10. Código Penal é código de direitos ou de crimes?
Em toda essa controvérsia sobre o chamado aborto "legal", é impressionante que seus defensores usem como argumento um Código cuja função não é elencar direitos subjetivos dos cidadãos, mas violações a esses direitos, tipificadas como crimes.
Suponhamos — apenas para argumentar — que houvesse no Brasil o "direito" de alguém matar o próprio filho. Se existisse, o lugar próprio para se encontrar tal direito seria o Código Civil, e não o Código Penal. Seria algo como a Tábua Quarta da Lei das Doze Tábuas, que no Direito Romano tratava "do pátrio poder e do casamento":
1. É permitido ao pai matar o filho que nasceu disforme, mediante o julgamento de cinco vizinhos.
2. O pai terá sobre os filhos nascidos de casamento legítimo o direito de vida e de morte e o poder de vendê-los. [26]
O Código Penal, que é essencialmente um código de crimes e de penas a ele associadas, seria o último lugar onde alguém poderia procurar um direito civil.
Peço licença ao ilustre JOSÉ GERALDO BARRETO FONSECA, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para citar o genial argumento que dele ouvi. Diz o jurista que o simples fato de o Código Penal mencionar o aborto como meio para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez resulta de estupro, já indica que tal aborto é crime. Jocosamente ele explica que o Código não diz, por exemplo: "não se pune a mãe que amamenta o filho". Pois, como amamentar o filho não é crime, não há razão para se dizer que "não se pune". Qualquer conduta descrita no Código Penal é, portanto, crime, a menos que se diga explicitamente o contrário.
11. Existe o "penalmente lícito"?
O conteúdo do Direito Penal abarca o estudo do crime, da pena e do delinqüente, que são os seus elementos fundamentais, precedidos de uma parte introdutória. [27]
Pela lição acima, de DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS, cabe ao Direito Penal, cuidar, não do que é lícito, mas do que é ilícito. Mais precisamente: de uma parte dos atos ilícitos tipificados como crimes, aos quais normalmente estão associadas penas. Assim, os crimes são conhecidos como "ilícitos penais" (uma vez que há outros ilícitos, não elencados no Código Penal, mas que violam o Direito Civil, Constitucional etc.).
Isso posto, falar em um "lícito penal" é, no mínimo, estranho. O "penalmente lícito" assemelha-se ao erradamente certo ou ao proibidamente permitido. Pois é exatamente isto que encontramos na Exposição de Motivos do Código Penal, publicada no Diário Oficial da União de 31 de dezembro de 1940, de autoria do então Ministro da Justiça Francisco Campos. Diz a passagem que comenta o art. 128 CP:
Mantém o projeto a incriminação do aborto, mas declara penalmente lícito (sic!), quando praticado por médico habilitado, o aborto necessário, ou em caso de prenhez resultante de estupro. Militam em favor da exceção razões de ordem social e individual, a que o legislador penal não pode deixar de atender (n. 41). [28]
Será autêntica esse estranha interpretação sobre a "licitude" do aborto? A Exposição de Motivos não tem garantia de interpretar autenticamente o Código Penal, como observa DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS:
A Exposição de Motivos constitui interpretação autêntica?
A Exposição de Motivos não é interpretação autêntica, uma vez que:
1) não é uma lei;
2) não tem força obrigatória;
3) é possível notar-se antinomia entre ela e o texto legal (cf. Basileu Garcia. Instituições de direito penal. 1980. v. 1, t. 1, p. 170).
Vale como forma de interpretação doutrinária. [29]
12. Tentativas de mudar "não se pune" para "não constitui crime"
Em fins de 1995 estava em tramitação na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional n.º 25-A/95 (PEC 25-A/95) de autoria do deputado Severino Cavalcanti, que pretendia alterar a redação do "caput" do art. 5º, acrescentando a expressão "desde a concepção" após as palavras "inviolabilidade do direito à vida". O objetivo não era criar um novo direito, nem ampliar um já existente, mas tão somente explicitar o alcance da proteção constitucional à vida, que começa com a concepção.
