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Da responsabilidade civil por abandono afetivo, à luz do ordenamento jurídico pátrio

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Agenda 26/12/2013 às 11:10

3. DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

3.1. Considerações Gerais

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, dispõe que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Trata-se da proteção integral à criança e ao adolescente, a doutrina acolhida pelo nosso ordenamento jurídico, conforme se verifica no art. 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente.

A doutrina da proteção integral absorve os valores insculpidos na Convenção dos Direitos da Criança. Em assim sendo, crianças e adolescentes passam a ser titulares de direitos fundamentais, como qualquer ser humano. Substituiu-se o Direito do Menor pelo Direito da Criança e do Adolescente.

No dizer de Andréa Rodrigues Amin (2008, p. 14):

A conjuntura político-social vivida nos anos 80 de resgate da democracia e busca desenfreada por direitos humanos, acrescida da pressão de organismos sociais nacionais e internacionais levaram o legislador constituinte a promulgar a “Constituição Cidadã” e nela foi assegurado com absoluta prioridade às crianças e adolescentes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Paulo Afonso Garrido de Paula (p. 31) indica que a locução “proteção integral” é autoexplicativa, indicando-a como “finalidade política do Direito da Criança e do Adolescente e que ela faz parte de sua própria essência. Os princípios da ‘prioridade absoluta’ e ‘respeito à condição peculiar de pessoa em processo de desenvolvimento’ fazem do Direito da Criança e do Adolescente um ramo do direito cuja disciplina inspira a proteção integral da infância e adolescência”.

A doutrina baseia-se na concepção de que criança e adolescente são sujeitos de direitos universalmente reconhecidos, não apenas de direitos comuns aos adultos, mas, além desses, de direitos especiais provenientes de sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento que devem ser assegurados pela família, Estado e sociedade.

Seguindo esse entendimento, o Código Civil de 2002, em seu art. 1.634, I e II, que diz que compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores, dirigir-lhes a criação e educação, e tê-los em sua companhia e guarda.

Tratando-se de pais separados, fica limitado o direito de um deles de ter os filhos em sua companhia, sendo assegurado ao outro o direito de visitas.

Ocorre que, atualmente, no propósito dos interesses prioritários dos filhos, parte da doutrina tem se posicionado no sentido de que o direito de visitas é um direito/dever dos pais.

Conforme Rolf Madaleno (2009, p. 354), trata-se de um direito dos filhos manterem rotineira comunicação com ambos os pais, a fim de favorecer as relações humanas e de estimular a corrente de afeto entre o titular e o menor.

De acordo com Maria Berenice Dias (2009, p. 415):

A Constituição (CF 227) e o ECA acolheram a doutrina da proteção integral. Modo expresso crianças e adolescentes foram colocados a salvo de toda forma de negligência. Transformaram-se em sujeitos de direito e foram contemplados com enorme número de garantias e prerrogativas. Mas direitos de uns significam obrigações de outros. Por isso a Constituição enumera quem são os responsáveis a dar efetividade a esse leque de garantias: a família, a sociedade e o Estado.

O ECA, ao regulamentar a norma constitucional, identifica, entre os direitos fundamentais dos menores, seu desenvolvimento sadio e harmonioso (ECA 7º). Igualmente lhes garante o direito a serem criados e educados no seio de sua família (ECA 19). O conceito atual da família, centrada no afeto como elemento agregador, exige dos pais o dever de criar e educar os filhos sem lhes omitir o carinho necessário para a formação plena de sua personalidade, como atribuição do exercício do poder familiar. A grande evolução das ciências que estudam o psiquismo humano veio a escancarar a decisiva influência do contexto familiar para o desenvolvimento sadio de pessoas em formação.

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Não se podendo mais ignorar essa realidade, passou-se a falar em paternidade responsável. Assim, a convivência dos filhos com os pais não é direito, é dever. Não é direito de visitá-lo, é obrigação de visitá-lo. O distanciamento entre pais e filhos produz sequelas de ordem emocional e reflexos no seu sadio desenvolvimento. O sentimento de dor e abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida.

