12. JURISPRUDÊNCIA
Já foi dito que a jurisprudência do STF é no sentido de que o direito de greve do servidor público está ainda a depender de lei, antes complementar, agora específica, nos termos do art. 37, VII, da Constituição da República.
Cumpre frisar que a Suprema Corte não fez distinção entre servidor público estatutário e servidor público celetista.
Nesse passo, é importante trazer à coleção a disparidade do entendimento adotado pelo TST e pelo STJ.
No âmbito do TST, a jurisprudência da Seção de Dissídios Coletivos-SDC, mesmo na vigência da EC 19/98, continua acenando que o direito de greve para o servidor celetista está ainda a depender de lei específica e, enquanto esta não for editada, o movimento paredista é ilegal. É o que deflui do seguinte aresto:
"SERVIDOR PÚBLICO REGIDO PELA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO. GREVE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA APRECIAR A LEGALIDADE DA GREVE. É a Justiça do Trabalho competente para decidir quanto à legalidade de greve de servidor público regido pela legislação trabalhista. O servidor público, mesmo regido pela legislação trabalhista, não pode exercitar o direito de greve, pois ainda não existe a lei específica prevista no art. 37, VII, da Constituição Federal"
(TST RODC 614621/1999, Ac. SDC, DJ 24-05-2001, p. 81. Recorrente: Ministério Público do Trabalho Da 2ª Região; Recorridos: Sindicato dos Médicos de São Paulo e Município de Carapicuíba; Rel. Min. Carlos Alberto Reis de Paula).
Colhe-se, ainda, do referido julgado do c. TST que o recurso do Ministério Público do Trabalho foi provido, por maioria, para declarar a ilegalidade da greve dos servidores públicos (investidos nos cargos de médicos), com as conseqüências previstas em lei, nos termos da fundamentação do voto do Exmo. Ministro Relator, que reformulou o entendimento manifestado anteriormente. Ficaram vencidos os Exmos. Ministros Ronaldo Lopes Leal, que extinguia o processo sem julgamento do mérito, por impossibilidade jurídica, e Rider Nogueira de Brito, que votava pela não-abusividade do movimento grevista.
Já no âmbito do STJ, o entendimento majoritário, mesmo antes da Emenda Constitucional n. 19/98, aponta que o direito de greve do servidor público estatutário pode ser exercitado amplamente enquanto não for regulamentado o inciso VII do art. 37. da Constituição.
A única restrição apontada pelo STJ diz respeito ao pagamento dos dias de paralisação, como se infere dos seguintes arestos:
"CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROFESSORES ESTADUAIS. GREVE. PARALISAÇÃO. DESCONTO DE VENCIMENTOS. O direito de greve assegurado na Carta Magna aos servidores públicos, embora pendente de regulamentação (art. 37, VII), pode ser exercido, o que não importa na paralisação dos serviços sem o conseqüente desconto da remuneração relativa aos dias de falta ao trabalho, a mingua de norma infraconstitucional definidora do assunto. Recurso desprovido" (STJ ROMS 2873/SC, Ac. 6ª T. (1993/0009945-0), DJ 19-08-1996, p. 28499; Relator Min. VICENTE LEAL, julg. 24-06-1996). "DIREITO DE GREVE. SERVIDOR PUBLICO. POSSIBILIDADE DO EXERCICIO, INDEPENDENTEMENTE DA REGULAMENTAÇÃO PREVISTA NO ART. 37, VII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. No caso dos autos, não se pode discutir a questão do desconto nos vencimentos, porque não ha certeza de que as faltas procedam tão-somente da greve. Fatos complexos que escapam ao exercício do ‘mandamus’. Embargos declaratórios com finalidade de prequestionamento. Descabida a multa. Recurso parcialmente provido"
(STJ ROMS 2673/SC, Ac. 6ª T. (1993/0007484-9), DJ 22-11-1993, p. 24975, Rel. Min. José Cândido de Carvalho Filho, julg. 19-10-1993).
A discrepância entre os Tribunais Superiores está a revelar que o servidor público estatutário encontra-se em posição de vantagem em relação ao servidor público celetista, o que não deixa de ser um paradoxo, uma vez que o regime contratual (celetista) mostra-se mais propício a admitir a aplicação analógica da atual Lei de Greve do que o regime estatutário unilateral.
13. A QUESTÃO DA REMUNERAÇÃO DURANTE A GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO
Um dos temas que tem causado grandes celeumas é, seguramente, o que diz respeito ao pagamento da remuneração dos servidores durante a greve.
