A onda de protestos que assola o país suscita as mais variadas reações que vão desde o aplauso indistinto até a condenação absoluta, sendo ambos extremos entremeados por certo otimismo que enxerga um despertar da população para um espírito crítico que promove a ação em seu sentido mais forte preconizado por Hannah Arendt como o “agir humano”, expressão da chamada “vita activa” dividida em “três atividades fundamentais”: labor, trabalho e ação”. No labor há apenas um processo biológico do corpo humano que o sustenta (a conduta de alimentar-se, excretar etc.); no trabalho encontra-se “o artificialismo da existência humana”, que “produz um mundo ‘artificial’ de coisas nitidamente diferente de qualquer ambiente natural”. Por fim, vem a ação como “única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem mediação da coisas ou da matéria”, correspondendo “à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo”. [1]
Para estes últimos otimistas repentinamente ou talvez mais provavelmente como resultado de um lento processo, teria emergido uma consciência popular capaz de agir no sentido político e humano acima mencionado, expressando em condutas aquele sentimento de indignação estagnado e absolutamente improdutivo que jazia há tempos no seio da sociedade. Em meio a essa ação positiva haveria pontos de infiltração de indivíduos e/ou grupos mais ou menos organizados com a finalidade de tão somente se aproveitar das agitações naturais de um período crítico para promover atos de vandalismo, desordem, violência, os quais estariam totalmente desatrelados daquele despertar de consciência política da população em geral que se manifesta nas ruas.
Entretanto, como quase invariavelmente ocorre, nem extremistas de ambos os lados, nem otimistas têm razão. É incrível como a irracionalidade pueril pode induzir a variados caminhos ilusórios e como a humanidade em geral, não somente no Brasil, tem dificuldade em assimilar o ensinamento aristotélico da virtude da mediania.
“Os homens são bons de um modo apenas, porém são maus de muitos modos. A virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e paixões, e consistente numa mediania,, isto é, a mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. É um meio – termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta, pois nos vícios ou há falta ou há excesso daquilo que é conveniente no que concerne às ações e às paixões, ao passo que a virtude encontra e escolhe o meio – termo”. [2]
Importa destacar que o autor acima mencionado não afirma que a mediania é um princípio racional próprio do homem (homem em geral), mas um “princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática” (grifo nosso). Esse “homem dotado de sabedoria prática” é aquele capaz de discernir a virtude com sustento na “teorética” e forjar então as normas de sua conduta considerada virtuosa (prática), as quais redundarão numa poiética (conduta efetiva, um fazer) coerente e benéfico.
Eis a raiz do problema que nos indica por que é tão difícil que a humanidade após tantos séculos dessa revelação ainda não consiga assimilá-la adequadamente. O motivo é simples; esse homem dotado de sabedoria prática é uma raridade em meio a uma massa disforme de estúpidos. Tem plena razão Vitor J. Rodrigues quando em sua obra ironicamente magistral afirma que “nos dias que correm, tal como no passado, a estupidez dita leis pelo mundo afora”. [3] E mais, toma para si a ingente missão de conceituar com precisão o que seja essa estupidez: “estupidez não é ausência de inteligência mas resistência ativa à inteligência”. [4]
Outros autores de escol também já vislumbraram essa realidade há tempos, focando na mediocridade que, ao reverso do que possa parecer a alguns, afasta totalmente os homens da virtude da mediania para a qual, como já visto, é requisito a sabedoria.
