7. A torre de babel das novas adjetivações de dano
A expressão torre de babel tem origem bíblica e remete a uma torre que foi construída por um povo com o objetivo que seu cume alcançasse o céu. Deus, contudo, a fim de que a obra fosse interrompida, confundiu a língua desse povo para que, não se comunicando, não pudessem dar continuidade à empreitada.
Assim, “torre de babel” significa, atualmente, a profusão de linguagens desconexas, um cenário no qual não existe uma uniformidade linguística. Seria, fazendo uma analogia à feliz expressão de Thomas Kuhn22, uma ausência de ciência normal, ao passo que não há pacificidade alguma entre os juristas quando tratam dos “novos danos”.
No momento em que a dignidade da pessoa humana passou a ser o centro do sistema, a doutrina e a jurisprudência perceberam que precisavam proteger o indivíduo em todos os seus aspectos. Todavia, a dignidade de uma pessoa é composta por uma imensa gama de atributos e direitos, não há como limitar o que compõe a chamada “clausula geral de tutela da personalidade”, proceder de tal maneira seria limitar a própria dignidade humana, o que não é admissível.
Passaram a surgir, então, dia a dia novos bens jurídicos merecedores de proteção, todos reflexos da dignidade humana. A jurisprudência, bem como a doutrina, talvez em razão da cultura positivista que imperou até pouco tempo no sistema jurídico brasileiro, que buscava taxar, descrever, adjetivar, todas as situações jurídicas, passaram a nomear cada dano dirigido à dignidade humana, gerando, consequentemente, uma gama de nomenclaturas, uma infinidade de novas adjetivações de dano.
7.1. Menções doutrinárias e jurisprudenciais de "novos danos"
O presente tópico busca demonstrar as inúmeras novas adjetivações de dano que têm aparecido na doutrina e jurisprudência. Cada nova ofensa a um aspecto a dignidade humana surge uma nova qualificação. Alerta-se que não se faz aqui uma análise taxativa de todas as espécies de “novos danos”, mas, exemplificativamente, demonstra-se o cenário desconexo presente no meio jurídico.
Inicia-se o estudo selecionando alguns exemplos decorridos da jurisprudência. Surgem a todo o momento decisões fulcradas em “espécies” de dano moral, pois, a depender de qual seja o âmbito da dignidade afetada, os Tribunais acabam acolhendo ou mesmo criando uma adjetivação específica a esse dano.
7.1.1. Dano estético
O chamado dano estético corrobora o que fora afirmado. Quando a ofensa atinge a integridade física da pessoa, causando-lhe deformidades, fundamenta- se a decisão não no dano moral, mas no dano estético, dando-lhe autonomia, como se fosse uma espécie de dano extrapatrimonial diferente do dano moral.
O próprio Superior Tribunal de Justiça já reconheceu o chamado dano estético de maneira autônoma. Conforme se aduz do acórdão abaixo:
ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANOS MORAIS E ESTÉTICOS. PERDA DE MEMBRO SUPERIOR. INDENIZAÇÃO. VALOR IRRISÓRIO. MAJORAÇÃO.
1. O valor do dano moral deve ser arbitrado segundo os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade, não podendo ser irrisório, tampouco fonte de enriquecimento sem causa, exercendo função reparadora do prejuízo e de prevenção da reincidência da conduta lesiva. 2. Nesses termos, o valor (R$ 50.000,00) revela-se, de fato, irrisório, se levados em consideração os aspectos conjunturais e a extensão do dano perpetrado, que culminou em lesão irreversível com perda de membro superior direito e dano estético - reconhecido pelo acórdão hostilizado. 3. In casu, revela-se mais condizente com a situação o valor indenizatório equivalente a R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), sendo R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a título de danos morais e R$ 30.000,00 (trinta mil reais) a título de danos estéticos, tudo atualizado desde o presente julgado e acrescido de juros de mora desde o evento danoso, nos termos da Súmula 54 do STJ. Agravo regimental improvido.
(Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Ag 1259457/RJ. Segunda Turma. Min. Humberto Martins.) (grifou-se)
Percebe-se, da leitura do acórdão ora destacado, que o dano estético foi tratado de maneira distinta do dano moral, dando-lhe autonomia. Neste sentido, vale destacar a lição de SÉRGIO CAVALIERI FILHO:
Prevaleceu na Corte Superior de Justiça o entendimento de que o dano estético é algo distinto do dano moral, correspondendo o primeiro a uma alteração morfológica da formação corporal que agride à visão, causando desagrado e repulsa; o segundo ao sofrimento mental – dor da alma, aflição e angústia a que a vítima é submetida.23
No que tange ao dano estético, o STJ veio até mesmo a editar uma súmula reconhecendo sua autonomia. Oportunamente, destaca-se que o conteúdo e reflexos da presente súmula serão objeto de análise em tópico próprio.