São inúmeros os equívocos que, segundo nos parece, vêm sendo perpetrados, tanto pelos servidores quanto pelas autoridades governamentais.
No que concerne aos servidores, o equívoco, para não dizer contradição, consiste no fato de que, quando deflagram a paralisação, invocam a aplicação da atual Lei de Greve (Lei 7.783/89) que, como é sabido, é destinada, em linha de princípio, aos trabalhadores que estão submetidos ao regime contratual da CLT.
Ocorre que o art. 7º da Lei 7783/89 dispõe textualmente que a greve implica suspensão das relações jurídicas individuais de trabalho, nos seguintes termos:
"Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho" (grifos nossos).
Mas o que significa suspensão do contrato de trabalho?
Para responder, pedimos vênia para transcrever pequeno trecho de obra de nossa autoria:
"Alguns autores preferem utilizar as expressões suspensão parcial ou suspensão total do contrato no sentido de interrupção ou suspensão do contrato, respectivamente.
A lei brasileira (CLT, Título IV, Capítulo IV), utiliza, literalmente, as expressões suspensão e interrupção, embora não defina nem uma nem outra.
Em rigor científico, contudo, não há suspensão ou interrupção do contrato, mas sim dos seus efeitos, isto é, das obrigações atribuídas a cada uma das partes figurantes da relação de emprego. É por esta razão que melhor seria falar em suspensão ou interrupção do trabalho, e não do contrato, uma vez que este, em ambos os casos, continua vigindo e até produzindo efeitos.
Dá-se a suspensão (ou suspensão total) quando inexistir obrigatoriedade da prestação de serviço e pagamento de salário, sendo certo que o tempo de serviço, em regra, não é computado para os efeitos legais.
Na suspensão, portanto, empregado e empregador ficam dispensados, transitoriamente, do cumprimento das obrigações ínsitas ao contrato de trabalho".19
Em relação à greve, pode-se, assim, dizer que, em princípio, ela implica suspensão da relação jurídica de trabalho, isto é: a) não é obrigatório o pagamento de salários; b) não é obrigatória a prestação do trabalho; c) o tempo de serviço não é computado.
E é exatamente em razão do não pagamento da remuneração durante o movimento de paralisação coletiva que as greves têm geralmente curta duração. E isso acontece em todos os países nos quais a greve é considerada um direito dos trabalhadores. Na França, por exemplo, a greve dos servidores não dura mais de dois dias, mas os seus efeitos são sentidos em todos os setores econômicos, políticos e sociais, na medida em que a adesão ao movimento importa ações diretas que sensibilizam a sociedade como um todo.
É preciso que os trabalhadores públicos brasileiros se conscientizem acerca da própria natureza instrumental da greve e assumam os riscos que a deflagração do movimento lhes impõe. A greve no serviço público exige, necessariamente, a conscientização e a participação não apenas dos servidores, mas, também, dos destinatários dos serviços por eles prestados. Assim, por exemplo, no âmbito das universidades públicas, a greve deve contar com o apoio e participação direta do corpo docente e discente, dos demais servidores, dos pais dos alunos, dos especialistas, políticos, juristas etc. Para tanto, é factível organizar passeatas, seminários, mesas redondas e outros eventos e manifestações que tenham por fim divulgar, debater e esclarecer todos os objetivos do movimento.
Por outro lado, o equívoco das autoridades governamentais está em estabelecer sérias restrições e até sanções aos servidores que participam de greve, o que é incompatível com a fundamentalidade dessa espécie de direito humano, como já vimos alhures.
No plano federal, por exemplo, o Presidente da República editou o Decreto n. 1.480, de 03.05.1995 (DOU 04.05.1995), que, em linhas gerais, disciplina que as faltas decorrentes de participação de servidor público federal nos movimentos de paralisação de serviços públicos não poderão, em nenhuma hipótese, ser objeto de abono, compensação ou cômputo, para fins de contagem de tempo de serviço ou de qualquer vantagem que o tenha por base.
Além disso, o referido Decreto, de duvidosa constitucionalidade,20 determina até mesmo a exoneração ou dispensa dos servidores ocupantes de cargos em comissão ou de funções gratificadas constantes da relação encaminhada pela chefia imediata do servidor ao órgão de pessoal respectivo a relação dos servidores cujas faltas se enquadrem na hipótese nele prevista, discriminando, dentre os relacionados, os ocupantes de cargos em comissão e os que percebam função gratificada.