Wilhelm Reich descreve o seu “Zé – Ninguém”:
“Um Zé – Ninguém não sabe que é pequeno e tem medo de saber. Esconde sua insignificância e estreiteza por trás de ilusões de força e grandeza, da força e da grandeza de alguma outra pessoa. Sente orgulho dos seus grandes generais, mas não de si mesmo. Admira uma ideia que não teve, não uma ideia que teve. Quanto menos entender alguma coisa, mais firme é sua crença nela. E, quanto melhor entende uma ideia, menos acreditará nela”. [5]
Por seu turno assim se manifesta José Ingenieros sobre o “homem medíocre”:
“Individualmente considerada, a mediocridade poderá ser definida como uma ausência de características pessoais que permitam distinguir o indivíduo em sua sociedade. (....). A sociedade pensa e quer por eles. Não têm voz, senão eco. Não há linhas definidas nem em sua própria sombra, que é, apenas, uma penumbra”. [6]
Nessa perspectiva, detratores absolutos das manifestações populares, bem como seus entusiastas estão imersos numa bolha de estupidez e cegueira. Pode parecer então, que os otimistas que entremeiam as posturas extremas, apontando para um emergir de consciência política, permeada por pontuais ou mesmo recorrentes atuações equivocadas que descambam para a violência e o vandalismo, estariam mais próximos daquela “sabedoria prática” que conduz à mediania virtuosa de Aristóteles. Afirmo com convicção: são tão iludidos quanto todos os demais.
Acontece que se houve em algum momento um despertar cívico na população brasileira, sustentado em sentimentos e ideais louváveis de repúdio à corrupção e à inépcia governamental que, diga-se de passagem, não se resume a este ou àquele partido ou governo, mas praticamente conforma uma “cultura” (sic) hedionda, isso se processou de forma extremamente tênue e, principalmente, atomizada, desorganizada, desorientada, bem como, o que é o pior de tudo, muito facilmente manipulável e manobrável para os mais diversos e espúrios fins.
Aliás, a suspeita de que a origem desses movimentos não tenha germinado num são sentimento popular, mas, na verdade, em uma insidiosa e orquestrada manobra política com fins tenebrosos vai cada vez mais se mostrando plausível. Já vão surgindo aqui e acolá indicações de que grupos de manifestantes são arregimentados e pagos para promover agitações. Nesse quadro dilui-se amargamente qualquer espécie de alento que se poderia entrever na suposta tomada de consciência da população brasileira. Afinal que ideal se pode encontrar em pessoas que atuam mediante paga ou promessa de recompensa, a não ser o vício da torpeza profunda? E ainda maior torpeza se encontrará naqueles que não se mostram e atuam às espreitas, induzindo esses movimentos para a criação de um caos desejado.
Parece que os arquitetos de toda essa agitação inicialmente artificial não contavam com a aderência de camadas populares motivadas por certo grau de ingenuidade, mas que efetivamente saíram às ruas com o fito de pleitear reformas, mudanças de posturas, bem como chamar à responsabilidade a classe política. Essa adesão de inocentes, que normalmente seriam “inocentes úteis”, acabou gerando um problema, um verdadeiro tiro no pé porque ao invés de inocentes úteis foram “inocentes – entraves”.
Porém, mesmo essas pessoas bem intencionadas que foram às ruas para protestar legitimamente no exercício de seu direito à liberdade de pensamento, reunião, consciência e expressão, estão longe de formarem um bloco coeso, detentor de uma pauta definida de reivindicações ou planejamentos. Em meio aos grupos de agitadores com motivações inconfessáveis há uma massa amorfa, atomizada e desencontrada de indivíduos que detém alguma informação, mas muito pouco conhecimento e menos ainda consciência de suas expectativas. Como já foi dito, não vivemos uma época onde grassa a sabedoria prática preconizada por Aristóteles, mas sim num contexto social e político em que há uma “superinformação produtora de ignorância”, para utilizar uma expressão de Bruckner. [7]
Trazendo à baila a constatação de Guillebaud, sustentada no pensamento do ensaísta alemão, Ulrich Beck, o máximo que se pode lobrigar em meio a toda essa agitação que é presenciada não é um florescimento democrático, mas o fenômeno daquilo que se convencionou denominar de uma “subpolítica”. Essa subpolítica se constitui de um “aglomerado” que mescla numa mixórdia uma quase lógica midiática, interesses de todas as espécies, “efervescência da sociedade civil”, influência da moda, indução publicitária etc. Essas forças ou tendências distintas, incongruentes e por vezes até mesmo antagônicas acabam se juntando por uma espécie de “adesão instintiva a uma representação quase religiosa de progresso, crença que continua a agir subterraneamente, a despeito das decepções já causadas”. Embora subterrânea e rasteira, essa subpolítica consegue atuar e corroer a “política tradicional” e o efetivo “debate democrático”. Não é a voz do povo, nem o som das massas mobilizadas de forma coerente, mas um ruído incômodo e indiscernível que se faz ouvir e pode, obviamente de forma desastrada e desastrosa, conduzir tortuosamente os rumos da história e das mudanças sociais. Essa política baixa, a despeito de sua baixeza, tem capacidade de influência tão mais forte quanto mais fanática e irracional se torne. Ela convida a crer quase religiosamente em um futuro desconhecido e promissor, em algo novo, algo inédito ou fantástico. [8] Mas, tudo não passa de ilusões criadas no seio de uma massa caótica, influenciável e manobrável. Quando não de atuações direcionadas por interesses escusos de “rebeldes a soldo”, insuflados e orientados por grupos e indivíduos que atuam à surdina como genuínas eminências pardas.