Nessa época o Correio Braziliense publicou em seu caderno "Direito e Justiça" um artigo de MARCO ANTÔNIO DA SILVA LEMOS, Juiz de Direito no Distrito Federal, intitulado O alcance da PEC 25A/95. Argumentava o magistrado que a pretendida emenda era totalmente dispensável para se assegurar a proteção do nascituro. No final, escreveu um parágrafo esclarecendo a não existência do aborto legal no Brasil:
Demais disso, convém lembrar, logo de imediato, que o art. 128, CP, e seus incisos, não compõem hipóteses de descriminalização do aborto. Naquele artigo, não está afirmado que "não constitui crime" o aborto praticado por médico nas situações dos incisos I e II. O que lá está dito é que "não se pune" o aborto nas circunstâncias daqueles incisos. Portanto, em nossa legislação penal, o aborto é e continua crime, mesmo se praticado por médico para salvar a vida da gestante e em caso de estupro, a pedido da gestante ou de seu responsável legal. Apenas - o que a legislação infraconstitucional pode e deve fazer, porque a Constituição, como irradiação de grandes normas gerais, não é código e nem pode explicitar tudo - não será punido penalmente, por razões de política criminal. [30]
Impressionado por ver alguém defendendo uma tese em geral não aceita pelos penalistas, procurei o autor do artigo e pedi-lhe detalhes sobre sua argumentação. Ele então escreveu-me uma carta, da qual transcrevo o seguinte trecho:
"Não existem palavras inúteis na lei. Se a expressão "não se pune" constante do art. 128, CP, equivalesse à expressão "não há crime", seria desnecessário alterá-la. Tanto ela não corresponde que, no Anteprojeto Nelson Hungria para a reforma do CP, previa-se essa alteração (a expressão "não se pune" seria substituída pela "não há crime"), e o próprio e famoso Código Penal de 1969, promulgado e revogado sem que chegasse a entrar em vigor, também não teria feito essa mudança – como de fato fez" [31].
No entanto, essa não foi a única vez em que se tentou mudar a redação do art. 128 CP. A segunda tentativa ocorreu em 1971. No dia 27 de outubro o senador Vasconcelos Torres apresentava o Projeto de Lei do Senado 96/71. O cabeçalho dizia: "Dá nova redação ao art. 128 do Código Penal, incluindo entre os casos de aborto não criminosos (sic) os praticados por médico quando a gravidez resultar de incesto, constituir grave ameaça à saúde da gestante ou envolver risco do filho nascer, física e mentalmente lesado". Embora o autor, na sua justificação, defendesse a necessidade de serem "ampliados" os casos de "aborto legal", na verdade o que o projeto pretendia era criar a figura do aborto legal. Sim, pois o artigo 128 começaria com as palavras: "Não constitui crime" [32]. Felizmente o projeto foi rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça (relator José Sarney) [33] e pela Comissão de Saúde (relator Adalberto Sena) [34].
A terceira tentativa ocorreu em 1984, quando o Ministério da Justiça publicou um Anteprojeto de Código Penal [35]. O artigo 128 passaria a vigorar com a redação "não constitui crime" e o direito de matar o nascituro incluiria também o aborto eugênico (em homenagem póstuma ao nazismo), chamado com o eufemismo de "aborto piedoso" [36]. Graças a Deus, mais uma vez o desejo dos abortistas não se realizou. A Parte Geral do Código foi reformada pela lei 7209 de 11/7/1984, mas a Parte Especial permaneceu como estava.
