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Portadores de deficiência e o concurso público

Agenda 01/02/2002 às 01:00

Analisando-se o ordenamento jurídico que se destina a regular os direitos dos portadores de deficiência, duas impressões apresentam-se. A primeira delas é que as normas se encontram em número reduzido na Constituição e, não obstante serem escassas, elas não estão ordenadas por capítulo, constituindo-se em normas esparsas dentro do texto constitucional, o que dificulta sobremaneira seu estudo. A segunda impressão é que, após 13 anos de vigência da Constituição, não há, ainda, por parte da sociedade e, principalmente, do Poder Público consciência da necessidade de tratar-se a matéria de modo justo e responsável. Continuam os portadores de deficiência a encontrar dificuldade em integrar-se na comunidade, seja através do setor privado, seja do setor público.

Para reduzir as desigualdades reinantes nesta seara, foi criada a Lei n.º 7.853, de 24 de outubro de 1989, com o objetivo de dispor acerca da integração do portador de deficiência na sociedade. Estabeleceu normas gerais a respeito do direito à educação, à saúde, formação profissional, trabalho, área de recursos humanos e área de edificações. Para a regulamentação dessa lei, o Executivo baixou o Decreto n.º 3.298, de 20 de dezembro de 1999, consolidando as normas de proteção e dando outras providências, além do que, dispôs sobre a Política Nacional para integração daqueles cidadãos na sociedade. Este Decreto traz diretrizes, princípios, objetivos e instrumentos para a realização plena do portador de deficiência na comunidade.

A Lei n.º 8.112, de 11 de dezembro de 1990, Regime Jurídico dos Servidores Públicos, estabeleceu no artigo 5º, § 2º, que seriam destinadas aos portadores de deficiência até 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos. Tanto a Constituição, quanto a Lei n.º 8.112 não regulamentaram suficientemente esta matéria, de maneira que se dissipassem as dúvidas acerca dos direitos daqueles cidadãos no tocante às regras que iriam imperar durante o transcurso dos certames. Assim, cada edital de concurso previa, a seu modo, como seria a participação e convocação dos portadores de deficiência ao exercício do cargo ou emprego público, o que gerou abusos por parte das instituições.

Poder-se-ia tecer considerações a respeito de toda a matéria, haja vista o interesse que desperta e a amplitude que a questão comporta, porém, o presente estudo dirige-se especificamente a analisar o caminho percorrido pelo deficiente quando visa ingressar no serviço público, como se dá sua participação no concurso. A importância da matéria surgiu com a leitura do artigo 37, VIII, da Constituição da República, o qual adiante transcrevemos:

"a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão"

Havia prejuízo para esses candidatos porque, em que pese lhes serem reservadas vagas, não havia regras a respeito de sua convocação para o exercício do cargo. As instituições, com fundamento na tese de administrativistas de envergadura, escondendo o intuito discriminatório que regia seus comandos, socorriam-se da discricionariedade que imperava, e ainda impera, nos atos administrativos para convocar vários candidatos não-deficientes e não fazer o mesmo com os portadores de deficiência, que necessitavam, como ainda necessitam, pleitear seu direito perante o Judiciário. O prazo de validade do concurso se exauria e o candidato habilitado e com reserva de vaga acabava preterido.

Dez anos se passaram sem que o Poder Público instituísse normas claras a respeito da participação daqueles cidadãos nos concursos. Pensamos que, com a vigência do Decreto n.º 3.298, o Poder Público tem que modificar urgentemente sua forma de agir. Não se admite atualmente a criação de condições nos editais que contrariem os princípios estabelecidos naquele Decreto. O Estado não pode criar leis protetoras dos portadores de deficiência e ao mesmo tempo infringi-las. Assim, faz-se necessário trazer à baila o que dispõe o artigo 37, §§1º e 2º, do Decreto:

"O candidato portador de deficiência, em razão da necessária igualdade de condições, concorrerá a todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual de cinco por cento em face da classificação obtida."

