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Alteração de fachada nos condomínios e o alcance da regra do art. 1.336, III, do CC/2002

Agenda 30/12/2013 às 14:46

Artigo em que analisa-se os direitos do condomínio e dos condôminos à luz da da regra contida no art. 1.336, III, do Código Civil.

Zapeando em frente à TV, deparei-me com uma reportagem aparentemente boba, mas que, do ponto de vista jurídico, é capaz de causar certo espanto.

No caso em questão, a TV Record exibia um episódio envolvendo a modelo Geyse Arruda (aquela moça que foi expulsa de uma faculdade por usar um vestido curto), revelando que ela teria sido vítima de perseguições por parte da administração do condomínio onde residia, pelo singelo fato de ter ornado um dos quartos, cuja janela fica de frente para a via pública, com cortinas rosa-choque, tendo em vista que é a cor que predominava em seu apartamento.

A equipe de reportagem, então, solicitou esclarecimentos de um advogado especializado em questões de condomínios, o qual afirmou ser possível estatuir na convenção de condomínio que as unidades não podem ter cortinas que destoem da cor predominante na fachada do prédio.

Notificada a retirar as cortinas, a locatária se recusou, pelo que foi multada em R$ 600,00 (seiscentos reais), bem como advertida de que a insistência poderá ensejar novas multas.

Pois bem, o art. 1.336, III, do Código Civil vigente prevê como sendo um dos deveres do condômino a não alteração da forma e da cor da fachada, e das partes e esquadrias externas do prédio. Eis a regra:

Art. 1.336. São deveres do condômino:

(omissis)

III – não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas;

Mas, qual é o alcance dessa regra? Quais são os limites impostos ao condômino e à administração do condomínio? Essa regra aplica-se à ornamentação interna das unidades do prédio?

Comentando o dispositivo, Flávio Tartuce esclarece que “a proibição de alteração de fachada tem por objetivo a manutenção da harmonia estética do edifício”. Adiante, o autor arremata, asseverando que “a alteração que em nada implique comprometimento dessa harmonia arquitetônica não é considerada infração(…)” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v. 4: Direito das Coisas, 4ª ed. São Paulo: Método, 2012, p. 285).

O preceptivo em questão deixa claro que a proibição imposta aos condôminos refere-se à área externa do edifício. A nosso aviso, por se tratar de regra restritiva, deve ser interpretada restritivamente, conforme recomendam as melhores técnicas de hermenêutica. Além disso, conforme a consideração doutrinária do eminente civilista citado, a limitação restringe-se ao conjunto arquitetônico da construção, isto é, refere-se a proibições de alterações na fachada do prédio.

Alguns argumentos podem ser apontados para justificar a abusividade com que agiu a administração do condomínio em questão.

No que interessa a este breve estudo, a primeira justificativa pode ser retirada da própria Constituição Federal, que estatui como direitos fundamentais:

1. “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II);

2. “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, X);

3. “A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (art. 5º, XI).

Entendemos que as normas constitucionais em comento podem ser perfeitamente aplicáveis em casos como o narrado, em absoluta consonância com a tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, cujo objetivo é o de limitar a supressão ou limitação de direitos fundamentais por parte de outros particulares, e não só do Estado, como é tradicionalmente demarcada a função de direitos dessa natureza.

Em relação à necessidade de lei para que algo seja imposto ou proibido a alguém, embora seja comum na praxe jurídica a afirmação de que a convenção de condomínio é sua "lei interna", não se pode perder de vista que tal estatuto decorre de mero exercício da autonomia privada, portanto não se revestindo da força das espécies normativas previstas na Carta Fundamental (art. 59), sendo que nesta, bem como na lei em sentido formal, emanada dos entes legiferantes, é que as convenções de condomínio encontram limites, jamais podendo se revestir de poderes capazes de violar direitos fundamentais.

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Quanto à inviolabilidade da vida privada, não é difícil enxergar como afrontoso um ato que determine que a residência de alguém deva ser ornada com cortinas dessa ou daquela cor. A escolha da decoração de uma residência cabe, exclusivamente, a seu dono, e mais ninguém. No caso do possuidor, a lei faculta ao proprietário estatuir contratualmente que determinadas alterações estruturais não poderão ser feitas no imóvel, mas jamais determinar que os móveis devem harmonizar com a arquitetura do apartamento ou da casa; que o tapete do banheiro deve combinar com os azulejos etc.

Finalmente, no que toca à inviolabilidade do domicílio, entendemos que tal proibição não alcança somente a invasão física da casa de outrem, mas também a violação institucional. Nesse sentido, um ato que importe na supressão ou limitação de um direito fundamental deve ser considerado inválido. Sendo assim, uma convenção de condomínio jamais poderia determinar que as cortinas do apartamento de alguém devam ter cores que combinem com a fachada do prédio. Fosse assim, um morador que preferisse não ornamentar seu imóvel com cortinas poderia ser interpelado pela administração do condomínio, pelo fato de o lustre com design modernista que possui em sua sala não combinar com a arquitetura franco-anglo-greco-romana-germanica-jamaicana do prédio! Seria um absurdo!

Fica, então, o convite para a reflexão. Se me permitem o trocadilho, às vezes, uma simples e despretensiosa matéria jornalística pode se capaz de fazer com que se descortine um universo de ideias. É isso que dá vida ao Direito.

Quanto às cortinas rosa-choque, gosto não se discute; mas o direito, sim

Sobre o autor
Vitor Guglinski

Advogado. Professor de Direito do Consumidor do curso de pós-graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (RJ). Professor do curso de pós-graduação em Direito do Consumidor na Era Digital do Meu Curso (SP). Professor do Curso de pós-graduação em Direito do Consumidor da Escola Superior da Advocacia da OAB. Especialista em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Ex-assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Autor colaborador da obra Código de Defesa do Consumidor - Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional (Juspodivn). Coautor da obra Temas Actuales de Derecho del Consumidor (Normas Jurídicas - Peru). Coautor da obra Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico (Empório do Direito). Coautor da obra Direito do Consumidor Contemporâneo (D'Plácido). Coautor de obras voltadas à preparação para concursos públicos (Juspodivn). Colaborador de diversos periódicos jurídicos. Colunista da Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal. Palestrante. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4246450P6

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUGLINSKI, Vitor. Alteração de fachada nos condomínios e o alcance da regra do art. 1.336, III, do CC/2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3834, 30 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26269. Acesso em: 24 nov. 2024.

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