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A ética na sociedade de consumo

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Agenda 29/04/2014 às 15:22

Ética Utilitarista x Ética Kantiana

Uma vez traçado o escopo evolutivo da sociedade de consumo (ou hiperconsumo) e compreendido o fenômeno do consumismo, pretende-se, neste momento tecer alguns comentários sobre o estudo da ética, adotando-se aqui como seus pivôs os ensinamentos de Bentham e Kant.

Novamente, não se pretende aqui exaurir o estudo sobre a ética, mas apenas buscar compreendê-la a fim de assimilá-la (se possível for) na sociedade de consumo anteriormente abordada, o que se fará na parte derradeira deste estudo.


A ética utilitarista

Iniciando-se a ética utilitarista, tem-se que se está diante de um método minimamente curioso de se compreender este móvel do comportamento humano capaz de distinguir o bem do mal, o certo do errado e, com base neste juízo valorativo, coordenar suas ações, que é a ética.

Isso porque, a ética, de acordo com o utilitarismo idealizado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham parte de um raciocínio bastante simplista. Ética, ou melhor, a conduta ética se veria analisada através do equacionamento da felicidade humana. Tal cálculo, em verdade, nada mais é do que a fórmula da felicidade, pela qual se pretende majorar o hedonismo e afastar a dor e o sofrimento[34].

Assim, a conduta se veria qualificada como socialmente útil, e, portanto, ética se o resultado da equação fosse positivo e, se negativo, a conduta seria antiética, ou inútil. Trata-se de uma fórmula que visa quantificar o prazer e a dor humanos.

Eis então a fórmula para o equacionamento da felicidade humana idealizada por Bentham:

A valoração de uma dor ou de um prazer se veria qualificado de acordo com sete circunstâncias: (i) sua intensidade; (ii) sua  duração; (iii) sua certeza ou incerteza; (iv) sua proximidade no tempo ou longinquidade; (v) sua fecundidade; (vi) sua pureza; (vii) sua extensão, esta última compreendida pela quantidade de pessoas afetadas pelo ato de prazer ou dor em análise.[35]

Assim, para aplicação do cálculo valorativo, seriam avaliadas as pessoas que mais diretamente se viram afetadas pelo ato e, consequentemente, pelas dores e prazeres a ele inerentes através da apreciação dos seguintes elementos:

“(2) o valor de cada prazer distinto que se manifesta como produzida pelo ato na primeira instância;

“(3) o valor de cada prazer que se manifesta como produzido pelo ato após a primeira dor. Isto constitui a fecundidade do primeiro prazer e a impureza da primeira dor;

“(4) o valor de cada dor que se manifesta como produzido pelo ato após o primeiro prazer. Isto constitui a fecundidade da primeira dor e a impureza do primeiro prazer;

“(5) Soma todos os valores de todos os prazeres de um lado, e todos os valores de todas as dores do outro. Balanço, se for favorável ao prazer, indicará a tendência boa do ato em seu conjunto, com respeito aos interesses desta pessoa individual; se o balanço for favorável á dor, indicará a tendência má do ato em seu conjunto;

“(6) Faze uma avaliação do número das pessoas cujos interesses aparecem em jogo e repete o processo acima descrito em relação a cada uma delas. Soma depois os números que exprimem os graus da tendência boa inerente ao ato, com respeito a cada um dos indivíduos em relação ao qual a tendência do ato é boa em seu conjunto. Ao depois, faze o mesmo com respeito a cada indivíduo em relação a qual a tendência do ato é má em seu conjunto”[36].

Assim, contabilizando a dor e o prazer extraído de dado ato se chegaria ao balanço final de sua tendência, ou seja, se ele foi aprovado ou reprovado socialmente. Se o resultado do balanço geral pender negativamente, ou seja, à dor, a tendência do ato seria socialmente taxada como má. Se rumar para o prazer, a tendência será qualificada como boa.

