IV. RISCOS DE EXCESSO NA APLICAÇÃO DA PENA E O POPULISMO PENAL
Nosso estado tem-se demostrado falho na tutela de seus bens, tendo a violência se tornado um dos principais frutos dessa insuficiência. Diante de uma sociedade repleta de riscos à integridade humana o sentimento de revolta popular se desenvolve, gerando uma inconformação social pela ineficiência dos serviços de segurança, pelo mal funcionamento do sistema de justiça pública, caindo em descrédito na mentalidade da população, e pelo excesso de crimes e criminosos na sociedade, impossibilitando uma vida pacífica. Em meio a essa realidade as pessoas acabam facilmente aderindo a ideias de uma mudança radical no sistema penal, capaz de proporcionar uma verdadeira "justiça". E , consequentemente, aproveitando-se da vulnerabilidade emocional e do senso comum popular a mídia utiliza-se de seus meios para a difusão de suas ideias hiperpunitivistas, pregando a mudança legislativa penal em prol de uma maior repressão aos delinqüentes, como único meio de se resolver os problemas da criminalidade. Esse populismo penal acaba trazendo sérios riscos ao direito, levantando a possibilidade da criação de penas excessivas para os crimes, sem levar em consideração princípios fundamentais na aplicação da pena, como a proporcionalidade, a individualização, a humanidade e a dignidade da pessoa humana.
A revolta popular com a situação degradante da sociedade, entregue a violência e a insegurança, e o "injusto" sistema penal, que, no imaginário comum, não prende mais os "potenciais criminosos", deixando-os livre para continuar a pratica de atos ilícitos, contribui para a implementação da ideia de que a solução dos problemas da insegurança social seja através de uma justiça violenta e repressiva, aberta a possíveis arbítrios contra os direitos do infrator, ou de uma justiça extralegal, com a participação popular, repleta de vingança, através da retribuição do crime, de linchamentos e até mesmo da pena de morte. É nesse cenário que o populismo penal midiático se desenvolve e é capaz de influenciar o legislativo na criação de leis com penas voluptuosas, promotoras de uma política criminal direcionada a "prender à todos", num sistema penitenciário superlotado, incapaz de atender a essa nova demanda de infratores.
Tudo isso reflete a crise dos valores tradicionais de justiça com os valores fundamentais do estado punitivo, baseado num direito penal de caráter ressocializador e preventivo. Com a falta de eficácia na concretização desse direito humanitário, criador de promessas de contenção da violência e da criminalidade social, as crenças conservadoras de uma justiça popular eclodem, proporcionando um campo favorável a cultura da vingança na aplicação das penas, baseada nos sentimento de raiva e ódio pelo ser delinqüente, desconsiderando a proporcionalidade da pena ao crime cometido.
Diante desse contexto, presenciamos atualmente diversos casos relativos ao excesso na aplicação da pena e o desenvolvimento do populismo penal. Casos como o Eloá Pimentel, onde o acusado foi condenado a noventa e oito anos e dez meses, o caso Isabella Nardoni, trinta e um anos para o réu principal, e a recente ação penal número 470 , o "mensalão", com penas demasiadamente desproporcionais, visando um julgamento político, influenciado pelo populismo midiático,deixando de lado a aplicação de um julgamento pautado nos princípios estatais do direito penal. Os julgamentos respectivos não são mais tomados como uma simples ação penal, mas como um espetáculo de tv, noticiado e assistido pela maioria da população , revoltada com a violência, a insegurança, corrupção e a impunidade, ambiente propício para a criação de pré-julgamentos, não mais baseados no direito, na moral, e no respeito as garantias constitucionais do réu, mas na vontade punitiva popular, baseada na raiva e no desejo de aplicação de punições mais severas, no intuito de compensar o mal gerado na sociedade e na consciência das pessoas. É nesse rumo de degeneração social e punitiva que o nosso direito penal caminha nos dias de hoje, com julgamentos feitos pela mídia, lotados de excessos e arbítrios.