A quarta tentativa aconteceu em 25 de março de 1998, quando o Ministério da Justiça publicou o Anteprojeto do Código Penal [37], com o objetivo específico de reformar a Parte Especial. Desta vez a proposta foi pior do que a de 1984. Além de alterar o início do artigo para "não constitui crime" e além de propor a legalidade do aborto eugênico, o Anteprojeto pretendia declarar lícito o aborto como meio de "preservar a saúde da gestante" [38](sic) e não apenas como meio de salvar a sua vida. Cólicas, enjôos e vômitos poderiam ser alegados como causas "justas" para o extermínio da criança. Não há exagero nessa suposição. Por exemplo, no entendimento jurídico norte-americano, "saúde" significa o "bem-estar" geral, físico ou psíquico da mulher. Nos Estados Unidos se a mulher se sente mal, por exemplo, por estar grávida e não ser casada, pode requerer aborto por motivo de "saúde". A Comissão Revisora do Anteprojeto, sob a presidência do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, deveria receber sugestões da sociedade até 31 de agosto de 1998, com vistas a elaborar a redação do texto final a ser encaminhado ao Presidente da República. No dia 31 de agosto de 1998 o novo Ministro da Justiça Renan Calheiros resolveu prorrogar o prazo por 60 dias [39].
A quinta tentativa aconteceu em 8 de abril de 1999, quando finalmente a Comissão Revisora entregou ao Ministro Renan Calheiros uma nova versão do Anteprojeto, depois de recebidas (e ignoradas) as críticas e sugestões da sociedade contra o aborto. Curiosamente, embora publicado na Internet (em www.mj.gov.br), o texto, que eu saiba, não foi publicado por nenhuma portaria no Diário Oficial da União. O artigo 128 teve seu número mudado para 127. Como de costume, novamente apareceu a expressão "não constitui crime" no "caput". Foi conservada substancialmente a mesma redação da versão anterior. Uma pequenina mudança foi, no inciso I, a exigência de o aborto ser o único meio de "preservar de grave e irreversível dano a saúde da gestante" [40].
Que eu saiba, o Ministério da Justiça desistiu, por ora, de prosseguir com a reforma da Parte Especial do Código Penal. Em vez disso, instalou uma Comissão presidida pelo Prof. Miguel Reale Júnior para reformar, mais uma vez, a Parte Geral. No dia 18 de agosto de 2000 foi encaminhado ao Congresso Nacional um Projeto de Lei para a reforma da Parte Geral.
De todo esse esboço histórico, conclui-se que há, ao longo dos anos, um desejo persistente de se mudar, no art. 128 CP, a expressão "não se pune" por "não constitui crime". O que vem a confirmar a tese de que não há, atualmente, no direito positivo brasileiro, qualquer hipótese em que o aborto não seja crime.
13. O nascituro é pessoa ou expectativa de pessoa?
Um dos argumentos em favor da tese abortista é o de que o nascituro não é pessoa, mas apenas expectativa de pessoa ("spes personae"). Tal argumento fundamenta-se na primeira parte do art. 4º do Código Civil: "A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida".
Logo, se o ser humano foi concebido, mas ainda não nasceu, não é pessoa.
Porém, prossegue o artigo: "mas lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos [no plural] do nascituro".
Este artigo foi causa de incontáveis discórdias entre os civilistas. Se o nascituro não é pessoa, ele não poderia ter direitos. Quando muito, teria expectativa de direitos. No entanto, a lei põe a salvo os direitos (atuais, e não em potência) do nascituro.
Na histórica decisão judicial Roe versus Wade, de 23/01/1973, que declarou o aborto legal em todo o território dos EUA, a Suprema Corte de Washington fez questão de dizer que o nascituro (unborn) não poderia ser considerado "pessoa" e, que, portanto, carecia de qualquer direito constitucional [41]. A conclusão, ainda que imoral, é lógica. Quem não tem personalidade, não tem direitos. E, ao contrário, quem tem direitos, tem que ter personalidade.
O Código Civil brasileiro fez, porém, um estranho amálgama, ao declarar que a personalidade só começa com o nascimento com vida (logo, o nascituro não é pessoa) e, a seguir, ao dizer que a lei protege "desde a concepção" os direitos (e não meras expectativas de direitos) do nascituro.