Contudo, visto que a ética utilitarista visa uma quantificação de dor e prazer, para, aí sim, auferir o que seria moralmente certo ou errado, é fortemente criticada, por sempre fazer prevalecer os interesses da maioria, que teriam, assim a detenção do bem comum, distanciando, dessa feita, a ética utilitarista dos valores normativos da justiça[37].

Outra crítica que merece ser feita é a própria assimetria presente entre dor e prazer, principalmente se emergidos no mundo globalizado atual. Lembra-se, todavia, que Bentham viveu durante o século XVIII, momento em que não havia o avanço tecnológico e a gama de situações as quais nos vemos hoje submetidos. Os conflitos eram muito mais restritos e localizados, tornando-os mais fáceis (ou menos difíceis) de se calcular. O agir no mundo globalizado pode trazer consequências boas para uns, porém nefastas para outros[38].

O utilitarismo, portanto, necessita ser melhor aprofundado e trabalhado, visto que sua adoção de modo puro e irreflexivo acabaria por tornar éticas (e corretas) ditaduras, a prática de tortura, abandono social de deficientes físicos e até mesmo o próprio holocausto.

Encerrados os apontamentos sobre a ética utilitarista, passemos, neste momento, a algumas breves notas sobre a ética kantiana.


A ética kantiana

Kant, diferentemente de Bentham e seu utilitarismo, buscou fazer um estudo sobre a causalidade, ou seja, do porque das coisas acontecerem e como se veria garantida a sequencia dos eventos. Para ele, o conhecimento não se veria extraído exclusivamente da razão, tampouco da experiência, sendo que, este seu peculiar modo de pensar tornam-no o grande revolucionário do pensamento científico.

Através de sua obra Fundamentação, Kant faz críticas severas ao utilitarismo de Jeremy Bentham sob o argumento de que a moral não estaria configurada no aumento da felicidade humana. Ao contrário, ela estaria presente no respeito às pessoas como fins em si mesmas[39].

Para Kant, o utilitarismo não traz contribuição alguma à moral humana, visto que o homem feliz não se confunde com o homem bom, da mesma forma que também não o tornaria virtuoso. Moral não pode ser composta por vontades e desejos humanos. A moral adviria, então, do que Kant denomina de “pura razão prática”[40].

Dessa maneira, em que pese Kant admitir que o homem também sente dor e pode agir em busca do prazer (concordância parcial com a doutrina de Bentham), não são estes sentimentos os soberanos do homem. Homem, como ser racional que é tem como soberana a razão, sendo ela que comanda nossa vontade e não uma busca incansável pelo prazer em fuga da dor.

A capacidade de pensar torna o homem diferente das demais criaturas animais. Torna o homem livre. Este raciocínio pode, inclusive, ser emparelhado ao “Penso, logo existo” de René Descartes.

Agir racionalmente, muito se aproxima da ideia de liberdade, pois, para pensar deve se estar alheio a quaisquer influências externas. Agir em prol de um desejo, não é ser livre, é simplesmente obedecer a um comando anteriormente já existente, ou que fora suplantado no indivíduo por alguma influência externa.

Para Kant, agir com liberdade é agir com autonomia, ou seja, agir de acordo com a lei que o indivíduo impõe a si próprio e não em razão de anseios sociais ou naturais[41].

Dessa forma, agir livremente não é simplesmente escolher qual seria a melhor forma para se atingir determinado fim (emparelhando ao utilitarismo, a felicidade), mas sim escolher o próprio fim em si.

O agir autônomo de Kant também se distancia do agir de maneira heteronômica, ou seja, o agir de dada maneira, em razão de um motivo anterior, que motivou outro ato anterior e assim sucessivamente. Agir automonomamente é o agir por agir, simplesmente. É uma finalidade em si.