"Caso a aplicação do percentual de que trata o parágrafo anterior resulte em número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subsequente."

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É interessante verificar que os editais dos concursos públicos passaram a atender somente em parte ao prescrito neste artigo do Decreto, ou seja, no edital destinam porcentagem de vagas aos candidatos deficientes. Surge o problema quando se necessita convocar os candidatos para assumirem os cargos ou empregos públicos. Como mais uma norma ficou lacunosa, é justamente nesta etapa do certame que os candidatos continuam a sofrer discriminação, enfrentando as mesmas dificuldades de outrora, pois as instituições interpretam a norma a seu modo, maquiando muitas vezes uma conduta irregular, preterindo os portadores de deficiência na convocação.

O Decreto tratou a respeito da participação dos portadores de deficiência no concurso, mas em momento algum dispôs sobre a convocação deles para o exercício do cargo ou emprego. Há uma omissão generalizada quanto à regra de convocação. Assim, deu-se oportunidade de os editais criarem condições para convocação dos candidatos deficientes habilitados no certame, cada um fazendo da maneira que melhor parecer-lhe. Veja-se o caso do concurso público da Caixa Econômica Federal, realizado em 1999, no qual o item 11.5 do edital condicionou a convocação de um deficiente físico a cada vinte candidatos não-deficientes convocados para admissão. Tal edital feriu substancialmente o objetivo buscado pela norma do artigo 37, VIII, da Constituição, que é integrar o deficiente na sociedade. Este dispositivo constitucional foi criado justamente para diminuir a dificuldade de acessibilidade destes candidatos aos cargos e empregos públicos, utilizando para isso a reserva de vagas.

Essa reserva legal faz com que os candidatos portadores de deficiência, embora concorrendo a todas as vagas do concurso, em não logrando classificação suficiente para ser convocado entre os demais candidatos, sejam chamados de acordo com listagem própria, da qual só participe os portadores de deficiência. Todo concurso, portanto, possuirá duas listas de candidatos, é o que se depreende do artigo 42 do mesmo Decreto.

"A publicação do resultado final do concurso será feita em duas listas,..."

Em uma delas constarão apenas os nomes dos candidatos deficientes, embora estes devam constar na outra lista também. Destarte, conjugando a imposição de reserva legal de vagas, bem como a obrigatoriedade de listagem própria, chega-se a conclusão que os deficientes participam no concurso de maneira diferenciada. Seria uma espécie de concurso dentro de outro, seguindo as mesmas regras, porém, os deficientes concorrendo a vagas que lhes são exclusivas. Caso sejam habilitados dentro das exigências editalícias, estarão aptos para a convocação, caso contrário, àquelas vagas serão aproveitadas pelos candidatos não-deficientes.

O artigo 39 do Decreto deixa claro o intuito do legislador.

"Os editais de concursos públicos deverão conter:

I- o número de vagas existentes, bem como o total correspondente à reserva destinada à pessoa portadora de deficiência;"

O que se infere do texto é que, sendo habilitados, não é correto que os deficientes esperem preencher diversos cargos/empregos pelo candidatos não-deficientes, correndo o risco de exaurir-se o prazo do concurso, para serem os últimos convocados ao exercício efetivo, não há fundamento para sustentar-se tal tese. A vaga reservada é destinada ao deficiente. Nada justifica que havendo dez vagas, entre elas duas reservadas aos deficientes, a Administração convoque os candidatos habilitados para as oito vagas, enquanto os deficientes ficam aguardando, pois geralmente acontece de não serem convocados, a não ser aqueles que se dispõem a pleitear em juízo eventual "direito". Não existe justificativa para tal conduta, senão que estamos diante de uma grosseira e arbitrária discriminação. Ocorre muitas vezes de exaurir-se o prazo do concurso e o deficiente que logrou o primeiro lugar na lista de portadores de deficiência não ser convocado. Porém, os candidatos não-deficientes na maioria das vezes já se encontram trabalhando, muitos além do número de vagas previsto pela Administração.