A ilusão do tal “gigante adormecido que acordou” (sic) baseada na efetiva existência de pessoas bem intencionadas nessas manifestações e protestos é produto do abafamento da “voz da sabedoria num mundo de ruído”, no seio do qual, exatamente por causa de tanto ruído essa voz nunca é ouvida. [9]
Acaso tal voz fosse ouvida logo se perceberia a natureza da manobra espúria que foi levada a termo e, mesmo após alguns reveses, parece ainda ter serventia para os fins colimados. As chamadas “manifestações pacíficas”, a parcela bem intencionada da população que foi às ruas para expressar seu descontentamento genuíno e, de certa forma, assustou inicialmente os promotores do caos, não foi suficiente para dissuadi-los de seus planos. Parece que, ao reverso, ao perceberem a existência de uma grande parcela, embora amorfa e perdida, da população brasileira que está amplamente descontente com o “status quo”, se apercebem de certa urgência em colocar logo em prática instrumentos para a contenção de dissidentes e efetivos opositores que antes julgavam praticamente inertes ou até mesmo virtualmente inexistentes.
A tática é tão antiga quanto a história da humanidade. Trata-se de disseminar o caos, o medo e a sensação de insegurança para justificar medidas extremadas a fim de reconstituir a ordem ou o tecido social esgarçado. Só que é justamente quem esgarçou deliberadamente o tecido que se propõe a cosê-lo com a agulha fervente e a linha dura do autoritarismo, senão do totalitarismo (v.g. Nazismo, Fascismo, Comunismo). [10]
Como bem descreve Carvalho:
“Já quando a esquerda revolucionária sobe ao poder por via eleitoral numa nação mais ou menos democrática e desenvolvida, ela encontra um proletariado numeroso e às vezes até organizado. Mas é um proletariado que já não serve como classe revolucionária, porque a evolução do capitalismo, em vez de empobrecê-lo e marginalizá-lo como previa Marx, elevou seu padrão de vida formidavelmente e o integrou na sociedade como uma nova classe média, indiferente ou hostil à proposta de revoluções. Para não ficar socialmente isolados e politicamente ineficazes, os revolucionários têm de encontrar algum grupo social cujo conflito de interesses com o resto da sociedade possa ser explorado. Mas não existe nenhum que tenha com a burguesia um antagonismo econômico tão direto e claro, um potencial revolucionário tão patente quanto aquele que Karl Marx imaginou enxergar no proletariado. Não havendo nenhuma ‘classe revolucionária’ pura e pronta, o remédio é tentar formar uma juntando grupos heterogêneos, movidos por insatisfações diversas. Daí por diante, quaisquer motivos de queixa, por mais subjetivos, doidos ou conflitantes entre si, passarão a ser aproveitados como fermentos do espírito revolucionário”. [11]
É possível entrever, portanto, um padrão:
“A lógica revolucionária opera sempre com dois objetivos simultâneos e antagônicos, um declarado e provisório, o outro implícito e constante. O primeiro é a solução de algum problema social ou de alguma crise. O segundo é a desorganização sistemática da sociedade e o aumento do poder do grupo revolucionário” (grifo nosso). [12]
Somente um cego intencional ou por incapacitação intelectual não vê cristalinamente a miríade de movimentos e grupos de reivindicação fomentados direta ou indiretamente para a implícita finalidade de criar uma situação caótica de onde venha a emergir a necessidade de medidas extremas. Uma boa metáfora seria a do incendiário que ateia fogo na casa e depois aparece travestido de bombeiro para apagar.