Ora, a Constituição não fez qualquer distinção entre os servidores públicos civis efetivos e os servidores ocupantes de cargos em comissão, sendo certo que as funções de confiança devem ser, por força da Emenda Constitucional n. 19/98, ocupadas exclusivamente por servidores ocupantes de cargos efetivos.
Vale dizer, a atitude da administração, como a de qualquer outro empregador, deve ser tão-somente a de, durante a greve, não efetuar o pagamento da remuneração dos servidores, sem qualquer distinção, que tenham aderido ao movimento. Dito de outro modo, não há obrigatoriedade do pagamento da remuneração porque não há trabalho. Nada mais.21
Isso não significa, em absoluto, que os excessos eventualmente praticados pelos grevistas não sejam objeto de sanção civil, administrativa, trabalhista e penal, tal como previsto no art. 15. da Lei n. 7783/89.
14. CONCLUSÃO
Como síntese do exposto, apresentamos as conclusões mais importantes.
A greve constitui um instrumento a serviço da cidadania, na medida em que seu objetivo maior consiste na reação pacífica e ordenada contra os atos que impliquem direta ou indiretamente desrespeito à dignidade da pessoa humana do cidadão trabalhador.
O ordenamento jurídico brasileiro considera a greve um direito fundamental dos trabalhadores, nos termos do art. 9º da Constituição Federal.
Por se tratar de direito humano fundamental, não pode haver distinção entre o trabalhador do setor privado e o do setor público, salvo quando o próprio ordenamento excepciona, tal como ocorre, no nosso sistema, com o servidor público militar (CF, art. 142, § 3º, IV).
Nesse sentido é a posição da OIT, que somente admite restrições ao exercício do direito de greve nos serviços essenciais cuja interrupção possa pôr em perigo a vida, a segurança ou a saúde, no todo ou em parte, da população.
A Lei n. 7.783/89, por ser uma lei específica sobre a greve, pode ser aplicada, por analogia, ao servidor público civil, mormente, no que tange aos serviços públicos considerados essenciais e inadiáveis, tais corno os que coloquem em risco a vida, a segurança e a saúde da população, no todo ou em parte.
Afinal, a operacionalização do Direito conduz à ilação de que é menos prejudicial à sociedade que o Estado-juiz reconheça a existência de um conflito e regularmente, à luz do sistema jurídico vigente, os seus efeitos, a deixar que os próprios servidores interessados exerçam de fato, a spontae sua, e com riscos para comunidade, em especial a camada da população mais carente dos serviços públicos, um direito fundamental que lhes é constitucionalmente assegurado.
A greve importa suspensão coletiva do trabalho. Logo, em linha de princípio, não há, durante o movimento paredista, a obrigação da prestação do serviço pelo servidor nem a obrigação da contraprestação do pagamento da remuneração pela Administração.
Para finalizar, invocamos as palavras de Georgenor de Sousa Franco Filho, para quem
"... o Estado deve regular o exercício do direito de greve, não no sentido de restringi-lo, mas de garantir o bem-estar comum, e, por outro ângulo, retirar as causas geradoras de que movimentos dessa natureza são conseqüência, garantindo, como pregou Aristóteles na antiga Grécia, a existência de igualdade real entre os seres humanos, que todos tenham direito de acender a melhores condições de vida e de trabalho, que, ao cabo, venha, no futuro, até mesmo a ser dispensado esse recurso extremo".22
Notas
1 Mozart Victor Russomano, Princípios gerais de direito sindical, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 243.
2 Direito do trabalho, 6ª ed., São Paulo, Atlas, 1998, p. 695.
3 Ibidem, mesma página.
4 A greve no contexto democrático, in Revista Síntese Trabalhista, n. 82, abril/96, Porto Alegre, pág. 12.
5 O papel da greve na negociação coletiva, in RIBEIRO, Lélia Guimarães Carvalho; PAMPLONA FILHO, Rodolfo (coords.), Direito do trabalho: estudos em homenagem ao prof. Luiz de Pinho Pedreira da Silva, São Paulo, LTr, 1998, p. 427.
6 A Convenção 87 ainda não foi ratificada pelo Brasil, mas a Convenção 98 foi aprovada pelo Decreto Legislativo n. 49, de 27.8.52, promulgada pelo Decreto n. 33.196, de 29.6.53, com vigência nacional a partir de 18.11.1953.
