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Título executivo, liquidez do crédito e controle de admissibilidade

Agenda 01/04/2002 às 00:00

Com a extinção da liquidação por cálculo, o intérprete tem se deparado com algumas dificuldades, entre elas a de saber se é permitido ao juiz, em casos de cálculos complexos, e estando ele em dúvida quanto à correção dos mesmos cálculos, mandar que o contador os examine, antes mesmo de deferir ou não a execução requerida, determinando a citação do devedor. A questão é tão relevante que suscitou proposta de reforma legislativa sobre o ponto. Com efeito, tramita no Congresso o anteprojeto de lei que pretende concluir a reforma processual e, entre as modificações aí propostas está, precisamente, a possibilidade reconhecida ao juiz de ouvir o contador antes de mandar citar o devedor. Mesmo assim, precisamente porque ainda não aprovado o referido anteprojeto, impõe-se indagar se está o juiz autorizado a proceder deste modo. [1]

No presente trabalho, se pretende demonstrar que o juiz pode e deve verificar, de ofício e inclusive mediante a colaboração de contador judicial, nos casos de maior complexidade, a correção dos cálculos que conduziram ao valor líquido do crédito representado no título executivo. [2] Isso porque tal verificação está ínsita no controle de admissibilidade realizado de ofício pelo órgão jurisdicional sobre a existência de título executivo.

Já se demonstrou, em outra oportunidade, que os requisitos de admissibilidade da execução forçada consistem nos pressupostos processuais e no título executivo. [3] O controle de admissiblidade, portanto, realizado pelo juiz no momento de despachar a inicial, no processo executivo, cinge-se a examinar se foram atendidos os pressupostos processuais e se está presente o título executivo. [4]

O título executivo, por sua vez, consiste na representação documental típica de crédito líquido, certo e exigível. Em outras palavras, consiste o título numa mera "materialização", pela via documental, de um crédito, materialização esta que desempenha uma dupla função, a saber, serve para permitir instaurar o processo executivo e para fixar os limites subjetivo (a quem diz respeito a execução) e objetivo (qual o direito a ser satisfeito) da atuação do juiz na prestação de tutela jurisdicional. Insista-se que a tipicidade da representação documental, em que consiste o título executivo, significa que as hipóteses legais de títulos executivos são taxativamente indicadas na lei, isto é, são constituídas pelo legislador segundo o princípio do numerus clausus. [5]

De outra parte, seja sublinhado que no título executivo o crédito deve vir representado de tal forma que daí resulte sua liquidez, certeza e exigibilidade. Realmente, interpretando-se o art. 586 do CPC de forma coerente com a conclusão que, a partir da disciplina legal do processo de execução, chegou-se sobre a natureza do título executivo, impõe-se concluir que também aqueles atributos devem estar documentalmente representados, para que se tenha existente o título executivo. Isso quer dizer que se em determinada representação documental de um crédito, ainda que subsumível em uma das hipóteses legais de título executivo, não estiverem expressas também a liqüidez, e certeza e a exigibilidade do mesmo crédito, sequer se pode afirmar que existe título executivo. [6]

No que diz com a liquidez do crédito, já firmou-se o entendimento que este requisito estará atendido não apenas quando o mesmo crédito for determinado em seu quantum, mas também quando for apenas determinável, mediante meras operações aritméticas. À luz do que se disse sobre título executivo, pode-se afirmar que o atributo da liquidez do crédito está presente seja nas hipóteses em que na sua representação documental vier expresso o exato quantum do crédito representado, seja naquelas em que este quantum for determinável através de meras operações aritméticas, a partir de fatores que constam daquela representação e/ou impostos por lei, v.g., juros de mora, índices oficiais de correção monetária etc.