O financiamento e fomento dos chamados “Black Blocs” por políticos da situação e/ou de uma pseudo – oposição. A movimentação de protestos potenciais contra a Copa do Mundo que se opera de forma absolutamente anacrônica, já que o momento adequado para isso seria quando a questão era ainda objeto de discussão e não fato consumado. O que se pode pretender agora, a não ser pura baderna inútil e legitimadora de uma ação repressora do Estado Brasileiro contra a própria população, inclusive perante a mídia e a comunidade internacional? E ainda temos mais adiante as Olimpíadas! Os chamados “Rolezinhos” com sua absoluta inadequação, ocasionando tão somente tumultos, óbices ao trabalho e ao comércio, inclusive de pessoas da classe pobre que trabalham nos Shoppings e também os freqüentam. Tudo isso incentivado por órgãos estatais que se empenham em inserir artificialmente no episódio um suposto “conflito de classes”, quando não uma mais absurda ainda alegação de “ódio racial”. Finalizando, sem esgotar o tema, pode-se arrolar toda uma miríade de grupos de reivindicação tais como as chamadas “minorias” (que nem sempre o são a não ser num sentido metafórico), como por exemplo, gays, feministas, usuários de drogas, abortistas, antiabortistas, desempregados, movimentos sociais de sem terra ou sem teto, ativistas ambientais, ativistas raciais, étnicos, religiosos ou ateus etc.
Como há quem não perceba que o insuflar desses heterogêneos movimentos esteja ligado à plena má fé, oculta por um simulacro de respeito ao pluralismo democrático, é um dos mistérios insondáveis do universo!
Eis que, porém, a coisa fica ainda mais escrachada. Devidamente criado o ambiente de confusão mental e social capaz de propiciar a desorientação, a insegurança e o medo, exsurge o discurso do chamado “Direito Penal Simbólico” com a sugestão de criação de uma legislação para punir a “desordem” e “regulamentar” as manifestações públicas.
É mais do que sabido nos meios acadêmicos jurídicos que a solução para qualquer conflito social jamais pode ser encontrada na mera criação de uma nova norma penal ou na exacerbação punitiva de um dispositivo criminal pré – existente. Mas, o denominado “Direito Penal Simbólico” se alimenta demagogicamente do sentimento de medo e insegurança e da ilusão do homem comum de que a repressão penal é a panacéia para todos os males. De acordo com Silva Franco:
“o pampenalismo, isto é, a utilização do Direito Penal como uma espécie de ‘'panacéia para todos os males’ (...) quando não traduz uma bastardização deste instrumento de controle social, pode representar uma completa desmoralização decorrente de sua inoperância e ineficácia”. [13]
Mas, a pergunta que não quer calar é a seguinte: quem dá a mínima para isso? Quem se preocupa com a legitimidade e eficácia do Direito Penal enquanto instrumento de pacificação social quando o que se quer realmente é aproveitar uma brecha criada dolosamente para obter uma legitimação espúria da repressão e da limitação de direitos e garantias fundamentais, especialmente com o fito de eliminar eventuais dissidências?
Será que o recentíssimo exemplo da Venezuela com prisões arbitrárias de opositores, com a censura ferrenha da imprensa e dos meios de comunicação e a repressão de manifestações populares não é suficiente para que se possa ver com um grau excepcional de clareza o que está se conformando no Brasil?