7 A Convenção 151 lamentavelmente ainda não foi ratificada pelo Brasil.
8 A expressão "empregados públicos" tem significação ampla, isto é, abrange a todas as pessoas que mantêm vínculo de trabalho com a administração pública, tal como se deflui do art. 1º da Convenção n. 151. da OIT.
9 A expressão "condições de emprego" também comporta interpretação extensiva, alcançando, assim, todas as condições inerentes às relações de trabalho no âmbito da administração pública, que no sentido de relação de natureza empregatícia, quer no sentido de relação de natureza estatutária.
10 A liberdade sindical / trad. Edilson Alkmim Cunha. Brasília, DF: Organização Internacional do Trabalho; São Paulo: LTr, 1994, p. 77.
11 Georgenor de Sousa Franco Filho, Liberdade sindical e direito de greve no direito comparado: lineamentos, São Paulo, LTr, 1992, p. 94.
12 Segundo José Afonso da Silva, normas de eficácia contida "são aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas enunciados" (Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed., São Paulo, Malheiros, 1998, p. 116). Celso Antonio Bandeira de Mello, mesmo antes da EC 19/98, já sustentava a eficácia contida do art. 37, VII, da CF: "... Este é exercitável desde logo, antes mesmo de editada a sobredita norma complementar, que lhe estabelecerá os limites. Trata-se de norma de eficácia contida, segundo a terminologia adotada por JOSÉ AFONSO DA SILVA ("Aplicabilidade das Normas Constitucionais", Editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, 1982, páginas 73 e 92 e seguintes). Admita-se, apenas, que a greve não poderá deixar sem atendimento as "necessidades inadiáveis" da comunidade, a serem identificadas regendo um critério de "razoabilidade", pois a obrigação de supri-la está constitucionalmente prevista, até mesmo para os trabalhadores em geral, conforme § 1º do artigo 9º" (Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta, Revista dos Tribunais, 1990, p. 77-8).
13 Com o advento da Emenda Constitucional n. 19198, que deu nova redação ao inciso Vil do art. 37. da Constituição, não mais se exige lei complementar, mas, tão-somente, "lei específica".
14 Cf. Arnaldo Süssekind, Direito Constitucional do Trabalho, Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 434-435. Nesse sentido decidiu a 6ª Turma do STJ no ROMS 4531/SC (1994/0018896-0), Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 22.8.95.
15 Direito Constitucional de Greve dos Servidores Públicos - Eficácia Limitada ou Plena? Emenda Constitucional n. 19, in ´Trabalho em Revista´, jan/99, Curitiba, Editora Decisório Trabalhista, p. 530.
16 Esse entendimento, como apontado no item 7 supra, contraria a recomendação constante do verbete 386 do Comitê de Liberdade Sindical da OIT.
17 Direitos Sociais na Constituição e Outros Estudos, São Paulo, LTr, p. 250.
18 Regime jurídico dos servidores públicos civis – aspectos trabalhistas e previdenciários, São Paulo, LTr, 1993, p. 45-47.
19 A negociação coletiva no setor público, in "Direito sindical brasileiro: estudos em homenagem ao prof. Arion Sayão Romita", São Paulo, LTr, 1998, p. 262.
20 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho, v. I, Curitiba: Juruá, 2000, p. 299.
21 MATTO, Mauro Roberto Gomes de. Da inconstitucionalidade do decreto nº 1.480/95, que restringe o direito de greve do servidor público. In: Doutrina Jurídica Brasileira [CD-ROM] org. Sérgio Augustin. Caxias do Sul: Plenum, 2001. ISBN 85-88512-01.
22 Recentemente, o presidente em exercício do Supremo Tribunal Federal, ministro Ilmar Galvão, deferiu ontem (04/10) Suspensão de Segurança (SS 2061) a favor da Advocacia Geral da União, relativa ao pagamento do salário de setembro dos professores das universidades federais em greve há mais de 30 dias. A AGU ajuizou dia 03 último a Suspensão de Segurança contra liminar concedida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES). Ainda no mesmo dia, o ministro encaminhou os autos à Procuradoria Geral da República. De acordo com o ministro, a falta dos professores das universidades ao trabalho "não pode ser abonada, com o pagamento dos respectivos vencimentos, sem que isso implique em grave – e provavelmente irreversível – lesão à ordem administrava das universidades".
23 Liberdade sindical e direito de greve no direito comparado: lineamentos. São Paulo: LTr, 1992, p. 75.