Contudo, impõe-se considerar que, da perspectiva do controle de existência do título executivo, não se pode entender a liquidez do crédito, como a mera "determinabilidade abstrata" do seu valor exato. Não basta, para se considerar presente o atributo da liquidez, que o juiz verifique se o valor exato do crédito a ser satisfeito pode ser determinado (ou é determinável) através de meras operações aritméticas, a partir de fatores já dados no próprio título, ou fixados em lei (juros de mora, índices de correção monetária etc). Uma tal interpretação conduziria a que se frustrasse uma das mais importantes funções do título executivo, a saber, a de fixar os limites da atuação jurisdicional ao prestar a tutela executiva, uma vez que o título não indicaria, nesse caso, o valor do crédito a ser satisfeito.

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Como se sabe, deve o juiz verificar o pedido do credor na execução, com base, precisamente, nos dados do título executivo. Para saber se é lícita a prestação da tutela executiva nos limites exatos do pedido do credor, deve o juiz verificar se tal pedido está amparado em titulo executivo, ou seja se o crédito para a satisfação do qual se pede a tutela executiva encontra-se nos limites da representação documental típica oferecida como título executivo.

É que, se alguém que não é credor no título executivo pede, com base neste, a satisfação de determinado crédito, quanto a este credor inexiste título executivo. Da mesma forma, se alguém pede a satisfação de crédito em quantidade superior àquela expressa na sua representação documental, então não há título executivo quanto a esse quantidade excedente.

Daí ser lícito afirmar que, examinando a existência de título executivo, o órgão jurisdicional não se limita a verificar o enquadramento da representação documental do crédito apresentada como título executivo em uma das hipóteses legais. Cumpre-lhe, igualmente, verificar se a pretensão do credor encontra-se nos limites subjetivo (quem é credor e devedor) e objetivo (qual é o crédito) do crédito traçados pelo título executivo. Em outras palavras, para saber se existe título executivo deve o juiz verificar se há uma representação documental típica daquele crédito --- também no que diz com sua liquidez, certeza e exigibilidade --- para o qual se pede a tutela executiva.

Compreende-se, portanto, porque a liquidez não pode reduzir-se à mera "determinabilidade abstrata" do crédito, mas sim na sua correta determinação pelo credor, nos casos em que se fizer necessário, para evidenciar o valor exato da crédito representado no título executivo, a realização de operações aritméticas. Com isso, se deve entender que o controle da liquidez do crédito, como momento do exame da existência de título executivo, deve ser entendida não apenas como verificação da "determinabilidade" em abstrato do valor do crédito através de simples operações, como também no sentido de saber se o resultado das operações realizados estão corretos.

Sendo assim, resta demonstrada a interpretação aqui defendida, segundo a qual o juiz pode e deve, de ofício e inclusive com o auxílio de contador oficial, verificar a exatidão dos cálculos realizados pelo credor para chegar ao valor líquido do crédito a ser satisfeito in executivis, É que, como se expôs, a exatidão de tais cálculos é relevante na determinação da própria existência do título executivo, objeto principal do controle de admissibilidade da execução feito, ex officio, pelo órgão jurisdicional.

Finalmente, não se pode deixar de tecer, nessa oportunidade, algumas observações críticas sobre as novas regras, sobre a matéria aqui analisada, sugeridas pelo já mencionado Anteprojeto n. 13. Como se referiu, aí vem proposta a inclusão de um § 2º ao art. 604, com a seguinte redação: "Poderá o juiz, antes de determinar a citação, valer-se do contador do juízo quando a memória apresentada pelo exeqüente aparentemente exceder os limites da decisão exeqüenda e, ainda, nos casos de assistência judiciária. Se o exeqüente não concordar com esse demonstrativo, far-se-á a execução pelo valor pretendido, mas a segurança do juízo terá por base o valor encontrado pelo contador".

Ora, a regra estabelecida na segunda parte desse dispositivo não condiz com a caracterização, demonstrada no presente trabalho, do controle pelo juiz dos cálculos confeccionados pelo credor como momento inafastável do controle de admissibilidade da execução forçada, relativo à existência do título executivo. Realmente, se o órgão jurisdicional, com o auxílio do contador oficial, chega a um valor diverso daquele obtido pelo credor, isso quer dizer que o mesmo órgão já verificou que, quanto ao valor excedente, não existe título executivo a fundamentar o pedido do exeqüente. Dessa forma, não pode o aquele órgão, em nenhuma circunstância, autorizar a citação do devedor para pagar a quantia excedente, ainda que o mesmo devedor seja liberado da segurança do juízo para discutir os cálculos, naquilo que excederem ao valor encontrado pelo órgão jurisdicional. É que, assim procedendo, o juiz estaria, na verdade, autorizando uma execução sem título e impondo ao devedor o ônus de, mesmo que sem a segurança do juízo, embargar a execução apenas para discutir o que o próprio órgão jurisdicional já concluiu: a inexistência de título executivo.