O ilustre WALTER MORAES resolve a questão fazendo distinção entre personalidade formal (não reconhecida pelo Código Civil) e personalidade material (reconhecida pelo mesmo Código, ao declarar o nascituro sujeito de direitos). Vejamos sua argumentação:
Mas — e esta é a objeção mais divulgada contra a proteção legal da vida do feto — a vida do indivíduo que ainda não nasceu não pode estar protegida pela norma constitucional ou por lei alguma, já que, de acordo com a mesma lei, ele não é pessoa (Código Civil, art.4º): o feto não tem personalidade.
O argumento não deixa de agasalhar um sofisma pouco discreto. Não precisamos mesmo de recorrer a demonstrações extrajurídicas para removê-lo.
O nascituro não tem uma personalidade civil formal; é verdade.
Mas não deve haver dúvida alguma de que a lei contempla sua personalidade material ou real. Tanto assim que sobre ela funda toda disciplina dos direitos do nascituro: a personalidade começa do nascimento com vida; diz o referido art. 4º, mas, continua, "a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituros"
O nascituro tem direitos, declara a lei.
Se tem direitos é porque a lei reconhece que ele é sujeito de direitos; e ser sujeito de direitos é, justamente, ser pessoa.
Por outras palavras, a lei está a afirmar que o nascituro não tem personalidade civil (conceito formal), mas logo acrescenta que ele é sujeito de direitos (conceito material).
A suspensão da personalidade formal, ou seja, a concessão de personalidade civil sob a condição suspensiva do nascimento com vida, é um procedimento que obedece à conveniência da técnica jurídica, supostas as complicações, v.g., da sucessão do natimorto. A lei poderia também inverter a situação, e atribuir ao nascituro uma personalidade sob condição resolutiva. Mas não se vê como essa inversão poderia aproveitar à redução dos problemas práticos.
Mas não se pode negar que a lei reconhece no nascituro uma subjetividade jurídica verdadeira, pois toda a disciplina legal que atende ao nascituro é fundada nessa personalidade material.
E é o que se dá também na órbita penal; pois, a lei penal não capitula o aborto nos crimes contra a vida e entre os crimes contra a pessoa?
Não é a vida da pessoa do nascituro o objeto da tutela penal?
Outra questão (esta já implicitamente respondida): o nascituro tem direito à vida assegurado na Constituição?
Que direitos tem o nascituro?
Todos.
Todos os que um sujeito possa ter: patrimoniais e pessoais; sem nenhuma exceção.
O art. 4º do Código Penal tutela os direitos do nascituros.
Não põe discriminações nem limitações específicas.
Está claro que certos direitos se adquirem, e que outros dependem de legitimação especial para serem adquiridos; mas isto, para qualquer pessoa.
Se o nascituro pode ser proprietário, credor, devedor, herdeiro e tudo mais, a maiori pode ser titular dos direitos de personalidade, guardada a compatibilidade com o seu estado atual.
Mas o nascituro tem direito à sua vida, antes de todos os outros direitos, e tem um direito à sua integridade física e psíquica, e assim adiante.
Assim, mesmo que o aborto sem pena, do Código criminal, não fosse crime, não podemos ter menor a dúvida de que é contra o direito; de que é um ilícito. [42]
O reconhecimento da personalidade do nascituro não é, porém, exclusividade de WALTER MORAES. Há livros didáticos usados na disciplina "Introdução ao Estudo do Direito" que o afirmam explicitamente. Vejamos a seguinte argumentação de FRANCO MONTORO, que distingue entre a personalidade e a capacidade do nascituro:
Ora, se o Código fala em "direitos" do nascituro, é porque lhe reconhece a personalidade, pois, como vimos, todo titular de direitos é pessoa.
