6. Das formas de intervenção do Ministério Público
Duas podem ser as formas de intervenção do órgão ministerial.
A primeira é a forma espontânea, mediante requerimento justificado do Ministério Público para ingresso no processo. Em sendo aceito, o órgão ministerial passa a intervir no feito, sendo intimado de todos os atos processuais. Caso contrário, da decisão de indeferimento é cabível o recurso de agravo.
A segunda forma é a provocada, mediante despacho judicial determinado a intimação do Promotor de Justiça para participar do Processo. Por força de sua autonomia, compete exclusivamente ao Ministério Público, por intermédio de seus órgãos de execução, aferir se é não ou caso de intervenção. Entendendo não ser caso de intervenção, deve o Promotor de Justiça expor suas razões de forma fundamentada. Não concordando com as razões apresentadas, deve o Juiz aplicar, por analogia, o artigo 28 do Código de Processo Penal, submetendo a questão à apreciação do Procurador Geral de Justiça. Confirmada a recusa, o feito segue sem intervenção do parquet. Decidindo o chefe do parquet pela intervenção, há de ser designado, em nome do princípio da independência funcional, outro membro para atuar no feito.
7. Dos instrumentos colocados à disposição do Ministério Público em sua atuação como defensor dos interesses da sociedade
Como visto, o pensamento contemporâneo vislumbra o Ministério Público como um órgão voltado à defesa da sociedade, um verdadeiro representante da sociedade na defesa dos interesses coletivos.
Para eficácia dessa atuação, o Ministério Público dispõe de instrumentos legais.
Na esfera judicial, a ação civil pública é, por excelência, o mais conhecido instrumento de atuação do parquet, podendo ser utilizada na defesa de qualquer interesse coletivo latu sensu.
Na campo extrajudicial, se destacam a recomendação e o compromisso de ajustamento de conduta.
A recomendação, que tem fundamento no artigo 129, inciso II, da Constituição Federal, e no artigo 27, parágrafo único, inciso IV, da Lei n.º 8.625/93, deve ser encarada como uma medida de orientação, sem cunho mandamental, visando a proteção dos interesses difusos e coletivos. A título de exemplo, o Promotor de Justiça pode expedir uma recomendação visando a sinalização das ruas de uma cidade, a retificação das regras editalícias de um concurso público que se encontrem em dissonância com a lei e com os princípios constitucionais, a exoneração de servidores públicos em caso de nepotismo, dentre outras hipóteses.
Na prática, a recomendação tem efeitos positivos, pois na maioria dos casos é atendida pelo destinatário, o que evita ou faz cessar eventual lesão aos direitos coletivos e, também, inibe o ajuizamento de medidas judiciais.
O compromisso de ajustamento de conduta é um acordo firmado entre o Ministério Público e o agente causador de um dano ambiental, à ordem urbanística, ao consumidor ou a qualquer outro interesse tutelado pelo parquet.
Por intermédio dele, os interessados se comprometem a cumprirem determinadas condições, de forma a resolver o problema que estão causando ou compensar os danos e prejuízos já causados.
Lecionando sobre o assunto, Marcus Vinícius Rios Gonçalves tece as seguintes considerações:
O compromisso tem por fim encerrar o litígio, evitando a ação civil pública. Nele, só o causador do dano assume a responsabilidade. Ao celebrá-lo, este reconhece a obrigação de tomar providências, ajustando a sua conduta de acordo com as necessidades dos interesses transindividuais (sem que haja qualquer concessão por parte do ente legitimado). Trata-se quase de um reconhecimento da postulação do ente legitimado, antes mesmo que ela seja formulada judicialmente, e com a finalidade de evitar o ajuizamento da ação. Constitui título executivo extrajudicial, uma vez que não há mais necessidade de discutir responsabilidades. Se já tiver havido a propositura da demanda, não haverá mais compromisso de ajustamento, mas verdadeira transação, que, homologada judicialmente, terá força de título executivo judicial (GONÇALVES, 2006, p. 133/134)
Da mesma forma que a recomendação, o compromissão de ajustamento de conduta antecipa a resolução do problema de forma rápida e eficaz, evitando o aforamento de ações perante o Poder Judiciário, pondo fim aos danos já verificados ou inibindo os que estariam por vir.
Além disso, com base no artigo 129, inciso VI, da Constituição Federal, o Ministério Público pode também fazer notificações e requisições.
A notificação é o meio pelo qual o Promotor de Justiça dá ciência a alguém de que será ouvido em determinado procedimento administrativo a respeito de fatos relevantes para a investigação, informando-o do dia, hora e local em que isso ocorrerá.
O poder de requisição tem por objeto a obtenção de informações (geralmente de órgãos da administração pública) e a realização de exames ou perícias. Deve ser fixado um prazo mínimo de 10 (dez) dias para atendimento da requisição, sendo que a omissão do destinatário pode caracterizar infração penal (artigo 10 da Lei n.º 7.347/85).
8. Da legitimidade do Ministério Público para atuar em defesa da sociedade
A legitimidade processual do Ministério Público para atuar em defesa da sociedade é incontroversa, sendo derivada da própria Constituição Federal, cujo artigo 129, inciso III, preconiza que “são funções institucionais do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.
E de onde o Ministério Público retira sua legitimidade material para atuar em defesa da sociedade? Será que o Ministério Público, em sua atuação cotidiana, pratica atos que realmente representam os anseios da sociedade? A atuação do Ministério Público não estaria atrofiando o exercício da cidadania por parte das pessoas que vivem em sociedade?
O tema suscita divergências.
É consabido que em países desenvolvidos (como, por exemplo, na Alemanha, no Japão e na Suíça), o Ministério Público atua essencialmente na área criminal. Esses países, evidentemente, não enfrentam os problemas sociais existentes no Brasil: a saúde pública atende aos anseios da sociedade; os danos ao meio ambiente são em menor escala; os índices de corrupção são baixos.
