Lei (específica) de Greve (Lei ri. 7.783/89).
Com efeito, o art. 16. da lei n. 7.783189, que exigia lei complementar para regular o exercício do direito de greve do servidor público, não mais vigora no nosso ordenamento jurídico, porquanto incompatível com o texto atual da Carta Magna. Em outros termos, o art. 16. da LG não foi recepcionado pelo art. 37, VII, da Constituição.
Ademais, se não há, no sistema referente ao processo legislativo, distinção entre as leis ordinárias e específicas (a expressão "lei específica", a rigor, não encontra previsão no art. 59. da Constituição), também não há falar em hierarquia entre tais modalidades normativas.
Dessa forma, diante da lacuna existente e, considerando o fenômeno da recepção da atual Lei de Greve pela nova Emenda Constitucional n. 19, cabe ao intérprete, pelo menos até que sobrevenha (se é que isso verdadeiramente venha a acontecer) a nova "lei especifica", dar a máxima efetividade à norma constitucional, mediante a integração do sistema.
Colhe-se, por oportuno, o judicioso entendimento de lvani Contini Bramante, para quem
"Visitando o ordenamento, verifica-se que já existe no mundo jurídico uma lei ordinária federal que regula, especificamente, o direito de greve, as atividades essenciais e o atendimento às necessidades inadiáveis da comunidade: a lei 7.783, de 28 de junho de 1989.
Inicialmente, cumpre verificar que o art. 16, da lei 7.783/89, está revogado (...) E, aqui, ocorreu a chamada eficácia revogativa ou eficácia negativa, que também é desobstrutiva, pois a norma constitucional traçou novo esquema dependente para a sua atuação, exigente de uma lei ordinária normativa, diferente do sistema anterior, o qual remetia à lei complementar.
Destarte, a Lei 7.783/89 foi recepcionada, sendo, doravante, aplicável aos servidores públicos, porque em perfeita compatibilidade vertical-formal-material com o Texto Constitucional. Operou-se o chamado fenômeno da eficácia construtiva da norma constitucional, visto que a Lei 7.783/89, que trata do direito de greve, recebeu da Carta Política um novo jato de luz revivificador que a revaloriza para a ordem jurídica nascente, ou seja, aquilo que a técnica jurídico-constitucional denomina de recepção da lei anterior.
É, portanto, dispensável o apelo ou futura interferência do legislador para aperfeiçoar a apliçabilidade da norma constitucional (.,.) Poder-se-ia objetar: a lei 7.783/89 não se trata, obviamente, de lei ordinária reguladora, especificamente, da greve dos servidores públicos civis, mas de empregados regidos por contrato de trabalho. Todavia, a objeção não resiste. Os limites do direito de greve, e até mesmo sua proibição, em certos casos, para algumas categorias específicas de empregados ou de funcionários públicos, justifica-se não em razão do status do trabalhador, mas em decorrência da natureza dos serviços prestados, que são públicas, essenciais, inadiáveis, imantados pelo princípio da predominância do interesse geral. É cediço que os serviços essenciais à comunidade tanto podem ser prestados pelos trabalhadores do setor privado quanto do setor público, cuja abstenção não pode causar aos outros interesses tutelados constitucionalmente, como aqueles possuidores de caráter de segurança, saúde, vida, integridade física e liberdades dos indivíduos. Não se justifica, assim, o tratamento diferenciado ou separado. Onde há a mesma razão, igual deve ser a regulamentação e solução"14.
A bem ver, porém, o STF, já na vigência da EC 19/98, decidiu que o direito de greve do servidor público civil ainda continua dependendo de regulamentação, como se depreende do seguinte aresto:
"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PORTARIA Nº 1.788, DE 25.08.98, DA SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL. Texto destinado à regulamentação do estágio probatório, que se acha disciplinado pelo art. 20. da Lei nº 8.112/90, com a alteração do art. 6º da EC nº 19/98 e, por isso, insuscetível de ser impugnado pela via eleita. Inviabilidade, declarada pelo STF (MI nº 20, Min. Celso de Mello), do exercício do direito de greve, por parte dos funcionários públicos, enquanto não regulamentada, por lei, a norma do inc. VII do art. 37. da Constituição. Não-conhecimento da ação"
(STF ADI-1880 / DF, Ac. TP, Rel. Min. ILMAR GALVAO, DJ 27-11-98, p. 7, julg. 09-09-1998).
Lamentavelmente, o referido acórdão não enfrenta a questão da recepção ou não da Lei federal n. 7.783/89 que, como já frisado, é a única norma prevista no ordenamento vigente que pode ser aplicada analogicamente ao servidor público civil.