"Se os nascituros não são pessoas", pergunta Teixeira de Freitas, (Esboço do Código Civil, Rio, 1860, art. 121) "qual o motivo das leis penais e de polícia, que protegem sua vida preparatória? Qual o motivo de punir-se o aborto?" E, acrescenta: "Não concebo que haja ente com suscetibilidade de adquirir direitos, sem que seja pessoa. Se se atribuem direitos às pessoas, por nascer; se os nascituros são representados, dando-se-lhes o Curador, que se tem chamado Curador ao ventre; é forçoso concluir que já existem, e que são pessoas; pois o nada não se representa. Se os nascituros deixam de ser pessoas pela impossibilidade de obrar, também não seriam pessoas os menores impúberes, ao menos até certa idade".
Como tivemos oportunidade de concluir, em estudo sobre a matéria (Franco Montoro e Anacleto Faria, Condição jurídica do nascituro no direito brasileiro, Ed. Saraiva, 1953), existe, com freqüência, em torno do problema do nascituro, lamentável confusão entre os conceitos de "personalidade" e de "capacidade".
Personalidade, na terminologia jurídica, é a aptidão para ser sujeito ou titular de direito. Juridicamente, todo sujeito de direito é pessoa e toda pessoa é sujeito de direito.
Capacidade é, como vimos, a maior ou menor extensão dos direitos da pessoa. Todos os homens são igualmente pessoas, mas não têm todos igual capacidade.
A capacidade distingue-se, ainda, em: a) capacidade de direito, que é a aptidão maior ou menor da pessoa para ter direitos; b) capacidade de fato ou de exercício, que é a aptidão maior ou menor para a pessoa exercer e defender, de modo pessoal e direto, tais direitos.
Aplicando essas noções à condição jurídica do nascituro, podemos formular, em síntese, as seguintes proposições: a) o nascituro não tem qualquer capacidade-de-exercício; b) tem certa capacidade-de-direito; c) é juridicamente pessoa desde a concepção.
O nascituro não tem capacidade de fato ou de exercício. Não é capaz de exercer por si mesmo os atos da vida jurídica. Por esse motivo, a lei lhe concede um representante (pai, mãe, curador ao ventre) que exercerá em seu nome os direitos que lhe são reconhecidos. Essa a razão por que Teixeira de Freitas dispôs no Esboço: "São absolutamente incapazes: 1.° as pessoas por nascer" (art. 22). E acrescentou em nota: "As pessoas por nascer são absolutamente incapazes por impossibilidade física de obrar". Essa, aliás, é também, a situação dos menores impúberes, ao menos até certa idade.
É inegável, entretanto, que o nascituro tem capacidade de direito, que se estende a múltiplos setores da vida jurídica. O ser concebido tem capacidade de suceder, seja a sucessão legítima ou testamentária. Tem capacidade de receber doações. Tem o direito de ver reconhecida sua filiação e, até mesmo, o de pleiteá-la, judicialmente por seu representante legal. Tem o direito de ser representado em atos da vida jurídica. Tem direitos que lhe são reconhecidos na esfera constitucional. Sua capacidade processual é consagrada pelo direito. A legislação do trabalho lhe confere o direito à pensão por acidente profissional sofrido pêlos progenitores e lhe protege a vida através de diversas disposições de lei. O direito penal lhe defende a vida e garante seu direito de nascer.
A afirmação de que estamos em presença de simples "expectativas de direitos" não resiste a um exame sério. O direito à vida ou o direito de representação, por exemplo, existem na sua plenitude desde o início da gestação. E bastaria ao nascituro ser titular de um único direito para que não lhe pudesse ser negada a qualidade de pessoa.
