INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como escopo destacar a abrangência da finalidade do conceito de domicílio necessário do servidor público insculpido no Código Civil, bem como tecer considerações quanto à sua aplicação/destinação no que concerne a (i)legalidade de recebimento de correspondências particulares em seu local de trabalho.
Pretende-se também adentrar no estudo da possibilidade do servidor público, apesar da existência legal de seu domicílio necessário, instituir domicílio voluntário para as hipóteses distoantes do domicílio necessário.
Por fim, pretende-se demonstrar, com base em preceitos de direito privado, tal como a instituição de domicílio profissional, bem como em preceitos públicos, quais sejam, nas normas princípios da prevalência do interesse público sobre o interesse particular, bem como o princípio da eficiência que não cabe à Administração Pública do local de trabalho do servidor, a responsabilidade pelo recebimento de suas correspondências particulares.
DO DOMICÍLIO. DO DOMICÍLIO NECESSÁRIO DO SERVIDOR PÚBLICO
Segundo Washington de Barros Monteiro, domicílio “é a sede jurídica da pessoa, onde ela se presume presente para efeitos de direito e onde exerce ou pratica, habitualmente, seus atos e negócios jurídicos”.
Por esta definição, temos que domicílio é a referência espacial das relações jurídicas da pessoa.
Tomando por ponto de partida esta premissa, com relação às pessoas naturais, domicílio é o lugar onde a pessoa física estabelece sua residência com âmbito definitivo, convertendo-o em centro da sua vida jurídica. “O domicílio é a sede jurídica da pessoa”.
É também o que se extrai do art. 70 do Código Civil: "domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo".
Como objeto do presente estudo, temos que o artigo 76º do Código Civil, estabelece o regime de domicílio necessário ao servidor público. Vejamos o teor da legislação:
“art. 76 Têm domicílio necessário o incapaz, o servidor público, o militar, o marítimo e o preso.
Parágrafo único. O domicílio do incapaz é o do seu representante ou assistente; o do servidor público, o lugar em que exercer permanentemente suas funções; o do militar, onde servir, e, sendo da Marinha ou da Aeronáutica, a sede do comando a que se encontrar imediatamente subordinado; o do marítimo, onde o navio estiver matriculado; e o do preso, o lugar em que cumprir a sentença”. (grifo nosso)
Assim, pelo teor do normativo acima, ao servidor público em atividade, nesta condição, ou seja, em razão de suas funções, é estabelecido o domicílio necessário. Nesse sentido, no lugar em que exercer permanentemente suas funções, qual seja, o seu local de sua lotação e exercício, a lei estabeleceu como de domicílio necessário.
Consoante o entendimento de Orlando Gomes: "Cremos que a função do legislador ao estabelecer o regime domiciliar legal para o funcionário público foi vinculá-lo ao local do desempenho das funções de seu cargo, naquilo que diga respeito ao próprio cargo público (...)"
Apesar de o Código Civil não definir residência, considera-se esta como o lugar onde a pessoa tem moradia habitual. O domicílio voluntário da pessoa natural, conforme aduzido acima, é definido como o lugar onde ela estabelece sua residência com ânimo definitivo. Assim, o conceito de domicílio integra-se de dois elementos: um objetivo, que é a fixação da pessoa em determinado lugar, e outro subjetivo, que é o ânimo de permanecer. (Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil, vol. I, 3ª ed., 2003, pág. 228).
Segundo Orlando Gomes, toda pessoa tem direito a escolher livremente seu domicílio, salvo quando a lei o impõe em razão de circunstâncias particulares. Neste último caso, o lugar determinado para o domicílio de algumas pessoas, conforme informado acima, para os servidores públicos entre outros, configura domicílio necessário (ou legal).
Assim, a lei o presume de forma absoluta, Juris et de Jure, não admitindo prova em contrário. Cabe salientar que nos casos de domicílio necessário não há de se falar em residência e muito menos em voluntariedade. Simplesmente é a lei que impõe determinado domicílio, por razões as mais diversas, que entendes convenientes.
Para o servidor público, objeto do presente estudo, a finalidade da instituição do domicílio necessário pelo nosso legislador se deve unicamente aos fatos concernentes ao desempenho de suas funções, situação esta, quando operada, deve o servidor público ser demandado no lugar de seu domicílio necessário, qual seja, sua unidade de exercício e lotação, ao invés do local de sua residência, mormente se tratando de questão respeitante ao próprio cargo público que ocupa e, também, por ser ali o local em que a comunicação melhor propiciará o exercício de seu direito de ciência e se for o caso, de contraditório e a ampla defesa, inclusive com a utilização de todos os meios e recursos admitidos em direito.
DA AUTONOMIA E POSSIBILIDADE DE INSTITUIÇÃO DE DOMICÍLIO VOLUNTÁRIO PELO SERVIDOR PÚBLICO
Nada obstante, o fato de exercer o cargo público em uma determinada localidade não lhe retira a possibilidade de estabelecer, voluntariamente e com ânimo definitivo, seu domicílio em outro lugar - notadamente quando inexiste qualquer vedação para tal.
Em outras palavras, a existência de domicílio necessário de servidor público não impede, de per si, a existência de domicílio voluntário, o que encontra guarida no art. 71 do Código Civil, vejamos:
Art. 71. Se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas.
Tal conjunto fático é suficiente a demonstrar o ânimo do servidor público, quanto à definitividade, em estabelecer domicílio na região desejada, onde segue exercendo direitos e cumprindo deveres. Afinal, pela conceituação de domicílio voluntário, temos ser esse aquele estabelecido livremente pelo indivíduo sem sofrer outra influência que não a de sua vontade ou conveniência (autonomia privada).
