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Sobre os crimes no Estatuto do Desarmamento.

Breve análise dos aspectos penais e administrativos ligados à Lei 10.826/2003

Agenda 01/07/2014 às 16:22

Existe no bojo da lei algumas condutas que podem ser praticadas por desavisados, enquanto outras condutas, apesar de devidamente reguladas, são descumpridas pelo Exército Brasileiro, colocando cidadãos sob o risco de responderem por crime inexistente.

No Brasil, a principal norma que rege armas e munições é a Lei 10.826/2003, concebida para promover o total desarmamento da população civil brasileira, e por este motivo denominada “Estatuto do Desarmamento”. A lei deveria ter deixado de ser desarmamentista no exato momento em que o Referendo de 2005 revogou o seu art. 35, mas de vez que a lei já tinha sido construída com este viés, graves resquícios sobraram em seu cerne, que continuam a produzir efeitos – apesar de existir acórdão transitado em julgado, na AP 470-STF, demonstrando que a Lei carece de Vício de Inconstitucionalidade, o chamado “Vício de Decoro Parlamentar”, segundo Pedro Lenzai. Trata-se, portanto, de lei imprestável, mas que produz efeitos enquanto não for julgada inconstitucional, seja em ADIN, seja incidentalmente.

Se eu pudesse deixar minha contribuição para o universo jurídico brasileiro, seria na forma de um apelo a todos os Operadores de Direito: Jamais utilizem esta lei contra um único cidadão de bem. Estaríamos incorrendo no mesmo erro de quando os poderes legislativo e judiciário alemães acolheram e ampararam o nazismo, segundo as palavras de Hans Kelsen.

Sim, com o simples manuseio de leis, genocídios foram “legalizados”.

Assim, por exemplo, sob o regime nacional-socialista, na Alemanha, certos atos de coerção que, ao tempo em que foram executados, constituíam juridicamente homicídios, foram posteriormente legitimados retroativamente como sanções e as condutas que os determinaram foram posteriormente qualificadas como delitos. Uma norma jurídica pode retirar, com força retroativa, validade a uma outra norma jurídica que fora editada antes da sua entrada em vigor, por forma a que os atos de coerção, executados, como sanções, sob o domínio da norma anterior, percam o seu caráter de penas ou execuções, e os fatos de conduta humana que os condicionaram sejam despidos posteriormente do seu caráter de delitos.ii

Muito cuidado em apenas se aplicar a lei – uma lei pode estar até corretamente inserida dentro de um ordenamento jurídico, mas ser injusta.

Artigo 12 – Posse ilegal de armas de fogo

O artigo 12 desta lei, conquanto tipifique o crime de posse ilegal de arma de fogo, serve para delimitar o direito de qualquer cidadão em ter e portar livremente sua arma LEGALIZADA dentro do seu domicílio, ou no estabelecimento em que seja dono ou gerente, bem como em suas dependências. Para isto, basta que a arma esteja registrada em seu nome. Algumas pessoas se assustam quando me veem afirmando que o proprietário pode PORTAR sua arma dentro do estabelecimento, mas este é um fato inconteste: O crime de “porte de arma” só se configura FORA do domicílio do proprietário da arma.

Atualmente o Ministério da Justiça estima que oito milhões e quinhentos mil brasileiros estejam entre o mais novo grupo de criminosos existentes, por terem em suas residências armas sem registro, ou com registro vencido. É que ao editar o Estatuto do Desarmamento, o nome veio bem a calhar: as regras lá contidas impossibilitaram de maneira ABSOLUTA a renovação do registro da imensa maioria das armas de civis em todo o território nacional. Considero este o maior e mais importante ato de desobediência civil da história brasileira, e não tenho notícia de nenhum outro, que sequer se assemelhe ao seu vulto e importância.

O curioso é que o Estado estima que existam cinco milhões e meio de armas nas mãos do crime organizado, mas até o momento, não existe nenhuma política governamental dedicada a erradicar, ou ao menos diminuir isto.

Temos dois grupos armados no Brasil dizendo, como Leonidas em Esparta: “Molon Labe”. O primeiro grupo é formado exclusivamente por cidadãos de bem, que comprovadamente são honestos e trabalhadores, e foi necessário demonstrar amplamente esta situação para que pudessem adquirir legalmente suas armas mas que no momento estão com suas armas ilegais, por terem seus registros vencidos. Em prol destes o Congresso Nacional está inquirindo o Ministro da Justiça.