Como conseqüência lógica dessas premissas impõe-se a conclusão que Clóvis formulou nos termos seguintes: "A verdade está com aqueles que harmonizam o direito civil consigo mesmo, com o penal, com a fisiologia e com a lógica. Realmente, se o nascituro é considerado sujeito de direito, se a lei civil lhe confere um curador, se a lei criminal o protege, cominando penas contra a provocação do aborto, a lógica exige que se lhe reconheça o caráter de pessoa" (Clóvis Beviláqua. Em defesa do Projeto de Código Civil Brasileiro, Rio, Ed. Francisco Alves, 1906, p. 58) [43]
Também reconhece a personalidade do nascituro OTÁVIO FERREIRA CARDOSO, autor de Introdução ao Estudo do Direito, livro este muito usado pelos iniciantes na ciência jurídica:
Dirimindo controvérsias antigas e atuais, frisa o Código Civil, em seu art. 4º: "A personalidade civil do homem começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro."
Logo, antes de nascer já tem o nascituro personalidade civil.
E embora não tenha capacidade de fato (exercer pessoalmente seus direitos), tem capacidade de direito (exercida por seus representantes: pai, mãe, ou mesmo um "Curador ao Ventre", que é pessoa nomeada por juiz para atender a seus interesses, na falta de outro responsável).
Essa personalidade civil e a capacidade de fato nascem com a concepção e por isto, legalmente, o aborto é crime em qualquer tempo da gravidez.
— Quais seriam, na verdade, esses Direitos do nascituro? Vários:
— ser adotado, com consentimento do seu representante legal (CC, art. 372);
— receber doação, se aceita pelos pais (CC, art. 1.169);
— adquirir por testamento, se concebido até a morte do testador (CC, art. 1.169);
— ter um Curador ao Ventre se o pai falecer e a mãe, estando grávida, não tiver pátrio poder, notando-se que, se a mulher estiver interdita, o seu Curador será o do nascituro (CC, arts. 458 e 462 e seu parágrafo único);
— ver reconhecida sua filiação e até mesmo pleiteá-la judicialmente por seu representante;
— suceder, seja legitimamente ou por testamento;
— ser representado nos atos da vida jurídica;
— ter garantia de direitos previdenciários e trabalhistas, como, por exemplo, direito à pensão por acidente profissional sofrido por seus pais;
— proteção penal garantindo-lhe a vida e o direito de nascer, etc.
É, assim, indubitável que o nascituro não tem apenas "expectativa de direitos", como querem alguns. Tem "personalidade jurídica": é pessoa natural, mesmo sem ter nascido, personalidade esta que só termina com a morte. [44]
Quem, porém, na área jurídica mais se dedicou a fundo aos direitos do nascituro foi SILMARA J. A. CHINELATO E ALMEIDA. Citamos aqui seu artigo "Direitos de Personalidade do Nascituro" publicado na Revista do Advogado [45].
A autora critica a teoria natalista (segundo a qual somente após o nascimento com vida se iniciaria a personalidade) dizendo que o art. 4º do Código Civil "reconhece direitos e não expectativas de direitos ao nascituro" (p. 22). Além disso, segundo a autora, é atribuído ao nascituro, ao longo do Código, o "status" de filho (art. 458), de filho legítimo (337 e 338), de filho reconhecido (353 e art. 26 parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente), direito à curatela (458 e 462), à representação (462, "caput" combinado com os artigos 383,V e 385), direito de ser adotado (372).
Critica também a teoria condicional, segundo a qual a personalidade existe desde a concepção sob a condição do nascimento com vida.
Para a autora, que abraça a teoria concepcionista (que defendeu em sua tese de Doutorado), a personalidade começa com a concepção, "considerando que muitos dos direitos e ‘status’ do nascituro não dependem do nascimento com vida, como os Direitos da Personalidade, o de ser adotado, o de ser reconhecido, atuando o nascimento sem vida como a morte, para os já nascidos" (p.22-23). Em seguida, ela trata especificamente dos Direitos de Personalidade do nascituro: 1) Direito à Vida; 2) Direito à Integridade Física; 3) Outros Direitos, como Direito à Imagem e Direito à Honra.