Infelizmente a própria imprensa brasileira não é tão contundente e esclarecedora como deveria ser a respeito dessas questões. Na verdade ela atua muito mais como cúmplice ou, no mínimo, se omite. Dessa forma propicia campo fértil para a proliferação daquilo que Sumariva classifica como uma “Criminologia midiática”, que
“é aquela que atende a uma criação da realidade através da informação, subinformação e desinformação da mídia, afastando-se de estudos acadêmicos, em convergência com preceitos e crenças, que se baseiam em uma etiologia criminal simplista, assentada em uma causalidade mágica. Eugenio Raúl Zaffaroni aponta que as criminologias midiáticas variaram muito no tempo, em decorrência do meio de comunicação próprio de cada época. Entretanto, sempre foram construídas diante de uma causa mágica, isto é, a ideia da causalidade especial, usada para canalizar a vingança contra determinados grupos humanos eleitos como ‘bodes expiatórios’”. [14]
O efeito pretendido do caos social e do conflito intersubjetivo aparente ou realmente elevado a um grau insuportável é obtido mediante a exploração do mecanismo do mimetismo enquanto colisão de desejos entre as pessoas (querer ser como o outro, ter o que o outro tem, agir como o outro age, reagir como o outro reage...). Esse mecanismo, seja individual ou coletivamente, já foi antropologicamente esmiuçado e desvendado por René Girard em seus estudos sobre o tema, onde demonstra que é natural o clamor social por repressão a indivíduos ou grupos sempre que os conflitos intersubjetivos tomam uma dimensão incontrolada ou ao menos aparentemente incontrolada, em suma, caótica. Daí surge a figura do “bode expiatório” que pode sim servir como tática para a instalação de um regime autoritário, senão totalitário, em que serão “bodes expiatórios” quaisquer dissidentes. [15]
Não os ignorantes que servem de massa de manobra em meio a todo esse planejamento milimétrico, mas seus idealizadores principais certamente detém o conhecimento dos meandros antropológicos acima delineados e também da análise já feita por Foucault há tempos quanto à percepção de que o poder não se exerce somente por meio negativo e repressivo, dizendo “não”, proibindo. Se fosse assim, dificilmente seria respeitado. Aquilo que permite que o poder se sustente e seja acatado, é justamente o fato de que ele não pesa sobre a sociedade como uma força que só “diz não”, mas de fato “ele permeia” a sociedade, “produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”. O poder deve ser visto como “uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir”. [16] Por isso estão todos perfeitamente cientes de que um projeto de dominação e perpetuação no poder não pode abrir mão de alguma via de legitimação discursiva que produza algo a que a sociedade almeje. A segurança e o aplacar do medo são efetivamente excelentes legitimadores para um projeto totalitário – repressivo. Nesse contexto, devidamente criado o ambiente caótico onde reina a insegurança e o medo, qualquer medida repressiva, ainda que violadora direta de direitos individuais, ainda que produtora de uma sociedade monodiscursiva, poderá prosperar porque a tirania terá condições de se aconchegar no interior de uma moral que adornará seu exercício e fará de sua brutalidade e truculência uma suposta “dominação serena do Bem sobre o Mal, da ordem sobre a desordem” (grifo nosso). [17]
É tarefa impossível definir, dentro dos limites exigidos pelo chamado “Princípio da Legalidade Estrita”, onde se preconiza uma determinação semântica segura dos tipos penais, o que seja “desordem” ou mesmo supostamente “regulamentar” milimetricamente o direito de manifestação pública, de expressão dos pensamentos, consciência e crença, de reunião, de protesto etc. O mero intento de regulamentar abstratamente essa espécie de manifestações já é em si antidemocrático, autoritário, senão totalitário. Nesse campo, não há como fugir do caso concreto e sua avaliação criteriosa por quem de direito, ou seja, pelo Poder Judiciário, numa verificação “a posteriori”. Semelhante é o caso de se pretender impor censura prévia (o que já foi aventado diversas vezes, mas rechaçado porque não se havia construído com tanto esmero o clima necessário para sua aceitação). Não. É admissível a avaliação posterior do abuso eventualmente cometido e a responsabilização do infrator nas várias searas jurídicas (penal, administrativa e civil), mas jamais a censura prévia.