Dessa maneira, absolutamente se veria possível a utilização de pessoas em prol do bem comum, como se veria defensável através do utilitarismo. Pessoas não podem ser vistas como um objeto à satisfação da felicidade alheia. Pessoas devem ser encaradas como um fim em si mesmas.

Dessa feita, o agir de maneira autônoma, livre e racional leva a ideia da moralidade kantiana, formando, assim, um ideário notadamente rígido.

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O agir moral não é uma finalidade, como a busca da felicidade pretendida pelo utilitarismo, mas um agir de modo adequado, por simplesmente ser este o modo correto.

Por exemplo, se vemos um mendigo passando frio em uma gélida noite de inverno e oferecemos a ele uma coberta para aquecê-lo. Se o ato de oferecer estiver embasado em um motivo bondoso como “dou a coberta, pois não gosto de ver alguém passando frio”, a conduta estaria desprovida de valor ético, ao passo que, se o motivo for, simplesmente, por não se julgar certo que alguém passe frio (sem qualquer caráter emocional que o embasasse), a conduta, para Kant, seria moral.

Assim, pode-se concluir que, na visão da ética kantiana, para se verificar se o ato em si possui ou não carga moral, não deve ser analisado unicamente sua finalidade, mas sim o que o motivou.

Retomando-se ao exemplo anterior, no primeiro caso (entrega da coberta com finalidade altruísta), o sujeito o faz, não porque seria o certo, mas porque o não fazer trar-lhe-ia algum incômodo. No segundo caso, todavia, há a entrega do manto apenas e tão somente por ser a coisa certa a se fazer.

Em resumo, para ser moral, o ato deve respeitar um dever, e não algum “motivo de inclinação”[42].

Em que pese Kant não tornar claro quais seriam os deveres a serem respeitados, deveriam eles serem compreendidos no princípio supremo da moralidade, o qual se veria apurado através da análise de três contrastes: (i) dever x inclinação; (ii) autonomia x heteronomia; (iii) imperativos categóricos x imperativos hipotéticos.[43]

Os dois primeiros contrastes já foram abordados anteriormente, sendo que passaremos agora ao estudo do último deles.

Os imperativos hipotéticos são condicionantes (faça isso para se atingir aquilo), o imperativo categórico é incondicional. Ou seja, o imperativo categórico é um fim em si e sintonizado com a razão kantiana (pura, autônoma, embasada no dever). Para Kant, apenas o imperativo categórico pode possuir carga moral.

Há duas versões do que seria o imperativo categórico kantiano, a primeira delas é a fórmula da lei universal, ou seja, o agir de acordo com um princípio que, na opinião do indivíduo, seria um dever a ser seguido. A segunda o tratamento das pessoas como fins e si mesmas. Refere-se, portanto, à humanidade como um todo, a fim de que se veja ela tratada não como um meio, mas sempre, e ao mesmo tempo, como um fim[44].

A grande crítica feita à ética kantiana se redunda no fato de que o agir de acordo com o dever pelo dever, bem como que o agir se converta em uma máxima universal constituir-se-ia, segundo Hegel, em um princípio puramente formal. Mais do que isto, a autodeterminação da vontade se veria convertida em um “vazio formalismo”[45].

Ou seja, Kant apenas diz o formato do seu entendimento sobre a moral, não traz, todavia, qualquer tipo de receita para que o conteúdo da forma veja-se preenchido. Em suma, diz que a moral estaria configurada em uma espécie de lei universal que deveria ver-se respeitada como um dever de modo a tratar o homem como fim em si, mas não traz qualquer noção do que poderia estar contido neste dever, daí o seu formalismo.

Hegel assinala a separação feita por Kant entre forma e matéria e denomina-a de “vazio formalismo”, visto que, à sua leitura, não ser possível fixar o princípio supremo da moralidade, considerando-se, apenas e tão somente a sua forma[46].

Outra crítica, melhor dizendo, dúvida, que se gostaria de postar a respeito de Kant, agora sob uma perspectiva pessoal, estaria circunscrita ao radicalismo e intransigência de seu modo de pensar sobre a forma da ética.