1. Violação dos princípios da proporcionalidade e da individualização da pena.
Diante de alguns fatos mostrados anteriormente, como o caso Eloá Pimentel e o caso Isabella Nardoni podemos constatar a violação a pilares fundamentais que assentam o direito penal, a proporcionalidade e a individualização da pena. Nesses crimes foram aplicadas penas de 98 anos e 10 meses (Eloá) e 31 anos (Alexandre Nardoni). Ai vem a questão, foi correto aplicar penas tão altas a esses dois crimes? Na fixação da pena o juiz aplicou os preceitos do art.59 do CP, levando em consideração a personalidade, os antecedentes e a vida pregressa dos agentes? Foram observados também os princípios da proporcionalidade e da individualização da pena aplicando punições tão gravosas? Foi analisado o caráter ressocializador e preventivo da pena ou foi aplicada uma mera retribuição do mal cometido? São essas questões que iremos discutir na avaliação das possíveis violações ocorridas nessas situações.
De acordo com o artigo 59 do código penal o magistrado tem de seguir algumas orientações na aplicação da pena:
Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;
II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;
IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.
Como visto no artigo acima o juiz tem de analisar o grau de culpabilidade , os antecedentes, à conduta social, e principalmente, estabelecer as penas, sua quantidade, o regime inicial e a substituição por um regime mais brando conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Quando o legislador fala em necessidade e suficiência ele deixa claro que qualquer pena aplicada pelo direito tem de seguir o princípio da proporcionalidade e da proibição de excessos, não podendo o magistrado aplicar penas de caráter perpétuo ou desproporcional ao crime cometido. Quer dizer que, deve haver uma ponderação entre a gravidade do injusto e a pena aplicada, no intuito de evitar que indivíduos que cometeram crimes de menor potencial ofensivo tenham um mesmo tratamento que infratores com um maior grau de culpabilidade, representantes da violência e do aumento de criminalidade na sociedade.
Por essa teoria se um indivíduo comete um crime pela primeira vez (sem antecedentes), tem um boa comportamento na sociedade, não possui uma personalidade voltada ao crime o juiz tem o dever de aplicar uma pena de caráter mínimo ou razoável, pois o mesmo não se caracteriza como um potencial homicida que pode gerar futuros riscos à sociedade e aumentar a criminalidade urbana. Porém, o que observamos nesses casos citados anteriormente é uma total inversão de princípios usados na aplicação da pena. A pena aplicada a Lindeberg Alves (caso Eloá) foi uma das mais altas possíveis pelo direito, 98 anos e 10 meses de reclusão. A partir dai surge a questão: o magistrado levou em consideração o proporcionalidade e a proibição de excesso nessa sentença? Segundo o professor Julio Medeiros há uma desproporcionalidade escancarada e uma grande influência do populismo penal nessa sentença:
Todavia, “nem tanto a terra, nem tanto ao mar”. Com o devido respeito, a juíza exagerou na aplicação da sanctio juris, pois aplicar a pena máxima para todos os crimes, sem o reconhecimento da continuidade delitiva pelo menos entre os crimes de cárcere privado e os disparos de arma de fogo, apresenta-se como algo totalmente desproporcional (vedação ao excesso).
Na verdade, percebe-se que a juíza foi nitidamente comovida pelo populismo penal e insuflada pela voracidade da mídia que igualmente permeou o caso Nardoni. Disse a magistrada que “a sociedade, atualmente, espera que o juiz se liberte do fetichismo da pena mínima” e, logo após, justificou a aplicação da pena no máximo legal, para cada crime, alegando, em síntese, que “os crimes praticados atingiram o grau máximo de censurabilidade que a violação da lei penal pode atingir”.
Nesse caso foi evidente a influência do populismo penal midiático na aplicação da pena ao condenado, que pela pressão da mídia e da população se definiu a opinião da juíza, acabando cedendo à vontade popular e prejudicando o réu severamente, violando o princípio da proporcionalidade, promovendo um julgamento desproporcional ao crime cometido pelo indivíduo.
Ainda podemos citar o princípio da individualização da pena. De acordo com sua definição, deve-se ajustar a pena cominada, considerando os dados objetivos e subjetivos da infração penal e do condenado, no momento da aplicação e da execução. Ou seja, diante dos preceitos a serem seguidos pelo art.59 do CP o julgador deve individualizar a pena de acordo com o grau de culpabilidade, conduta e antecedentes no intuito de se produzir uma pena determinada para o caso específico do infrator. Segundo Mirabete (1990, p.60-61 citado por GRECO, 2013, p.71): "Individualizar a pena, na execução, consiste em dar a cada preso as oportunidades e os elementos necessários para lograr a sua reinserção social." Na execução penal deve-se ainda considerar os critérios de ordem objetiva (o preso tiver cumprido ao menos 1/6 da pena no regime anterior) e os de ordem subjetiva (mérito do condenado - bom comportamento carcerário) para a progressão de regime, ou seja, o direito do preso de cumprir sua pena fora da penitenciária, em colônias agrícolas, estabelecimentos industrias e casa de albergado.