11. A NATUREZA POLÍTICA DA GREVE DO SERVIDOR PÚBLICO CIVIL
É sabido que o Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado, decidiu que o servidor público civil não pode entabular negociação coletiva, celebrar convenção ou acordo coletivo ou ajuizar dissídio coletivo na Justiça do Trabalho (STF-ADin n. 492-1-DF, Rei. Min. Carlos Veloso, DJU 12.3.93).15
Ocorre que a greve, como obtempera Arion Sayão Romita16, é
"elemento essencial da negociação coletiva. Se se pretende implantar o método de negociação coletiva para solucionar conflitos de trabalho, será indispensável assegurar liberdade sindical: sem autonomia, os sindicatos de trabalhadores estão desarmados. Trata-se, no caso, do postulado fundamental para a convivência democrática. E a greve é a arma de luta dos trabalhadores na negociação coletiva! Sem direito de greve não pode haver negociação coletiva digna deste nome´ (grifos nossos).
Afigura-se-nos rigorosamente equivocado o entendimento do STF ao confundir negociação coletiva com convenção ou acordo coletivo.
Com efeito, negociação coletiva é um procedimento preparatório destinado à posterior celebração dos referidos contratos-leis ou, no caso brasileiro, ajuizamento de dissídio coletivo perante a Justiça do Trabalho (CF, art. 114, § 2º).
É certo que o reconhecimento das convenções e acordos coletivos previsto no art. 7º, XXVI, da CF ao servidor público da administração direta, autárquica ou fundacional encontra obstáculos nos princípios da legalidade e do orçamento público, pois compete ao chefe do Executivo a iniciativa do processo legislativo que implique aumento de despesas dos servidores públicos.
Mas isso não significa, de forma alguma, que os servidores, por intermédio de seu sindicato, não possam entabular negociação coletiva diretamente com o representante do respectivo ente da Administração Pública.
Mesmo porque, como bem observa Arion Sayão Romita,
"A negociação coletiva enseja o debate de uma grande variedade de assuntos, que não se restringem aos reajustamentos salariais: qualidade de vida no trabalho, saúde e segurança, mudanças tecnológicas, flexibilização do trabalho, não-discriminação, participação nas decisões".17
Tanto é assim, que a Constituição reconhece expressamente aos servidores públicos o direito à livre associação sindical (CF, art. 37, VI), sendo certo o art. 8º, VI, da mesma Carta, determina a obrigatoriedade da participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho.
Ora, negociar coletivamente não significa que as partes sejam obrigadas a celebrar convenção ou acordo coletivo. No setor privado, como já dito, da negociação coletiva pode resultar um "contrato-lei" ou, em caso de malogro, a possibilidade de ajuizamento de dissídio coletivo, cabendo ao Judiciário Trabalhista estabelecer normas e condições, dentro dos limites fixados no vértice do ordenamento jurídico.
No âmbito da Administração Pública direta, autárquica ou fundacional, é juridicamente possível que a negociação coletiva seja operacionalizada – pouco importa o nomen iuris – como um protocolo de intenções, uma mesa redonda, do qual participem, de um lado, o representante do ente público e, de outro lado, o sindicato representativo dos servidores, tudo em perfeita sintonia com os princípios fundamentais que regem o Estado Democrático de Direito.
Desse protocolo de intenções poderá surgir um projeto de lei, encampando, materialmente, as cláusulas que contemplam o acordo de vontades entre as partes, pressupondo, sempre, que o representante do ente público paute sempre a sua conduta pela observância do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse de classe ou particular.
Obviamente que o projeto de lei será encaminhado ao Poder Legislativo, onde se abrirão amplos debates inerentes ao processo legislativo, e, se aprovado na Casa Legislativa, retornará para a sanção do chefe do Executivo.
Assim, embora materialmente tenha havido a negociação coletiva, do ponto de vista formal ter-se-á, não um acordo coletivo, mas sim, uma lei regulando as relações de trabalho entre os servidores e o Estado.
Nas palavras de Pinho Pedreira, para que a negociação coletiva
"passe a produzir os efeitos normativos dependerá da incorporação a um ato do Executivo ou do Legislativo ou da aprovação de um desses Poderes de modo a harmonizar a negociação coletiva dos servidores públicos com a competência constitucional dos Poderes Executivo e Legislativo".18
Desse modo, restariam observados os princípios da legalidade e, sobretudo, da democracia participativa nas relações entre a Administração e o seu pessoal.
Afinal, como disse o Min. Marco Aurélio no voto dissidente do citado acórdão do STF,
"impossível é deixar de admitir que a negociação coletiva pode visar ao afastamento do impasse, do conflito seguido de greve, mediante a iniciativa, exclusiva do Executivo, de encaminhar projeto objetivando a transformação em lei do que acordado na mesa de negociações".
Sem direito à negociação coletiva e sem poder exercer (segundo o atual entendimento do STF) o direito de greve, o certo é que, no mundo dos fatos, a realidade é outra.
A todo instante, como é notório, a imprensa noticia inúmeras greves eclodidas nos diversos setores da administração pública direta e indireta, inclusive em atividades essenciais, corno as da saúde e segurança públicas.
E sem o canal de negociação coletiva, não há negar que a greve do servidor público brasileiro tende a ser necessariamente política, pois ela é a última e única alternativa para pressionar o Executivo a desencadear o processo legislativo destinado a atender às reivindicações dos trabalhadores do setor público.