Diz-se, pois, o agir pelo agir, muito dificilmente se dará sem a influência de um agente externo, ou de um móvel que venha a causar um certo bem estar no indivíduo, ainda que este bem estar provenha da própria lei universal instituída para si. Afinal, se o cidadão institui-se uma lei universal, ou seja, um dever máximo que deve ser respeitado pelo que simplesmente é, dificilmente elegerá algo que não lhe traz algum tipo de sentimento prazeroso.

Portanto, é minimamente evidente que este mesmo dever não surgiria por obra do mero acaso. Ou seja, a própria eleição do conteúdo material da lei universal teria em si um móvel capaz de propiciar um bem estar ao sujeito, pelo simples fato de que nenhum homem, exatamente por ser racional, elegeria como lei máxima a ser categoricamente cumprida algo que lhe causasse algum incômodo ou repulsa.

Não se buscou, todavia, aprofundar-se minuciosamente nas entranhas do revolucionário pensamento kantiano, contudo, se seu radicalismo se mostrar tal qual o por ora compreendido, a mera colocação prática da lei universal poderia por em xeque toda a sua formulação teórico-formal.

Não obstante, tendo em vista que o enfoque deste estudo não se mostra traçar uma crítica à ética kantiana, tampouco possui seu Autor condições de auferir qualquer tipo de ataque ao seu modo de pensar, deseja-se, apenas e tão somente, compartilhar com o leitor algumas dúvidas para esclarecimentos em debates futuros.


A Ética na Sociedade de Consumo

“Estaria a moralidade com os dias contados? Estaríamos testemunhando a “morte da ética” e a transcrição para a nova era do pós-dever? Será que a ética, no tempo do pós-moderno, está sendo substituída pela estética?”[47]

A transcrição acima fora extraído da contracapa da obra Ética Pós-Moderna de autoria de Zygmund Bauman e retrata um alarmante problema presente em nossa sociedade atual, de consumo.

Diz-se isto, pois, após traçados os estudos sobre a evolução social, e a dominância cada vez mais incontrolável do consumo em nossas vidas, poder-se-ia falar em ética? Mais do que isto, poder-se-ia falar em ética nos modelos estudados no item anterior? Poder-se-ia falar em ética kantiana em uma sociedade de consumo? Ou seríamos sumariamente utilitaristas? O ato de consumir pode ser considerado como ético?

Inicializando-se pela resposta que, aparentemente, denota menor dificuldade, o ato de consumir, tomando-se por base o hedonismo exposto por Lipovetsky no item n. 2 deste estudo, dificilmente se virá resguardado pela ética kantiana.

Isso porque, atualmente, vivemos em uma sociedade cujo ato de consumo se mostra inerente as nossas atividades habituais, da mesma maneira que não possui um fim, sendo apenas meio. É o consumo pelo consumo, sem qualquer motivo aparente senão a experiência hedonista propiciada pelo produto em si.

Como vimos, de acordo com os ensinamentos de Kant, se falará em moral apenas quando o ato praticado for exercido com plena autonomia, sendo um dever pelo dever (lei universal), desprovido de motivo de inclinação e que possa ser exercido com perfeita autonomia, sem qualquer tipo de influência, ainda que inerente ao próprio agente do ato, tratando-se sempre o homem como fim em si mesmo.

Ora, o ato de consumir, em qualquer hipótese, se verá embasado em uma lei universal. Muito ao contrário, se consome com um objetivo muito claro, o de vivenciar a experiência proposta pelo produto ou serviço que se adquire.

Assim, tem-se que o móvel não se encontra em um dever, mas sim em um prazer, sendo a materialização pura do hedonismo.