Com a individualização o condenado tem direito a uma pena determinada de acordo com sua situação (culpabilidade, vida pregressa) e o crime que cometeu. Ainda há o direito de progressão de regime, no qual o condenado que trabalha, estuda e tem um bom comportamento na prisão tem sua pena reduzida pelo instituto da remição, e, consequentemente, pode ter seu regime mudado, saindo do fechado para o semi-aberto ou aberto. Entretanto, no caso Eloá vemos um tratamento do condenado de uma forma bem diferente da qual deveria ser segundo o princípio da individualização. O professor Julio Medeiros explica a deturpação ocorrente na possível progressão do regime devido ao excesso de pena aplicada ao crime:
Outra questão interessante: o réu foi condenado a 98 anos e 10 meses de prisão, mas quanto efetivamente ele irá cumprir? Em síntese, a progressão de regime para crimes hediondos (no caso, homicídio qualificado, tentado ou consumado) ocorre com 2/5 da pena cumprida, para crimes comuns (porte ilegal de arma e cárcere privado, no caso) essa progressão ocorre com 1/6 da pena cumprida; o que significa, em conclusão, que Lindemberg teria de cumprir mais de 30 anos no regime fechado, para só depois ter direito à progressão de regime.
Destarte, considerando que o limite temporal máximo em nosso país é de 30 anos conforme o art.75 do Código Penal, pela pena imposta na sentença o réu simplesmente teria de cumprir tudo em regime fechado, o que na prática configuraria pena de prisão perpétua, sobretudo se considerada as condições do cárcere em nosso país.
Podemos concluir que devido ao excesso de pena aplicada ao réu seus direitos de progressão foram basicamente extintos, e que o caráter ressocializador da pena nesse caso não pode ser observado, porém o lado retribuitivo é bem demostrado, no intuito de proporcionar um mal quase igual ao que o indivíduo promoveu à suas vítimas. É mais uma vez o populismo penal influenciando os julgamentos e degenerando os princípios fundamentais do direito penal. Por essa direção que o direito segue não há benefícios, havendo somente prejuízos pelo abuso de direitos, violação de princípios, e o desenvolvimento de mais ódio e repúdio na sociedade.
2. Caso Isabella Nardoni: o estado aplicou uma pena "justa" ou uma vingança?
O crime hediondo que chocou a população brasileira no ano de 2008 foi um dos mais discutido pela mídia e pelos estudiosos do direito. Isabella Nardoni, morta ao ser jogada do sexto andar do prédio onde seu pai e sua madrasta moravam. Acusados de terem cometido o fato, seu pai e sua madrasta, Alexandre e Ana Carolina Nardoni, foram condenados a 31 e 29 anos, respectivamente. Diante dos fatos apresentados surge a questão: qual o motivo da punição? prevenir futuros delitos que o casal pudesse praticar na sociedade? ressocializar indivíduos que cometeram um crime por um possível momento de raiva ou desentendimento? Ou , por fim, Alimentar o desejo de uma esperada "justiça"que a sociedade e a mídia cobravam como cães frenéticos? Qual terá sido a real finalidade dessa sentença? Seria uma legitimação do poder estatal de punir ou apenas uma concretização do voraz desejo de vingança da sociedade pelo tremendo mal cometido ao instituto familiar?
Pelas condições favoráveis do art.59 aos acusados e as perícias pouco nítidas a pena aplicada não deveria ser tão grave, ou até mesmo não deveria ter sido aplicado uma pena, pelo simples princípio, "in dúbio pro reo - na dúvida absolva o réu". O casal possuía bons antecedentes, residência fixa, boa conduta e família constituída. Aplicar uma pena tão intensa diante dessas circunstâncias não promoveria uma possível ressocialização, pois os condenados não possuíam uma personalidade voltada ao crime. Não seria também uma forma de prevenção de futuros delitos semelhantes, pois os pais não saem por ai matando seus filhos sem motivo algum, pelo contrário, eles defendem suas crias até com a própria vida. Tal delito nunca seria tido como referência por outros pais para a prática de atos semelhantes. Não há que se falar também em punição como forma de evitar possíveis reações públicas ou privadas arbitrárias (linchamentos), pois é dever do estado de se prevenir tais atos de vingança.