O segundo grupo é formado pela escória, por bandidos que sobrevivem consumindo o sangue, a energia vital da sociedade, o esforço de todos que acordam cedo e trabalham para construir a nação. Este segundo grupo só está sendo combatido pontualmente, por alguns policiais heróicos que os prendem numa semana, apenas para vê-los cometendo crimes na semana seguinte – o que implica no uso repetido de toda a máquina policial e judiciária da nação, a perseguir sempre as mesmas pessoas, infinitamente.

Artigo 14 – Porte Ilegal de arma de calibre permitido

O art. 14 diz respeito às armas e munições de calibre PERMITIDO – as listadas no artigo 17 do Decreto 3.665/2000iii, o chamado R-105.

O tipo penal se configura em se “portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido”.

Semelhanças com o artigo 12

Os verbos deter, adquirir, receber, ter em depósito, manter sob sua guarda e ocultar dizem respeito à POSSE de arma de fogo, então não serviriam para configurar o crime de PORTE, exceto se esta arma encontrar-se fora do domicílio do agente no momento dos fatos. Assim, por exemplo, quem oculta uma arma ilegal em sua casa, está cometendo o crime de POSSE ilegal de arma de fogo, art. 12, mas quem oculta sua arma em um terreno baldio para se evadir de uma blitz, está cometendo o crime do art. 14. O mesmo vale para quem tem uma arma dentro do porta-malas do seu carro, ainda que desmontada, mas sem os documentos devidos. Se a arma não tiver peças suficientes para funcionar, não é arma, então não existe o crime.

O proprietário legítimo de uma arma de fogo, ao se deslocar fora de seu domicílio ou estabelecimento de que seja dono ou gerente, deve providenciar com antecedência uma Guia de Trânsito para a arma ou munição, caso contrário estará incorrendo no crime de Porte Ilegal de arma de fogo, mesmo a arma sendo devidamente registrada.

O parágrafo único do art.14, que previa a inafiançabilidade para este crime, exceto no caso de arma registrada, foi declarado inconstitucional, pela ADIN 3.112-1, junto com o parágrafo único do artigo 15 e todo o artigo 21. Por este motivo, deixou de existir qualquer diferenciação quanto ao fato de a arma estar ou não registrada, para a configuração deste crime. Para portar sua arma legalmente, o cidadão depende de ou estar listado entre alguns dos inseridos nos incisos do art. 6, ou ter o documento de Porte de Arma expedido pela Polícia Federal, nos termos do art. 10 e seguintes.

Comprar munição na loja

O ato mais comum e banal, regularmente praticado em todo o Brasil, e que poucas pessoas percebem que configura crime, é o ato de comprar munição. O cidadão vai até uma loja, apresenta sua documentação pessoal, o registro válido da arma de fogo, e com isto efetua a compra da quantidade regulamentar de munição, e sai da loja feliz e radiante por poder ainda ter exercido uma das últimas liberdades civis sobreviventes.

Este cidadão está cometendo o crime de porte ilegal de munição, caput do art. 14. Na verdade, a loja deveria neste momento ter emitido uma GUIA DE TRÂNSITO, permitindo que o cidadão transitasse da loja até sua residência com este “perigosíssimo” material. A loja não emite a Guia, e o cidadão pode estar sujeito a responder um processo criminal de ponta a ponta, com todas as despesas que isto acarreta, sem dizer que, se condenado, passará a ser um bandido.

Crimes que não se confundem com o art. 12

Já os verbos portar, transportar, ceder, emprestar, remeter e empregar são atos distintos, que configuram crime pela sua mera constatação, sem jamais se confundir com o disposto no art. 12. Assim, quem envia um blister de munição pelos correios, sem cumprir as formalidades legais, está cometendo o crime do art. 14, da mesma forma que alguém que tenha sido apreendido com uma arma de fogo sem a devida documentação.

Possibilidades de transporte de arma de fogo

Até mesmo um cidadão comum pode transportar sua arma de fogo para a prática em um clube de tiro, ou em qualquer stand oficial devidamente registrado no Exército Brasileiro. Para tanto, deve obter, antecipadamente, uma Guia de Trânsito. Até há pouco esta guia de trânsito só podia ser obtida na Polícia Federal, mas atualmente o Exército Brasileiro, que parece estar com pouco serviço, também abraçou esta possibilidade, nos termos da ITA 01/2014 do DFPC.