Além disso, a autonomia do ato é completamente cerceada pelo desejo do consumo. Este desejo em si não sugira de maneira, vamos assim dizer, in natura no indivíduo, tendo sido imposto, incutido em seu subconsciente através de inserções publicitárias e midiáticas equiparando a pessoa (mentalizada na figura do garoto propaganda) como um meio para o atingimento do prazer maior pretendido pelo bem de consumo.

Da mesma forma, como se não bastasse a ausência de qualquer liberdade ao desejo do consumo, não se há qualquer liberdade naquilo que se consome, visto que as tendências, a moda, o marketing, o merchandising, tudo acaba por influenciar o indivíduo tornando-o não consumidor, mas consumido pela sociedade.

Conclui-se, portanto, que, a luz da ética kantiana, a sociedade de consumo, no que tange ao caminho da moral, encontra-se completamente desguarnecida.

Nessa mesma baila, o próprio ato de fornecimento do produto ou serviço possui a mesma mácula, visto que a inserção do produto ou serviço no mercado se dá em função única e exclusiva do lucro (motivo de inclinação), o que afasta a incidência de qualquer carga moral, ainda que se esteja diante de um produto revolucionário em termo de saúde, ou prolongamento da vida humana, por exemplo.

A resposta negativa, todavia, não aparenta ser a mesma a luz da ética utilitarista.

Como visto anteriormente pelo utilitarismo, em poucas palavras, estar-se-á diante de um ato ético se o ato em si causar mais prazer do que dor no indivíduo que o pratica, ou ainda mais prazer do que menos dor no universo de pessoas sujeitas ao ato.

Dessa forma, ao se buscar o consumo, se busca um produto visando à submissão da experiência hedonista por ele proposta. Atingida a experiência hedonista, atinge-se também o prazer que se mostraria sobressalente a dor, logo, o consumo se veria ético.

Todavia, sabendo-se que o ato de consumo seja exercido sem qualquer liberdade, em meio à completa alienação propiciada pelos mecanismos publicitários e midiáticos, e de maneira completamente manipulada pelo mercado como um todo poderia ainda sim ser ele classificado como ético? A resposta não se torna mais tão simples, pois, creio eu, que alguns leitores, tal qual o autor, sentiram-se um tanto quanto incomodados, ou ainda inseguros, em responder, categoricamente (empregando-se aqui o sentido kantiano do termo) a questão.

Ou seja, de uma maneira simplista ou superficial, a ética utilitarista poderia ser uma resposta à ética no consumo, porém de um modo mais aprofundado, principalmente sob a ótica do mercado, a resposta pode não ser a mesma.

Da mesma maneira, a própria ideia da ética utilitarista causa certa repulsa em muitos, afinal, ela, por agir de acordo com a vontade da maioria, pode legitimar as mais terríveis atrocidades. Em suma, a crítica de Michael J. Sandel, em sua obra Justiça pode não se mostrar tão radical quanto aparenta[48].

Portanto, em não estando o ato do consumo acobertado pela ética kantiana, e não sendo a ética utilitarista uma solução, por motivos, inclusive, humanitários, indaga-se, novamente: Existe ética na sociedade pós-moderna de consumo? O ato de consumo é, ou pode(rá) ser, ético? Estar-se-ia ingressando em uma crise ética da pós-modernidade?

O questionamento se faz em decorrência da incerteza dos valores morais presentes na sociedade pós-moderna, valores que, à primeira vista, podem não ser atingidos proximamente por um ato praticado, mas produzir efeitos de consequências mais longas, invisíveis em uma primeira análise. São os tais efeitos colaterais capazes de produzir efeitos negativos indesejáveis e imprevisíveis, mas que podem afastar todos os bons propósitos presentes na conduta primária.

O ato de consumo, em que pese ser essencialmente simples (por exemplo, a compra e venda de um produto qualquer), carrega em si uma natureza sensivelmente complexa, visto abranger toda uma linha produtiva fabril, além de uma campanha publicitária até chegarem ao consumidor. O que se esquece, é que consumo pode, além de satisfazer ao indivíduo, fomentar o inconsequente extrativismo de recursos naturais, o trabalho infantil, o desmatamento das florestas, a degradação do meio ambiente etc.