Assim, há de restar nítida a diferenciação de domicílio necessário para o servidor público e de domicílio voluntário para os assuntos particulares do servidor enquanto pessoa física.
DA IMPOSSIBLIDADE DE RECEBIMENTO DE CORRESPONDÊNCIAS PARTICULARES DO SERVIDOR PÚBLICO EM SEU LOCAL DE TRABALHO (DOMICÍLIO NECESSÁRIO)
Nesta seara, temos que a função do legislador ao estabelecer o instituto do domicílio legal ou necessário para o servidor público foi vinculá-lo ao local do desempenho das funções de seu cargo, naquilo que diga respeito ao próprio cargo público.
Por outro lado, para assuntos outros, atinentes à vida particular do servidor público, tal como a possibilidade de recebimento de encomendas pessoais e ou postais do servidor, em seu local de trabalho (Repartição Pública), entendemos que não foi esta a finalidade visada pela norma insculpida no art. 76 do Código Civil, conforme acima exposta.
Para estas situações, ou seja, para os assuntos referentes à sua vida privada, tais como recebimento de encomenda postal e ou outras particulares, o entendimento que deve prevalecer é que este deve ser recebido em seu domicílio voluntário, eleito pelo próprio servidor, enquanto pessoa física/particular, dotada de direito e obrigações na seara civil.
A propósito, e na perspectiva aqui abordada, o próprio Código Civil de 2002 inovou ao trazer o conceito de "domicílio profissional", expressão utilizada pela doutrina, em seu art. 72, no qual faz expressa vinculação desta espécie de domicílio ao desempenho ou exercício da profissão ou função, ao afirmar que "É também domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida. Parágrafo único. Se a pessoa exercitar profissão em lugares diversos, cada um deles constituirá domicílio para as relações que lhe corresponderem”. (grifo nosso)
Levando-se este entendimento, qual seja, do domicílio profissional acima referido pelo Código Civil, para a situação em epígrafe, chega-se novamente à conclusão de que servidor público não pode se valer de seu domicílio necessário para questões de âmbito particular.
Assim, parece clara a impossibilidade da utilização pelo servidor público, de seu domicílio necessário, em razão do cargo público, em situações decorrentes de assuntos particulares, via de regra, não ligados ao exercício de suas funções.
Tratando-se da hipótese da (im)possibilidade de recebimento de correspondências particulares em cotejo com os princípios basilares da Administração Pública, notadamente o princípio da prevalência do interesse público sobre o particular e da eficiência, este de índole constitucional, temos que não há guarida normativa para obrigatoriedade de recebimento de correspondências particulares de servidores públicos, na repartição pública onde este exerce suas funções, eis que se assim proceder, estaria a Administração dando prevalência a interesses privados do servidor público em detrimento do Interesse Público (Coisa Pública), finalidade última buscada pela Administração Pública.
A prevalecer o entendimento contrário, qual seja, de que estaria a Administração obrigada a receber correspondências particulares de servidores, teria a mesma que, em detrimento de sua atividade finalística, de adotar/destacar um setor próprio para atendimento/recebimento de correspondência particulares de servidores, para posterior entrega aos mesmos. Sem contar a obrigação de disponibilização de espaço físico e de servidores para cumprimento de tal atividade, o que desvirtuaria a própria finalidade da Administração Pública no mister que lhe foi atribuída de atender/ofertar/oferecer serviços públicos à população.
Outro fator pela impossibilidade de recebimento de encomendas pessoais do servidor público em seu local de trabalho levando em conta o instituto do domicílio necessário, seria no que se refere a responsabilidade pela guarda de tais encomendas, quando postais, pelo “setor de recebimento da Administração” até a entrega efetiva ao servidor, notadamente ante a previsão de tipicidade penal em razão da violação do sigilo das encomendas postais particulares, encargo este que desvirtuaria e seria mais uma razão pela impossibilidade de recebimento de encomendas pessoais de servidores no local de trabalho.
A propósito, caso se entenda que caberia este recebimento, temos que haveria violação fragrante ao princípio da eficiência, consagrado pela CF/88, como princípio da Administração Pública (art 37), eis que a Administração teria que se preocupar com atividades/atribuições outras não pertinentes à sua finalidade, haja vista que citado princípio impõe que a Administração Pública Direta e Indireta, ao buscar o atendimento das finalidades estabelecidas pela ordem jurídica, tenha uma ação instrumental adequada, constituída pelo aproveitamento maximizado e racional dos recursos humanos, materiais, técnicos e financeiros disponíveis, de modo que possa alcançar o melhor resultado quantitativo e qualitativo possível, em face das necessidades públicas existentes.
CONCLUSÃO
Em vista do exposto, entendemos não falecer obrigatoriedade legal para Administração receber, bem como guardar em seu domínio, encomendas pessoais de servidores públicos, não se entendendo, assim, que a previsão do domicílio necessário para o servidor público, traz esta responsabilidade/atribuição para a Administração Pública, notadamente por trata-se as encomendas, postais ou não, de assunto de natureza pessoal do servidor, nada tendo haver com as funções decorrentes do cargo, finalidade esta, sim, acolhida, pelo instituto do domicílio necessário, insculpido no Código Civil de 2002.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 09 jun. 2014.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 09 jun. 2014.
BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. – 39. Ed: Malheiros, 2011.
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed: Malheiros. 1998.
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 20 Ed: Forense. 2010
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 10. Ed: Atlas, 1998.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25 ed: Malheiros. 2000.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Vol. I. Parte Geral. 44. Ed: Saraiva. 2012.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12 Ed: Atlas. 2002.
SALVO, Silvio de Salvo. Direito Civil – Vol. I. – Parte Geral. 14ª Ed: Atlas.