Vê-se outra peculiaridade descrita neste Decreto. Encontrando-se percentual fracionário de vagas reservadas, imediatamente eleva-se para o primeiro número inteiro subsequente. Isso faz com que, havendo apenas uma vaga para preenchimento no concurso, seja oferecida também uma vaga para deficiente. Essa é a lógica do Decreto. Matematicamente, existindo uma vaga tem-se 0,05 reservada ao deficiente. Utilizando-se a regra do artigo 37, §2º encontramos uma vaga também para o deficiente.

Recentemente foi publicado o edital do XLI concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, dando-nos um exemplo quase perfeito de como deverá o Poder Público agir para não ferir direitos dos portadores de deficiência, tampouco privilegiá-los em detrimentos dos demais candidatos. No item XI, j e k estabeleceu-se a seguinte regra: condicionou-se a primeira admissão de candidato portador de deficiência após o preenchimento da décima vaga dos não-deficientes, sendo as demais admissões efetivadas na vigésima, trigésima vaga e assim sucessivamente. Compreendeu o Ministério Público de Minas Gerais o objetivo buscado pelo Decreto n.º 3.298\99, reconhecendo o direito das pessoas portadoras de deficiência sem privilégios ou paternalismos (art.5º, III).

Por que o edital da Caixa Econômica Federal contraria as normas que aqui se tratam e o edital do Ministério Público não? Simplesmente porque o Ministério Público de Minas Gerais atendeu ao dever imposto no artigo 39 do Decreto, onde se exige a definição do número de vagas no concurso e o número destinado aos portadores de deficiência. Daí a previsão no item XI, a de que, do número total de setenta e cinco vagas existentes no concurso, estão reservadas oito vagas para os deficientes. Quando se alia o atendimento da norma do Decreto – quanto à exigência do número de vagas reservadas do total – com a porcentagem destinada aos portadores de deficiência (10%), explica-se a quase-perfeição do edital do Ministério Público (MG), pois no universo de setenta e cinco vagas, sendo a convocação de 10 para 1, o dez representa o universo de 14,9% dos não-deficientes e o 1 representa 12,5% dos deficientes. Não seria admissível que fossem convocados todos os deficientes primeiramente para depois convocar-se os não-deficientes, como também não o seria se fossem convocados todos os não-deficientes e por último os deficientes. A regra aplicada conseguiu proporcionalizar razoavelmente a convocação dos dois tipos de candidatos, sem violar direitos ou causar discriminação. Já o edital da Caixa Econômica Federal, não definindo o número de vagas existente no concurso, apôs um critério subjetivo, pois não reservou porcentagem equivalente como o exemplo acima, demonstrando claramente prejuízo para os portadores de deficiência. Se naquele momento só existissem na Caixa Econômica Federal, por exemplo, cinco vagas, pelo menos uma seria do deficiente. Porém como não houve a indicação de total de vagas, nem reserva para deficientes, a empresa fica protegida contra eventual acusação de preterição de candidato, pois o fato de convocar vinte candidatos não-deficientes para só após convocar um deficiente a princípio não seria discriminação.

Essa é uma das formas de discriminação que vem sendo utilizada pela Administração Pública para preterir direitos dos deficientes físicos. Demonstra-se, assim, a necessidade premente de modificar tal comportamento. Faz-se obrigatório abraçar um exemplo tão nobre como nos foi dado pelo Ministério Público de Minas Gerais e expurgar de vez a noção equivocada que temos da importância do deficiente na sociedade. Poder-se-ia começar pela recusa da denominação deficiente, que é totalmente imprópria para designar um ser humano.

Sobre a autora
Maria Magdala Sette de Barros

analista processual da Procuradoria da República no Estado de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Maria Magdala Sette. Portadores de deficiência e o concurso público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2639. Acesso em: 22 nov. 2024.

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