O que se pretende dizer é que, ao se adquirir um sapato, o consumidor apenas mantém seu pensamento no produto em si e no prazer hedonista que o bem irá lhe trazer, esquecendo-se, ou, intimamente, sequer se importando, que uma criança africana trabalhou (supondo, claro, que o fornecedor fosse adepto desta infâmia) em regime similar ao de escravo para que o bem chegasse à prateleira da loja.

Deve-se, portanto, reconstruir o pensamento ético. Reconstruí-lo para que também nos faça refletir sobre condutas que, a primeira leitura, possam ser simplistas, mas que podem trazer uma carga de complexidade cujos atos antecedentes se mostrem manifestamente torpes, o que tornaria a conduta final, ainda que boa em si, equivocada, e devendo, por final, ser evitada. Ou seja, é o não comprar um sapato sem ter a certeza de que sua cadeia produtiva não violou os direitos humanos, ou o meio ambiente, por exemplo.

A ética, sob a ótica pós-moderna, deve-se pautar na própria natureza da moral humana, que, de um panorama da esfera do razoável, mostra circunscrita ao não fazer o mal ao próximo. Tal mostra-se, inclusive, ligado diretamente ao preceito de amar o próximo como a ti mesmo, sendo este “o ato fundador da humanidade”[49].

Todavia, tendo em vista o desprendimento espiritual decorrente da pós-modernidade, o potencial moral deve ser revelado ao ser humano através da ação dos mestres e dos legisladores, a fim de que o sujeito veja-se recompensado e favorecido por agir de acordo com a conduta moral[50].

Segundo Bauman,

“ainda que a justificação para ser moral seja irritantemente individualista e autônoma – refere-se ela ao amor-próprio – só se pode assegurar a  realização do comportamento moral pela forma heterônoma da Lei.”[51]

Entendemos, todavia, que não se pode ser tão restritivo, visto que pode haver outros mecanismos hábeis a corroborar com o comportamento moral do indivíduo e que podem trazer resultados muito mais positivos do que a Lei, como por exemplo, a educação e a conscientização.

Havendo a educação adequada, o indivíduo irá se vincular aos seus padrões éticos naturais, independentemente da vigência de uma norma que determine que ele deva agir de tal maneira, ou vedando tal comportamento. Ou seja, mais do que proibir o comércio de produtos que violem os direitos humanos durante seu processo fabril, deve-se conscientizar o consumidor de que sua aquisição é imoral e, portanto, não deve ser feita.

Contar apenas com a Lei significa depender incessantemente que se fiscalize seu cumprimento, o que tornaria a iniciativa legislativa inócua, afinal, como fiscalizar a inocorrência de trabalho infantil nos confins do globo? Ou mais, como garantir que todos os povos do planeta legislem da mesma maneira?

Não se busca aqui ser idealista, utópico, tampouco preterir a iniciativa educacional em detrimento da legislativa, ao contrário, fala-se aqui em uma coexistência entre elas. Legisle-se às ofensas morais e eduque-se o povo, mas não a respeitar a Lei, mas a moral. Em suma, ter a Lei como garantidor da moral, e a educação como propagador.

Além disso, deve-se haver uma maior conscientização dos operadores da comunicação comercial e do próprio marketing, visto ser deles grande parte da responsabilidade pela alienação do consumidor e seu desejo, praticamente vicioso, em dado produto ou serviço.

