Durante minha infância na década de 1970, Ronald Biggs era celebridade televisiva. Ele sempre dava entrevistas a telejornalistas e era filmado/fotografado no Carnaval. A associação entre ele (personalidade com direito a visibilidade) e o roubo do trem pagador não era automática. Biggs não era tratado como um criminoso, nem visto como um ladrão. Ele era uma espécie de herói/bufão popular e desfrutava de sua condição com bastante desenvoltura reforçando cuidadosamente o papel que lhe foi conferido pela mídia brasileira.
A ambiguidade da cultura brasileira naquela época era evidente, muito embora eu só tenha percebido isto bem mais tarde. Da mesma forma que Ronald Biggs era festejado como um herói/bufão os militantes de esquerda que roubavam bancos para sustentar a resistência à ditadura eram perseguidos ferozmente. Os rostos deles eram divulgados nas ruas, nos jornais e nas redes de TV e a população era incentivada a fornecer informações sobre seu paradeiro para que eles pudessem ser oficialmente presos (ou torturados e mortos extra-oficialmente). Os ladrões brasileiros não tinham direito ao glamour concedido a Ronald Biggs, pois a imprensa era censurada. A censura, porém, nunca operou efeitos para retirar do ladrão inglês a condição de herói/bufão lhe atribuído de maneira espontânea.
Hoje a morte de Ronald Biggs é notícia em todos os portais de internet. Certamente ocupará um espaço considerável nos telejornais noturnos. Não ficarei surpreso se o tempo concedido a Biggs hoje for maior que o atribuído à roubalheira tucana no Metrô paulista durante a semana inteira. Afinal, o roubo do trem pagador inglês há algumas décadas certamente produzirá mais distração e alegria aos brasileiros do que o roubo de bilhões do Metrô que segue obrigando seus usuários a serem transportados como sardinhas em lata nos horários de pico. Além disto, Ronald Biggs tem o mesmo glamour concedido a José Serra e Geraldo Alckimin, cujas imagens são tão dissociadas do roubo do Metrô quando a do inglês foi destacada do roubo do trem pagador na década de 1970.
Antes de morrer, Ronald Biggs resolveu voltar para a Inglaterra e cumprir parte de sua pena. Desde então, no Brasil sua imagem foi elevada da condição de herói/bufão para a de Herói capaz de um grande auto-sacrifício. Mas o auto-sacrifício imediatamente cometido pelos petistas que se entregaram voluntariamente à Justiça para serem presos não despertou qualquer empatia da imprensa. Mesmo presos os petistas seguem sendo tratados como vilões. A imprensa não é mais censurada, mas continua a perseguir ferozmente aqueles que lutaram contra a ditadura. A ambiguidade jornalística neste momento diz muito sobre sua verdadeira natureza da mídia brasileira.
Não tenho dúvidas de que no dia de hoje os telejornais lamentarão a morte de Ronald Biggs, atacarão os réus do Mensalão petista destinando nenhum ou pouquíssimo tempo à roubalheira tucana no Metrô. Nenhum jornalista perguntará a José Serra e Geraldo Alckimin se eles estão de luto pela morte de Ronald Biggs (apesar do inglês poder ser considerado o Patrono de todos os ladrões de Trens e Metrôs brasileiros). O Metrô tem sido pagador da propaganda que sustenta a mídia antes, durante e depois das eleições?