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Atiradores registrados no exército brasileiro

Os CACs se dividem em três categorias, sendo que a lei só exige que os Atiradores (nas diversas modalidades de atiradores desportivos) transitem com suas armas desmuniciadas quando em eventos INTERNACIONAIS (art. 31 do Dec. 5.1234). A mesma restrição se aplica aos caçadores, por força do art. 32 do mesmo decreto.

O TJ-SP já decidiu que o atirador registrado no Exército Brasileiro não comete crime ao PORTAR sua arma municiada, de vez que o tipo penal exige violação da lei ou do regulamento (Dec. 5.123/04), e o porte de arma de atiradores se encontram amparado por estes dois institutos legais. É certo que o Exército Brasileiro em seus regulamentos tem orientação diferente, então neste caso o atirador pode até se submeter a punições administrativas caso viole o disposto nestas regras subalternas, caso em que poderá se defender simplesmente com o fato de que o órgão infra-ministerial não pode legislar contra normas hierarquicamente superiores, conforme o disposto em nossa Constituição Federal (Pirâmide de Kelsen).

 Ora, o apelante é atirador e estava munido da guia especial de porte de trânsito da arma de fogo com ele apreendida, fornecida pela autoridade competente e dentro de seu prazo de validade.

Não se pode negar que o transporte estava sendo feito de forma irregular, em desobediência ao dispositivo que determina o acondicionamento da arma em estojo próprio, separada da munição, mas tal conduta é mera infração administrativa, que não se erige em ilícito penal, e a conseqüência seria a apreensão da arma, o que efetivamente ocorreu.

Assim sendo, inexistindo crime na conduta do apelante, é de ser provido seu recurso.

III - Ante o exposto, dá-se provimento ao apelo para, com fundamento no

art. 386, III, do CPP, absolvê-lo da acusação que lhe foi feita iv

Como CACs tem direito ao uso de armas tanto em calibres restritos quanto em calibres permitidos, o mesmo aqui disposto se aplica igualmente ao art. 16, que versa sobre porte ilegal de armas de fogo de calibre restrito.

Artigo 16 – Porte Ilegal de arma de calibre restrito

O crime do art. 16 diz respeito à armas de calibres restritos ou proibidos, listadas no art. 16 do Decreto 3.665/2000, são todos crimes de mera conduta, e os verbos jamais apontam para o disposto no art. 12, devido à natureza diferenciada dos objetos. As armas de calibre restrito e ou proibido (termo em desuso) tem maior potencial ofensivo, e por este motivo são tratadas de maneira diferenciada na lei, motivo pelo qual se o agente praticar qualquer dos atos descrito no tipo, estará sempre sujeito ao disposto neste artigo em particular.

Ambos os artigos 14 e 16 tem em comum a sua parte final: “sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Da autorização

A questão da “autorização” é bem simples, em se tratando do cidadão comum – a única possibilidade de um cidadão brasileiro que comprou uma arma para sua defesa pessoal ter “autorização”, é se o Estado concedê-la. Autorização, em Direito Administrativo, é uma das formas com que o Estado permite que uma pessoa, física ou jurídica, pratique um ato ou exerça uma atividade considerada, de maneira geral, contra a lei. Difere portanto de outras modalidades de permissões concedidas pelo Estado. Então, quando lemos “autorização”, automaticamente sabemos que a lei está se referindo a algo proibido.

Precisamos ler o caput do art. 35, para confirmarmos isso: “É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei.

Como a lei foi construída fundamentada nesta proibição, então A COMPRA de armas e munição, só poderia ocorrer sob AUTORIZAÇÃO, a partir da comprovação de efetiva necessidade, nos termos do art. 4, ou seja, em condição absolutamente EXCEPCIONAL.

Para se obter o porte de armas, idem, em condições absolutamente excepcionais um cidadão comum pode requerer a autorização para porte de armas, art. 10.

Mas notem que curioso, o art. 35 exceptuava “as entidades previstas no art. 6o desta Lei”. Ao lermos o caput do art. 6, vemos que lá se declara proibido o porte de armas em todo o território nacional EXCETO para as pessoas listadas em seus incisos.