Assim, o Ministério Público pode concentrar suas forças somente na área criminal.
Em estudos sobre o processo constitucional alemão e a atuação do Ministério Público, Emerson Garcia afirma:
O Ministério Público alemão, órgão autônomo da administração da Justiça (selbständiges Organ der Rechtpflege), como se percebe, não desempenha um papel de relevo no controle de constitucionalidade. Sua atuação é essencialmente voltada à persecução penal, tendo recebido relevantes atribuições da Lei Processual Penal (Strafprozesordnung - StPO), como a de buscar, no curso da fase preparatória da ação penal, as provas favoráveis e contrárias ao investigado (art. 160, II, da StPO). (GARCIA, 2006)
No mesmo sentido, estudando o Ministério Público no direito germânico, Valdir Sznick destaca:
Um Ministério Público, já atuante no século passado, de amplas atribuições no Processo Penal e de nenhum atividade no direito existe? Existe sim e, pelo menos em dois países de grande importância cultural econômica: um a Alemanha Ocidental, o outro, o Japão.
…
As atividades do Ministério Público Federal e Estadual são amplas, mas só no processo penal. No processo civil, o Ministério Público não tem atribuições. (SZNICK, 1984)
No entanto, no Brasil a realidade é diferente.
O Estado ainda é assistencialista e paternalista, sobretudo nas regiões norte e nordeste do país. O grau de instrução da sociedade, embora tenha aumentado nos últimos anos, ainda é considerado baixo, se comparado a países desenvolvidos. É justamente nesse contexto que o Ministério Público ganha força e se legitima como defensor da sociedade.
É raro um cidadão ajuizar uma ação popular em defesa do patrimônio público. Também não é comum uma associação legitimada interpor uma ação civil pública visando tutelar o meio ambiente, o direito do consumidor ou outro interesse difuso.
No fundo, até mesmo por sua ignorância e dependência do Estado, o cidadão espera e aguarda a atuação do Ministério Público, tido por ela como órgão autônomo e independente, atuação essa que, no atual contexto socioeconômico brasileiro, se mostra imprescindível e fundamental para tutela dos interesses difusos e coletivos.
9. Da conclusão
Do exposto, observa-se que a doutrina contemporânea, na esteira dos reclamos e anseios da sociedade, não mais contempla o Promotor de Justiça atuando meramente como custos legis em processos de casamento, divórcio, inventário, retificação de registro público, mandado de segurança, procedimentos de jurisdição voluntária e nas causas onde não restar suficientemente demonstrado o interesse público.
O Promotor de Justiça não é mais identificado no seio social como aquele profissional que atua estritamente na área criminal.
Ao contrário, a concepção doutrinária dominante faz a leitura do Ministério Público como uma instituição verdadeiramente voltada à defesa dos interesses coletivos, preocupado com a defesa de valores considerados mais nobres (tutela do meio ambiente, do ordem urbanística e do patrimônio público, dentre outros) e, em algumas situações, como indutor de políticas públicas e agente de transformação social, sobretudo num Estado assistencialista e paternalista como o Brasil.
Para tanto, pode fazer uso dos instrumentais da ação civil pública, da recomendação, do compromisso de ajustamento de conduta, da notificação, da requisição e inúmeros outros previstos nas diversas leis extravagantes que cuidam da matéria (Lei n.º 7.347/85, Lei n.º 8.069/90, Lei n.º 8.078/90, Lei n.º 8.429/92, Lei n.º 10.741/03, dentre outras).
E a mola propulsora a guiar sua atuação é, sem dúvida alguma, a intransigente defesa do interesse da sociedade, sociedade essa que no fundo o legitima a exercer tão relevante ofício.
REFERÊNCIAS
CABRERA, Carlos Cabral. Direitos da criança, do adolescente e do idoso: doutrina e legislação / Carlos Cabral Cabrera, Luiz Guilherme da Costa Wagner Junior, Roberto Mendes de Freitas Junior. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. Salvador: Podivm, 2007.
FONTES, Paulo Gustavo Guedes. O controle da administração pelo Ministério Público. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
GARCIA, Emerson. O processo constitucional alemão e a atuação do Ministério Público. Jus Navigandi, Teresina-PI, ano 11, n.º 1005, 02 de abril de 2006, disponível em www.jus.com.br, acesso em 13 de outubro de 2013
GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios Gonçalves. Tutela dos interesses difusos e coletivos. São Paulo: Editora Saraiva, 2006
MAIA FILHO, Napoleão Nunes. Comentários à nova Lei do mandado de segurança / Napoleão Nunes Maia Filho, Caio Vieira Rocha, Tiago Asfor Rocha Lima. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010
MARTINS, Fernando Rodrigues. Controle do patrimônio público: comentários à lei de improbidade administrativa. 2. ed. São Paulo: RT, 2007.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
_________. Ministério Público. 3. ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2005.
_________. O acesso à justiça e o Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
MOREIRA, Jairo Cruz. A intervenção do Ministério Público no Processo Civil à luz da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
NERY JÚNIOR, Nelson. Código de processo civil comentado e legislação extravagante: atualizado até 1º de março de 2006 / Nelson Nery Júnior, Rosa Maria de Andrade Nery. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
ROCHA, Vera Nilva Álvares. Racionalização da intervenção do Ministério Público no processo civil: Vera Nilva Álvares Rocha, B. Cient. ESMPU, Brasília, a. III, n.º 10. pág. 173/176, 2004
SÁ, Renato Montans de. Direito processual civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
SZNICK, Valdir. O Ministério Público no direito germânico. Revista Justitia, São Paulo, julho/setembro. 1984