Trata-se, pois, de um múnus do poder familiar, complexo de direitos e deveres pessoais e patrimoniais com relação ao filho menor, não emancipado, e que deve ser exercido no melhor interesse deste último.

E não poderia ser diferente, vez que somente o equilíbrio e a harmonia dos papéis dos genitores trazem ao filho de pais separados um desenvolvimento físico e mental adequado.

Assim é que o abandono afetivo tem merecido cada vez mais atenção por parte dos operadores do direito. A necessidade afetiva passou a ser reconhecida como bem juridicamente tutelado.

3.2. Doutrina e Jurisprudência acerca do tema

A questão da responsabilidade civil em decorrência do abandono afetivo é polêmica não somente na doutrina como também na jurisprudência.

No que diz respeito ao abandono afetivo paterno-filial, objeto do presente estudo, a doutrina majoritária vem se posicionando de maneira negativa, aduzindo, para tanto, falta de previsão legal no nosso ordenamento jurídico para este tipo de conduta. A única obrigação do pai ou da mãe é o sustento, guarda e educação dos filhos.

De acordo com essa corrente doutrinária, não pode a lei obrigar o responsável a sentir afeto pelos filhos; tal laço é componente que advém do espírito, do psíquico humano, não podendo a lei determinar a sua criação ou extinção.

Nesse sentido os seguintes julgados:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS - ABANDONO AFETIVO - ATO ILÍCITO - INEXISTÊNCIA - DEVER DE INDENIZAR - AUSÊNCIA. A omissão do pai quanto à assistência afetiva pretendida pelo filho não se reveste de ato ilícito por absoluta falta de previsão legal, porquanto ninguém é obrigado a amar ou a dedicar amor. Inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 186. do Código Civil, eis que ausente o ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como passível de indenização.

(TJMG - Ap. Cível nº 1.0024.07.790961-2/001, Rel. Des. Alvimar de Ávila, DJ 11/02/2009).

APELAÇÃO CÍVEL. ALIMENTOS E INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO. OBRIGAÇÃO AVOENGA. CARÁTER EXCEPCIONAL E SUBSIDIÁRIO. AUSÊNCIA DE PROVA DA IMPOSSIBILIDADE DOS GENITORES. A obrigação alimentar dos avós só tem cabimento quando esgotadas as possibilidades de prestação alimentar pelos pais. No caso, diante da ausência de tal prova, deve ser reformada a decisão recorrida. REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS DECORRENTES DE ABANDONO. INOCORRÊNCIA. Sendo subjetiva a responsabilidade civil no Direito de Família, o dever de indenizar pressupõe o ato ilícito. Ausente a prova do ato ilícito e, mais do que isso, comprovado nos autos que o recorrente contou com a figura de pai, que inclusive contribuiu financeiramente com a criação do filho, sequer há indícios de dano moral efetivo. Portanto, deve ser confirmada a sentença de improcedência. DERAM PROVIMENTO AO APELO DO RÉU E NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO DO AUTOR.

(Apelação Cível Nº 70030142285, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em 30/07/2009)

ALIMENTOS. FILHO MAIOR E CAPAZ. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ABALO EMOCIONAL PELA AUSÊNCIA DO PAI. 1. Sendo o filho maior, capaz, apto ao trabalho e com receita própria, com plenas condições de prover seu próprio sustento, descabe impor ao genitor encargo alimentar ou mesmo a obrigação de custear-lhe os estudos ou visando, ainda, o pagamento de prestações pretéritas da sua faculdade. 2. O pedido de reparação por dano moral no Direito de Família exige a apuração criteriosa dos fatos e o mero distanciamento afetivo entre pais e filhos não constitui situação capaz de gerar dano moral, nem implica ofensa ao (já vulgarizado) princípio da dignidade da pessoa humana, sendo mero fato da vida. 3. Embora se viva num mundo materialista, nem tudo pode ser resolvido pela solução simplista da indenização, pois afeto não tem preço, e valor econômico nenhum poderá restituir o valor de um abraço, de um beijo, enfim de um vínculo amoroso saudável entre pai e filho, sendo essa perda experimentada tanto por um quanto pelo outro. Recurso desprovido. (SEGREDO DE JUSTIÇA)