Se todas as teorias finalísticas (prevenção, ressocialização) das penas não se enquadram ao caso, então, qual foi a finalidade do estado na aplicação dessa punição? Para entendermos o real motivo em se aplicar uma pena de forma tão abstrata e gravosa temos que analisar os fatores sociais que afetam atualmente nosso direito penal, e que influenciam na decisão dos magistrados.
Nosso direito hoje sofre fortes influências de uma mídia manipuladora de ideias, de uma sociedade revoltada e traumatizada com a violência, a insegurança e a criminalidade, que permeiam as ruas, e por último, há uma grande descrença na máquina estatal, se mostrando ineficaz em diversos casos, não solucionando os conflitos sociais e os problemas gerados pela violência urbana. Vivemos influenciados por um movimento chamado populismo penal midiático, que se aproveita do senso comum popular e da revolta social para influenciar a opinião pública, promovendo o questionamento da eficácia das penas aplicadas no combate à crimes. Com altos índices de criminalidade facilmente se convence a maioria a acreditar que nosso direito penal precisa de mudanças rigorosas, e que os criminosos devem pagar altas penas em cárcere privado. Diante de tanta insegurança a população não mais se preocupa em entender o real significado de justiça, modelada pelos direitos e garantias fundamentais, apenas deixa seus instintos primitivos de autodefesa florescerem e serem influenciados pelo populismo penal, gerando pré julgamentos baseados em ódio e repúdio aos que delinqüem.
O pré julgamento é um dos principais males que assolam nossa sociedade e o direito penal, pois são baseados em raiva, ódio e desejo de retribuição do crime cometido pelo outro. Se pensarmos bem, dessa forma não criamos justiça, apenas inchamos mais ainda nosso sentimento interno de vingança, destruidor de laços de fraternidade e convivência em coletividade. É o desenvolvimento desse sentimento na mentalidade popular que está moldando as penas no direito penal moderno, deturpando intensamente o Jus Puniendi estatal, e mostrando que o mesmo se torna incapaz de fazer julgamentos "justos", pois a nova justiça social agora possui outro fundamento, a vingança privada.
É essa degeneração do Jus Puniendi que mostra a nova face da sociedade, com julgamentos que violam princípios, direitos e garantias fundamentais, fatores essenciais para a manutenção do estado democrático de direito. Para mostramos a gravidade da situação que vivemos podemos citar a decisão do juiz do caso Nardoni, que manteve as prisões provisórias, negando Habeas Corpus aos réus:
Portanto, diante da hediondez do crime atribuído aos acusados, pelo fato de envolver membros de uma mesma família de boa condição social, tal situação teria gerado revolta à população não apenas desta Capital, mas de todo o país, que envolveu diversas manifestações coletivas, como fartamente divulgado pela mídia, além de ter exigido também um enorme esquema de segurança e contenção por parte da Polícia Militar do Estado de São Paulo na frente das dependências deste Fórum Regional de Santana durante estes cinco dias de realização do presente julgamento, tamanho o número de populares e profissionais de imprensa que para cá acorreram, daí porque a manutenção de suas custódias cautelares se mostra necessária para a preservação da credibilidade e da respeitabilidade do Poder Judiciário, as quais ficariam extremamente abaladas caso, agora, quando já existe decisão formal condenando os acusados pela prática deste crime, conceder-lhes o benefício de liberdade provisória, uma vez que permaneceram encarcerados durante toda a fase de instrução.
Aqui mostra-se nitidamente a degeneração do Jus Puniendi e a descrença da população com o poder judiciário, que justifica suas decisões de acordo com a pressão da mídia e de uma população alienada e revoltada com as barbáries sociais. A população, os jornalistas e até mesmo o estado clamavam por uma verdadeira "justiça", por que não dizer, por uma efetiva vingança, capaz de retribuir todo o mal cometido através de uma pena desproporcional. É diante disso que pode-se afirmar com convicção que o estado não aplicou uma pena justa ao caso Nardoni, mas uma vingança "justa".