7.1.2. Dano psicológico
As Cortes, contudo, não se limitam ao dano estético. Caso a ofensa dirija-se à integridade psíquica da vítima, os Tribunais entendem que se trata não de dano moral, mas de dano psicológico. Os acórdãos abaixo demonstram bem essa realidade:
Ressarcimento – Dano Psicológico e moral – Sofrimento psíquico intimamente ligado com a reparação do dano moral – Indenização fixada em 50 salários mínimos, cuja finalidade é da reparação pelo dano extrapatrimonial e o sofrimento psíquico e moral a ser suportado pelo menor, que teve parte do braço amputado, carregando consigo uma deformidade definitiva"
(TJSP - Ap. Cível nº 42.460-4) (grifou-se)
Ação de Indenização por danos morais - Ingestão de água imprópria para o consumo. Corpo estranho em garrafão de água mineral. Incidência do Código de Defesa do Consumidor. Presença de elemento caracterizador da responsabilidade civil objetiva. Dano psicológico presente. Dano Moral configurado. Valor fixado em dissonância com os fatos ocorridos. Minoração. Recurso provido parcialmente. Decisão Unânime.
(TJSE – Ap. Cível: AC 2007213953 SE) (grifou-se)
Novamente, percebe-se que os Tribunais adjetivaram o dano, dando-lhe tratamento distinto ao dispensado ao dano moral. Se assim não fosse, não haveria porque fazer referência aos dois tipos de dano.
7.1.3. Dano existencial
Merece também destaque o dano existencial, que vem ganhando relevo na jurisprudência pátria, conforme demonstram as decisões abaixo destacadas.
Assédio Moral: Dano existencial decorrente de terrorismo psicológico e degradação deliberada da integridade, dignidade,das condições físicas e psíco- emocionais do trabalhador mediante conduta de conteúdo vexatório e finalidade persecutória. Inocorrência. Ausência de comprovação de fatos tendentes à desestabilização do trabalhador em seu local de trabalho, em relação aos pares e a si mesmo, com o fim de provocar o despedimento, a demissão forçada ou induzida ou prejuízo das perspectivas de progressão na carreira. Mácula que só se considera existente quando perceptível ao senso comum de indivíduo médio e que possua o condão de afetar negativamente a auto-estima por seu potencial razoavelmente aferível como ofensivo ou degradante a algum dos direitos da personalidade.24 (grifou-se)
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS PATRIMONIAIS E EXTRAPATRIMONIAIS. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO POR ATOS LEGISLATIVOS. LEI DECLARADA INCONSTITUCIONAL. PERMISSÃO DE SERVIÇO DE TRANSPORTE INDIVIDUAL DE PASSAGEIROS. MOTOTÁXI. DEVER DE INDENIZAR. - RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO POR ATOS LEGISLATIVOS - LEI MUNICIPAL INCONSTITUCIONAL - Tratando de responsabilidade civil do Estado por atos legislativos, consistente em lei declarada inconstitucional pelo Poder Judiciário é necessário que a comprovação do nexo causal entre a lei inconstitucional e o dano ocorrido. Hipótese na qual a declaração de inconstitucionalidade de lei municipal, que regulamentava os serviços de transporte individual de passageiros denominado mototáxi, causou danos de ordem patrimonial e extrapatrimonial ao autor que com o município demandado firmou contrato individual de permissão dos serviços de transporte, após ter preenchido todos os requisitos exigidos na licitação. Rescisão do contrato que repercutiu significativamente na vida cotidiana do autor. Dano existencial configurado. Nexo causal entre o dano e a lei municipal inconstitucional. - DANOS PATRIMONIAIS - Não é devida a quantia relativa aos juros do financiamento para a compra da motocicleta, porque
não constitui dano ao autor, mas, sim, acréscimo ao seu patrimônio, em razão de ter adquirido um veículo zero quilômetro. Devida a despesa pela pintura do veículo para atender o requisito do decreto regulamentador, com a ressalva de que tal valor não diz respeito à depreciação do bem. Igualmente devida a importância concernente ao pagamento de todas as despesas relativas à regulamentação e legalização para a atividade de mototaxista. Pedido de dano patrimonial em parte procedente. - DANOS EXTRAPATRIMONAIS - Os danos extrapatrimoniais também se referem à esfera existencial da pessoa humana, impondo-se o dever de indenizar quando houver ofensa aos direitos da personalidade. Compreensão a partir do artigo 1º, III, CF, princípio da dignidade da pessoa humana. - QUANTUM DA REPARAÇÃO - O valor da indenização deve ser suficiente para atenuar as conseqüências da violação dos bens jurídicos em jogo, sem significar enriquecimento sem causa. APELAÇÃO E RECURSO ADESIVO PARCIALMENTE PROVIDOS. UNÂNIME.25
O dano existencial é entendido como aquele que inviabiliza o projeto de vida da vítima, que a impede de alcançar suas aspirações. Se o ato danoso faz com que a vítima não possa mais exercer determinadas atividades, a jurisprudência o tem qualificado como existencial.