A “regulamentação” abstrata do direito de manifestação e a tipificação de um suposto crime de “desordem” necessariamente infringirão o “Princípio da Legalidade Estrita” que Ferrajoli distingue da “mera legalidade”, estabelecendo-o “como uma regra metajurídica de formação da linguagem penal que para tal fim prescreve ao legislador o uso de termos de extensão determinada na definição de figuras delituosas, para que seja possível a sua aplicação na linguagem judicial como predicados ‘verdadeiros’ dos fatos processualmente comprovados”. [18]
Meyer – Pflug apresenta os sistemas Norte – Americano e Europeu de enfrentamento da questão da liberdade de expressão, ainda que diante dos chamados “discursos do ódio”. No Sistema Americano prima-se por um “Princípio da Neutralidade” do Estado, permitindo inclusive o discurso do ódio, desde que este não passe ou apresente um potencial nítido de passar para atos concretos [19] Doutra banda, no Sistema Europeu a regra da neutralidade não é tão absoluta de modo que alguns conteúdos de discursos podem ser objeto de proibição, ainda que se mantenham apenas no âmbito das ideias e não dos atos concretos. [20] É preciso notar, porém, que em qualquer caso, a pessoa ou grupo tem o direito de se manifestar e sua manifestação somente será objeto de avaliação posterior. Como bem aduz a autora em destaque, seja qual for o sistema para a avaliação da liberdade de expressão, “é impossível se falar em Estado Constitucional Democrático sem o reconhecimento das liberdades públicas, precipuamente, a liberdade de expressão”. [21]
O alerta acerca do atentado aos direitos fundamentais e à própria ordem democrática que constitui uma legislação que visa tipificar um crime de “desordem” e “regulamentar” o direito de livre expressão e manifestação é mais que urgente. Essa legislação não deveria sequer chegar a ser posta num papel, muito menos promulgada, mas se o for, caberá ao STF declarar sua total inconstitucionalidade. A população brasileira não se pode permitir ludibriar tão facilmente por manobras escusas de quem pretende impor um discurso único através da criação de uma situação caótica artificial. Se houve ou houver abusos no exercício do direito de livre expressão e manifestação públicas, estes deverão ser coibidos de acordo com a legislação já existente. O Direito Penal Brasileiro já é suficientemente afetado pelo fenômeno da expansão indevida. Temos tipos penais abundantes que podem perfeitamente ser manejados caso necessário. A criação de uma nova lei que tipifica uma conduta aberta como “desordem” e tem a pretensão de “regular” (reprimir) abstratamente o direito de expressão e manifestação não passa de um golpe na já tão frágil e combalida democracia brasileira.
É bem mais fácil cessar com abusos mediante o corte dos financiamentos e incentivos de grupos de baderneiros “rebeldes a soldo”. É disso que a população brasileira deve ter ciência para refutar qualquer limitação abstrata à liberdade de expressão e manifestação. Mesmo porque, se efetivamente o povo brasileiro não tiver maturidade para exercer essa liberdade, não será uma lei penal coercitiva e inconstitucional que solverá a questão, pois como bem lembra Ingenieros, “enquanto não se refletem nos costumes, as melhores leis de papel não modificam a estupidez de quem as admira nem o sofrimento de quem as aguenta”. [22] E, ademais, uma lei como esta que se está aventando nem sequer é uma dessas “melhores leis de papel” de que fala Ingenieros. É sim uma lei oportunista e embusteira que vem à sorrelfa a fim de propiciar um domínio absoluto mediante o silenciamento e imobilização de todo um povo. Se há que falar em alguma “desordem” esta só pode ser a desordem mental de quem possa ter cogitado esse imbróglio usurpador da legitimidade de nossa ordem jurídico – constitucional e do poder que, em última análise, ao menos formalmente e na dicção constitucional, deve emanar do povo.