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Sobre os linchamentos que a imprensa estimula

Agenda 30/06/2014 às 11:38

Os jornalistas que estimulam os linchamentos deveriam começar a responder como co-autores dos crimes cometidos nas ruas pelas turbas violentas.

Sempre que vejo alguém discutindo este assunto lembro de algo que ocorreu em Alcobaça, Bahia, onde tive casa de praia e deixei alguns bons amigos.

Entre 1991 e 1994, não consigo mais lembrar exatamente o ano, ocorreu um linchamento em Alcobaça. Dois ou três criminosos haviam matado um casal na frente da filha pequena (conheci a menina). Eles foram presos, mas o povo da cidade gostava muito das vítimas e se reuniu na frente da prisão para protestar. O protesto engrossou e evoluiu para uma rebelião popular. Os exaltados filhos da terra, armados de paus, pedras, facões, espingardas e pistolas exigiram que a exígua guarnição de policiais (eram 3 ou 4 no máximo) lhe entregasse os criminosos. Caso contrário a prisão seria invadida com danos para todos que lá estivessem.

Sem ação diante da turba, os policiais se renderam abandonando o local com garantia de não serem agredidos. O povo então tomou de assalto a prisão, retirou os assassinos das celas e os atacou a pauladas, facadas, pedradas e tiros no meio da rua. Os corpos foram depois lavados de gasolina e queimados, não se sabendo se a cremação ocorreu após ou antes da morte dos infelizes.

A filha pré-adolescente de uma grande amiga minha, servidora pública municipal que não quis ter participação alguma no ocorrido, fugiu da casa da mãe para ir ver o que estava ocorrendo. Pelo que sei ela presenciou a fase final do linchamento e a fogueira feita com os corpos mutilados. A menina ficou com sérios problemas psicológicos depois do ocorrido. Ela passou a recordar constantemente aquela cena grotesta de dia e de noite, sentindo-se envergonhada de ter visto o que viu. Em pouco tempo ela começou a associar o cheiro do sabão de coco que a mãe usava em casa com o odor repulsivo da carne queimada das vítimas do linchamento. O simples odor do sabão de coco fazia ela ter ansia de vômito e ficar profundamente melancólica. 

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Há mais de uma década não vou a Alcobaça. A casa que lá tinha em sociedade com amigos osasquences foi vendida. A valiosa história no entanto não esquecerei tão cedo.

Estimular a vingança privada é fácil. Vários jornalistas fazem isto diariamente na TV aberta. Se deixar levar pelo estímulo fornecido por jornalistas e participar de um linchamento também. Nem todos os participantes de um ato grotesco deste são processados e condenados, pois raramente é possivel identificar quem fez o que durante uma confusão. Sem a prova da conduta criminosa ninguém pode ser condenado (exceto se for petista e tiver o azar de cair nas mãos de JB). A impunidade, portanto, reforça a vontade de participar de uma vingança privada coletiva. 

A memória do ocorrido, porém, não é algo fácil de carregar, nem se desfaz facilmente. Tive contato com aquela menina por algum tempo depois do que ela presenciou. Posso lhes garantir que a menina alegre, espontânea, feliz e descomplicada foi queimada naquela fogueira humana que ela presenciou. Após ter presenciado aquilo ela se transformou numa menina reclusa, taciturna, sempre mergulhada no trauma e prisioneira de memórias melancólicas, que eram reavivadas pelo cheiro de sabão de coco.

Agredir alguém é crime, causar lesão grave ou morte também. A legítima defesa é autorizada pela legislação penal, mas para que seja reconhecida pelo Judiciário depende da existência de equivalência entre a agressão e a reação. Não há equivalência entre ambos quando várias pessoas armadas de paus, pedras, correntes, etc. atacam alguém que cometeu um crime. Cada pessoa que participa de um linchamento concorre para o resultado final e pode responder por lesão corporal ou homicídio. Os jornalistas que estimulam este tipo de violência também deveriam responder pelo mesmo crime, pois são mentores intelectuais da barbárie. 

Recentemente a estudante de arquitetura Mikhaila Copello, de 22 anos, evitou um linchamento no Rio de Janeiro. Ela foi ofendida por um PM no momento da prisão. “Se gosta de bandido, leva pra casa" disse o soldado que efetuou a prisão ao chegar ao local para atender a ocorrência.  A conduta da estudante é exemplar e deve ser elevada à condição de paradigma. Não podemos nos transformar em criminosos ou deixar que nossos compatriotas se transformem em criminosos a propósito de combater o crime nas ruas. Este é um caso em que a sociedade tem os meios, mas estes nunca justificarão os fins. 

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Fábio Oliveira. Sobre os linchamentos que a imprensa estimula. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4016, 30 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28490. Acesso em: 22 dez. 2024.

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