7.1.4. Dano biológico
Os tribunais ainda reconhecem o chamado dano biológico, decorrente da ofensa à saúde do sujeito.
ACIDENTE DE TRÂNSITO - EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS - RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA - DANO PESSOAL INDENIZÁVEL - O art. 37, § 6º, da CF, estabeleceu para todas as entidades estatais e seus desmembramentos administrativos a obrigação de indenizar o dano causado a terceiros por seus servidores, independentemente da comprovação de culpa no cometimento da lesão A cicatriz em membro inferior, constatável a olho nu, sobretudo em pessoa do sexo feminino, identifica-se com o dano indenizável, visto que todo dano biológico, em sentido estrito, repercute na saúde do sujeito ao alterar, em alguma dimensão, o seu estado de bem-estar integral.26
Assim, qualquer ofensa a saúde, e não necessariamente à composição morfológica do sujeito, gera o chamado dano biológico. Desta forma, não é essencial para sua caracterização que transpareça no aspecto externo da vítima.
7.1.5. Outras espécies de dano (ou até onde vai a criatividade humana)
Essas novas adjetivações de dano não provêm apenas da jurisprudência, a doutrina também contribui com novas nomenclaturas, surgindo, por exemplo, o chamado dano de férias arruinadas, ao qual se aplica a indenização como forma de reparar a frustração das férias. Assim, defende-se que, caso, em razão do evento danoso, o indivíduo não possa gozar suas férias, haveria uma frustração de expectativa indenizável, ao tolher a oportunidade da vítima de desfrutar de momentos de prazer, como é o caso das férias, o causador do dano assume a responsabilidade de reparar as férias que foram, por sua conduta, arruinadas.
Sob esse argumento foi que a Primeira Turma Recursal do Estado da Bahia, no processo n. 33710-2/2002, impôs a obrigação de indenizar a uma transportadora que, em decorrência de um acidente, inviabilizou as férias da vítima. Segue a ementa:
DEFESA DO CONSUMIDOR. INDENIZATÓRIA. DANO MORAL E MATERIAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. EMPRESA DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO. LESÃO FÍSICA. DEFICIÊNCIA TEMPORÁRIA. FÉRIAS PERDIDAS. DOR. INDENIZAÇÃO. VALOR. MANUTENÇÃO. I- OS DANOS DECORRENTES DE ACIDENTE DE TRÂNSITO ENSEJAM INDENIZAÇÃO AOS USUÁRIOS, EM RAZÃO DA RELAÇÃO DE CONSUMO ENTRE ESTES E A EMPRESA DE VIAÇÃO RODOVIÁRIA FORNECEDORA DO SERVIÇO. II- A EMPRESA DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE PASSAGEIROS É RESPONSÁVEL PELOS DANOS DE ORDEM MORAL OU MATERIAL CAUSADOS AOS TRANSPORTADOS, INDEPENDENTEMENTE DE CULPA DA TRANSPORTADORA, VEZ QUE É SEU DEVER CONDUZIR OS PASSAGEIROS INCÓLUMES AO SEU DESTINO. III- CONFIRMA-SE INTEGRALMENTE A SENTENÇA QUE CONDENA A EMPRESA A REPARAR EM VALOR MÓDICO OS DANOS CAUSADOS À VÍTIMA. RECURSO IMPROVIDO.