(Apelação Cível Nº 70032449662, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 26/05/2010)

Em sentido contrário, os defensores da responsabilidade civil por abandono afetivo alegam que a afetividade é um dever imposto aos pais em relação aos filhos, em decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, preceito fundamental a partir do qual emanam todas as demais garantias legais e constitucionais (art. 1º, III, do Constituição Federal de 1988).

De acordo com Paulo Lôbo (2008, p. 284):

O artigo 226 da Constituição não se resume ao cumprimento do dever de assistência material. Abrange também a assistência moral, que é dever jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão indenizatória.

Para Maria Berenice Dias (2009, p. 416), a falta de convivência entre pais e filhos, em face do rompimento do elo de afetividade, pode vir a causar severas sequelas psicológicas e comprometer seu desenvolvimento saudável. A figura paterna é responsável pela ruptura da intimidade mãe-filho e pela introdução do filho no mundo transpessoal, dos irmãos, dos parentes e da sociedade, um mundo onde imperam ordem, disciplina, autoridade e limites, de modo que a ausência da figura do pai desestrutura os filhos, tira-lhes o rumo da vida e debita-lhes a vontade de assumir um projeto de vida.

Como não poderia deixar de ser, a lei obriga e responsabiliza os pais no tocante aos cuidados com os filhos. Ausentes esses cuidados, resta configurado o abandono moral, violando a integridade psicofísica dos filhos, bem como o princípio da solidariedade familiar, valores protegidos pela Constituição Federal de 1988. Esse tipo de violação configura dano moral. E, como se sabe, quem causa dano é obrigado a indenizar.

Nessa esteira, a jurisprudência a seguir:

ECA. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. DESCUMPRIMENTO DO DEVER INERENTE AO PODER FAMILIAR. ADOLESCENTE QUE PRETENDE APROXIMAÇÃO COM O PAI. ABANDONO AFETIVO POR PARTE DO GENITOR. INFRAÇÃO AO ART. 249. DO ECA CARACTERIZADA. CONDENAÇÃO QUE SE PÕE COMO DEVIDA. MULTA NO MÁXIMO COMINADA. REDUÇÃO, PORÉM, QUE SE RECOMENDA PARA O MÍNIMO LEGAL. VALORAÇÃO DAS DIRETRIZES BALIZADORAS. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.

(Apelação Cível Nº 70037322781, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Ari Azambuja Ramos, Julgado em 12/08/2010)

A respeito do tema, merece destaque a Apelação Cível n° 20000.00.408550-5, proveniente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a primeira a chegar ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça.

In casu, sustentou o autor que desde o divórcio de seus pais, seu pai deixou de lhe prestar assistência psíquica e moral, evitando-lhe o contato, além de ignoradas todas as tentativas de aproximação do pai, quer por seu não comparecimento em ocasiões importantes, quer por sua atitude displicente, situação causadora de extremo sofrimento e humilhação.

Em primeira instância, o Juiz de Direito da 19ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, Minas Gerais, julgou improcedente o pedido inicial, salientando:

Não obstante a relutância paterna em empreender visitações ao filho afete-lhe negativamente o estado anímico, tal circunstância não se afigura suficientemente penosa, a ponto de comprometer-lhe o desempenho de atividades curriculares e profissionais, estando o autor plenamente adaptado à companhia da mãe e de sua bisavó.