Diz-se isto, pois, até mesmo estudiosos sobre o tema da ética no marketing criticam a versão oficial do sistema capitalista, ou seja, de que o marketing visa apenas atender a necessidade das pessoas, quando que, em verdade, é a própria publicidade a responsável por sua criação, bem como do anseio por produtos supérfluos e dispensáveis, por meio de “artimanhas capazes de persuadir consumidores e aproveitar suas fraquezas, as empresas diminuiriam a capacidade racional de julgamento dos consumidores e encontrariam, assim, as condições propícias para a venda.”[52]

Da mesma forma, não pode, ao menos do ponto de vista ético, fazer o profissional do marketing, uso do princípio do caveat emptor, ou seja, de que cabe ao consumidor buscar informações e cuidados sobre o produto que deseja adquirir, recaindo sobre o profissional apenas o agir nos moldes legalmente estabelecidos, afinal, as decisões de natureza ética nas funções básicas do operador do marketing são diversas, desde “a concepção do produto - matérias primas necessárias, características, nível de desempenho etc., até sua efetiva comercialização, praticamente todas as atividades de um sistema de marketing podem ser interpretadas de acordo com uma visão positiva ou negativa quanto à sua correção ética”, bem como que “a percepção do profissional pode não coincidir com a dos consumidores, mesmo que esteja respaldada na lei, por exemplo; ou a pressão exercida pelas empresas ou por executivos de níveis superiores pode conduzir à adoção de práticas que, visivelmente, contrariam alguns dos padrões éticos vigentes na sociedade naquele momento.”[53]

Convém também apontar que, de modo bastante preocupante, a academia dedicada ao marketing, quando voltada ao estudo da ética, tende a tecer algumas recomendações aos seus profissionais, todas elas, contudo, dirigidas aos caracteres econômico e legal da relação, ou seja, “não enganar o consumidor”, “não agir de modo ilícito”, “não fazer uso de preços predatórios” etc. Nenhuma delas traz qualquer preocupação com o ato do consumo em si ou do consumismo. Muito ao contrário, visto que a vertente ética predominante no marketing é a utilitarista, modelo este, já reiteradas vezes criticado durante o curso deste estudo.[54]

Como proposta de sujeição à falta de comprometimento ético das empresas e dos operadores de marketing por elas contratadas, novamente se faz necessária à intervenção legislativa corroborada com a educação do consumidor a fim de que se institua a prática do consumo ético, ou seja, “a um ato de compra (ou não compra) no qual estão implícitas as preocupações do processo de consumir com os impactos que isso possa causar ao ambiente econômico, social ou cultural”[55].

Por meio desta prática, o consumidor não só se preocuparia com o ato da compra em si, mas também com os efeitos sociais que sua compra propicia, como, por exemplo, o respeito aos trabalhadores e ao meio ambiente causado pelo produto ou serviço adquirido. Uma vez expandida está prática\cultura da seara individual para a coletiva se estará diante de uma verdadeira política em prol da ética no consumo.

Felizmente, essa nova cultura pelo consumo ético, ainda emergente, tem começado a preocupar algumas empresas insertas no mercado atual ligado diretamente ao consumo de massa. Ou seja, a mudança de comportamento pode fazer com que surja uma nova cultura de consumo, que hoje pode ser vislumbrada através do consumo verde ou até mesmo de boicotes contra empresas que não se mostrem socialmente responsáveis[56].

É bem verdade que se está no início de um processo, sendo que seu sucesso é notadamente incerto. Da mesma forma, se mudança do comportamento das empresas integrantes do mercado houver, tal se dará em razão de uma necessidade pelo lucro e não por convicções morais, distanciando-se, portanto, do modelo kantiano.

Todavia, em que pese estar-se distante de um modelo puro idealístico da ética, esta mudança de comportamento já pode, ao menos, ser considerada como um começo, discreto, mas um bom começo.

Sobre o autor
Fernando Rossi

Mestrando em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-graduado em Direito Processual Civil pela mesma instituição. Advogado especializado em Direito do Consumidor e Direito na Internet.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSSI, Fernando. A ética na sociedade de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3954, 29 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27829. Acesso em: 4 nov. 2024.

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