Processo: 33710-2/2002 Relator: HELOISA PINTO DE FREITAS VIEIRA GRADDI Órgão Julgador:1ª TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS. (grifou-se)
Destaca-se, ainda, a título exemplificativo, o “dano por rompimento de noivado”, indenizando-se o nubente que foi vítima do desfazimento do noivado. Nesse sentido é o acórdão abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. NOIVADO. ZONA RURAL. PROMESSA DE CASAMENTO. RUPTURA INJUSTIFICADA. NOIVA GRÁVIDA. LESÃO À HONRA OBJETIVA E SUBJETIVA. VERIFICAÇÃO. DESRESPEITO AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ. RESPONSABILIDADE CIVIL CONFIGURADA. DEVER DE INDENIZAR RECONHECIDO. SENTENÇA MANTIDA. - É inconteste a livre manifestação de vontade dos nubentes quanto à possibilidade de rompimento do noivado, desde que tal ruptura não acarrete ofensa à honra subjetiva e objetiva do outro. Restando provado nos autos que houve má-fé por parte de um dos nubentes, induzindo a erro o outro, certa é a incidência do instituto da responsabilidade civil, com a consequente imposição do dever de indenizar.27
Todavia, a criatividade da doutrina e jurisprudência não se limita aos tipos de dano ora destacados, podendo-se falar, por exemplo, em dano-morte ou o dano sexual28.
Anderson Schreiber, fazendo referência à jurisprudência italiana, cita, ainda, o dano à vida de relação, o dano pela perda de concorrencialidade, o dano por redução da capacidade laboral genética e o dano sexual.29
Desta forma, o que se nota é uma profusão quase ilimitada de novos danos.
Percebe-se, portanto, que o dano se encontra “multi-facetado”, recebendo uma nomenclatura própria de maneira casuística, classificando-os, muitas vezes em razão da origem da conduta danosa e não do bem jurídico ofendido, o que acaba gerando um imenso manancial de novas adjetivações de dano. Esse processo foi, em parte, estimulado pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme se dispõe a demonstrar.
7.2. Súmula 387 do STJ e a suposta autonomia das novas adjetivações de danos
Dispõe a súmula 387 do STJ: “É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e moral”. Entende o presente Tribunal, portanto, que o dano estético não é dano moral, possuindo autonomia conceitual.
O dano estético é entendido como sendo aquele que ofende a integridade física da pessoa deixando-lhe marcas e/ou lesões. De maneira geral, se o dano causa alguma deformidade que gere repugnância, é entendido como dano estético. Neste sentido é também o entendimento de SÉRGIO CAVALIERI FILHO, que ao discorrer acerca dessa espécie de dano afirma:
Inicialmente ligado às deformidades físicas que provocam aleijão e repugnância, aos poucos passou-se a admitir o dano estético também nos casos de marcas e outros defeitos físicos que causem à vítima desgosto ou complexo de inferioridade – como, por exemplo, cicatriz no rosto da atriz, manequim ou ator.30
É interessante destacar que inicialmente o próprio STJ entendia que não poderia haver cumulação de dano moral com dano estético, haja vista que este ou se traduzia em dano material, ou estaria compreendido naquele. Todavia, o presente Tribunal, como visto acima, mudou seu entendimento, passando a admitir a cumulação.
O dano estético, portanto, tem sua autonomia conceitual reconhecida na jurisprudência, em que pese não se saber ao certo os limites desse conceito, haja vista que se caracteriza pela ofensa à integridade física que gera deformidades. Sabendo-se que a integridade física compõe a cláusula geral de proteção à dignidade da pessoa, esse tipo de ofensa geraria também um dano moral (vide conceito de dano moral exposto acima), fica a pergunta: quando a ofensa física caracteriza dano estético e quando caracteriza dano moral? Isso é algo que ainda não foi enfrentado pela jurisprudência, que se limitou a dar autonomia ao referido dano.
Essa mudança de entendimento e a consequente edição da súmula ratifica o cenário vigente na jurisprudência e na doutrina no tocante à responsabilidade civil, mais especificamente às espécies de dano, estimulando a criação de novas adjetivações.
Se o dano estético merece tratamento distinto, por que o dano psicológico também não mereceria? Ou o dano biológico? Ou o dano existencial? E tantos outros.
A súmula reflete a mentalidade casuística de eleição de espécies de dano. É como se, para merecer proteção jurídica (ou como forma de elevar o quantum indenizatório), fosse necessário o dano ter autonomia, fora da “vala comum” do dano moral. Será que essa forma de se enxergar o dano é realmente a correta? O próximo tópico se destina a tentar responder o presente questionamento.