Inconformado, o autor interpôs apelação. A Sétima Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais deu provimento ao recurso para condenar o recorrente ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 44.000,00 (quarenta e quatro mil reais), entendendo configurado nos autos o dano sofrido pelo autor em sua dignidade, bem como a conduta ilícita do genitor, ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio com o filho e com ele formar laços de paternidade.

Eis a ementa do acórdão referido acima:

INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS - RELAÇÃO PATERNO-FILIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana.

No entanto, o Superior Tribunal de Justiça entendeu de modo diverso. Para o STJ, escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo. Em assim sendo, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de indenização.

Ressalte-se, por oportuno, o voto vencido do Ministro Barros Monteiro, segundo o qual o genitor, ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio e afeto com o filho, deixando assim de preservar os laços da paternidade, está incorrendo em conduta ilícita, que tem o dever de dar assistência moral ao filho, de conviver com ele, de acompanhá-lo e de dar-lhe o necessário afeto, considerando, pois, ser devida a indenização por dano moral, evidenciado com o sofrimento, com a dor, com o abalo psíquico sofrido pelo autor.

Ademais, não há que se falar no princípio da liberdade, a fim de justificar a conduta omissiva do pai em relação ao seu filho. Isso porque, em havendo colisão de princípios, deve-se resolver o conflito por meio da ponderação de interesses. E, como não poderia deixar de ser, o princípio da dignidade da pessoa humana, por sua essência e valor, se sobrepõe a todos os demais.

Nesse sentido, Daniel Sarmento (A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 76):

A dignidade da pessoa humana afirma-se como o principal critério substantivo na direção da ponderação de interesses. Nenhuma ponderação pode implicar em amesquinhamento da dignidade da pessoa humana, uma vez que o homem não é apenas um dos interesses que a ordem constitucional protege, mas a matriz axiológica e o último desta ordem.

Igualmente, não há que se falar em cumprimento das obrigações materiais como forma de esquivar-se da responsabilidade civil, vez que a paternidade não gera apenas deveres de assistência material, existe um dever, a cargo do pai, de ter o filho em sua companhia.

Outrossim, cumpre-nos ressaltar que não se vislumbra o caráter punitivo na indenização por dano moral em decorrência do abandono afetivo. No dizer de Maria Celina Bodin de Moraes (Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 85):

Não se trata, pois, de condenar um pai que abandonou seu filho (eventual dano causado), mas de ressarcir o dano sofrido pelo filho quando, abandonado pelo genitor biológico, não pôde contar nem com seu pai biológico, nem com qualquer figura substituta.

Em verdade, a indenização conferida nesse contexto atende duas relevantes funções, além da compensatória: a punitiva e a dissuasória.

Nesse sentido, a lição de Cláudia Maria da Silva (Descumprimento do Dever de Convivência Familiar e Indenização por Danos á Personalidade do Filho, in Revista Brasileira de Direito de Família, Ano VI, n° 25 – Ago-Set 2004):

Não se trata, pois, de “dar preço ao amor” – como defendem os que resistem ao tema em foco - , tampouco de “compensar a dor” propriamente dita. Talvez o aspecto mais relevante seja alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos, conscientizando o pai do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e outros que sua conduta deve ser cessada e evitada, por reprovável e grave.

Assim é que, em que pese não se poder obrigar ninguém ao cumprimento do dever de afeto, seu titular pode sofrer as consequências do abandono afetivo, podendo vir a ser responsabilizado civilmente por sua omissão.

Sobre o autor
Thomas de Carvalho Silva

- Advogado, especialista em Dir. e Proc. de Famílias e Sucessões. - Autor de diversos artigos e comentários jurídicos publicados em sites e revistas especializadas, bem como palestras e trabalhos apresentados em congressos e seminários.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Thomas Carvalho. Da responsabilidade civil por abandono afetivo, à luz do ordenamento jurídico pátrio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3830, 26 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26239. Acesso em: 23 nov. 2024.

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