Em face disso, pode-se concluir, sobre o mencionado § 2º do art, 604, que a sua primeira parte traz uma norma inteiramente desnecessária, uma vez que já existente, ainda que não explícita, no sistema vigente, como se demonstrou no presente trabalho, e que, em sua segunda parte, traz o mencionado dispositivo uma regra esdrúxula, que contradiz o princípio do nulla executio sine titulo, consagrado no art. 583 do CPC.


Notas

1..No Anteprojeto n. 13 (versão final), que complementa as leis de reforma do CPC, vem sugerida a inclusão de dois parágrafos no art. 604, dispondo o § 2º : "Poderá o juiz, antes de determinar a citação, valer-se do contador do juízo quando a memória apresentada pelo exeqüente aparentemente exceder os limites da decisão exeqüenda e, ainda, nos casos de assistência judiciária. Se o exeqüente não concordar com esse demonstrativo, far-se-á a execução pelo valor pretendido, mas a segurança do juízo terá por base o valor encontrado pelo contador".

2..Na melhor e mais recente doutrina, já há quem sustente que o juiz possa, de ofício, verificar a exatidão dos cálculos feitos pelo credor, na memória com que instrui sua inicial na execução. Nesse sentido, afirma Luiz Rodrigues Wambier: "A exatidão do cálculo que instrui o pedido de execução, no nosso entender, é matéria de ordem pública, que pode (e deve) ser conhecida de ofício pelo juiz (...)" [Liquidação de Sentença, São Paulo: RT, 1997, p.167]. Assim também entende Teori Albino Zavascki: "A adequação entre cálculo e título é, portanto, matéria de ordem pública, controlável não apenas por provocação do devedor, na via de embargos (CPC, art. 741, VI), como também por iniciativa oficial, podendo o juiz, se necessário, valer-se do apoio da contadoria judicial" [Título Executivo e Liquidação, São Paulo: RT, 1999]. Contudo, tal interpretação requer uma demonstração mais detalhada, não só porque o apelo à noção de "ordem pública" pode se revelar pouco esclarecedor, como também porque prevalece, numericamente, o entendimento oposto.

3..Marcelo Guerra, Execução Forçada – Controle de Admissibilidade, 2ª ed., São Paulo: RT, 1998, passim, esp. pp. 74 e ss. Aí se chegou à conclusão de que, por um lado, o inadimplemento do devedor não pode ser considerado requisito da execução, por não haver como, no próprio processo executivo, verificar sua existência, e, por outro lado, que é inútil fazer uso da categoria das condições da ação no processo executivo, uma vez que aí não há julgamento de mérito, podendo-se até considerar que tais condições consubstanciam-se no próprio título executivo.

4..Cf., sobre o momento, a relevância e o objeto do controle de admissibilidade da execução, Marcelo Guerra, ob. cit. pp. 144 e ss. Cf, também Teori Albino Zavascki, ob. cit., pp. 78 e ss.

5..Sobre o título executivo, cf. Marcelo Guerra, ob. cit., pp. 86-117; Teori Albino Zavascki, ob. cit., pp. 52-78.

6..Cf., sobre isso, em maior profundidade, Marcelo Guerra, ob. cit., pp. 108-117.

Sobre o autor
Marcelo Lima Guerra

juiz do Trabalho substituto do TRT da 7ª Região, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, professor de Direito da Universidade Federal do Ceará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, Marcelo Lima. Título executivo, liquidez do crédito e controle de admissibilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2889. Acesso em: 22 nov. 2024.

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