O art. 6 contém uma lista de pessoas a quem o porte de armas não é proibido, enquanto o art. 35 (revogado), exceptuava estas pessoas da proibição à compra de armas e munições. Então depreende-se que mesmo na condição mais severa, ou seja, dentro da EFETIVA PROIBIÇÃO caso o art. 35, as pessoas listadas no art. 6:

  1. Não estavam proibidas de adquirir armas e munições;

  2. Não estavam proibidas de portar suas armas.

Então, com isto compreende-se que no texto dos artigos 14 e 16, a questão de “autorização” não diz respeito aos listados nos incisos do art. 6, a maioria deles devido às prerrogativas de suas funções, e no que diz respeito aos CACs (Colecionadores, atiradores e caçadores), porque esta autorização já está implícita na concessão dos respectivos CRs.

As outras categorias listadas nos incisos do art. 6 tem a questão das autorizações, caso necessárias, listadas na legislação que regula o exercício de suas funções, ou no Decreto 5.123/04.

Da determinação legal

Quando se fala em “determinação legal”, leia-se LEI FEDERAL.

A primeira lei a ser analisada, é o próprio Estatuto do Desarmamento. É condição primordial, portanto, que se cumpram todas as determinações prescritas na lei em si. As pessoas que tem direito à aquisição e ao porte de armas por lei especial, como por exemplo, membros da Magistratura e do Ministério Público, tem que cumprir, além das determinações do Estatuto do Desarmamento, também o dispostos nas leis especiais que os autorizam a adquirir armas e a portá-las.

Da determinação regulamentar

A Lei 10.826/2003 tem regulamento próprio, que é o Decreto 5.123/04, e que cobre todas as situações que se pretendeu regulamentar naquele momento.

Em alguns casos, e isto é muito brasileiro, a lei regulamenta a própria lei, como no caso de vários incisos e parágrafos adicionados para se explicar o que já consta do texto da lei. Quando isto acontece, é justamente porque o legislador não quis dar espaço ao Executivo, que pode regulamentar leis a fim de dar fiel cumprimento às mesmas.

Mas é sempre triste ver casos como o da Lei 12.993/2014, que inseriu um parágrafo 1o-B no art. 6 do Estatuto do Desarmamento, afirmando que os agentes e guardas prisionais, que pelo disposto no inciso VII não são proibidos de portar armas de fogo, agora podem portar armas de fogo.

Pagamos BILHÕES de reais para o Poder Legislativo nos dizer que alguém que não é proibido de fazer algo, pode fazer aquela coisa.

Da mesma forma corre alguns projetos de lei visando dar porte de arma a atiradores registrados no Exército Brasileiro. Neste caso é pior ainda, porque além do direito já se encontrar na lei, a questão já está devidamente regulamentada nos artigos 30, 31 e 32 do Dec. 5.123/04. Então estes projetos de lei estão querendo regulamentar em lei o que já está regulamentado por decreto.

Temos que então que para a existência dos crimes dos artigos 14 ou 16 é necessário que o agente esteja SEM AUTORIZAÇÃO, e simultaneamente contrariando Lei Federal e o Decreto 5.123/04.

Assim, como o legislador utilizou uma conjunção aditiva e posteriormente uma conjunção adversativa, ele pretendeu que o crime se configurasse APENAS se todos os critérios estiverem presentes.

Assim, por exemplo:

Se o agente estiver com AUTORIZAÇÃO, mas descumprindo a lei ou regulamento, não há crime;

Se o agente estiver sem AUTORIZAÇÃO, mas cumprindo a lei E o regulamento, não há crime;

Se o agente estiver sem AUTORIZAÇÃO, e TAMBÉM descumprindo lei ou regulamento, há crime.

É o caso de um Juiz de Direito, que não depende e portanto não tem autorização, mas porta a sua arma de acordo com o disposto na Lei Orgânica da Magistratura - não há crime possível de porte de arma de fogo para um magistrado, exceto se houver alguma violação ao Decreto 5.123/04.

Da mesma maneira, Atiradores não dependem de autorização para portar suas armas (dependem para ter CR e para ter GTEs), precisam estar apenas de acordo com a lei. No caso dos atiradores, é necessário que também se esteja de acordo com o regulamento, porque no caso existe a lei determina que se cumpra o regulamento, ou seja, portem a GTE de cada arma e ou respectiva munição.

Já no caso de um CAC que estiver com sua arma de caça ou de coleção municiada, haverá o crime porque o CAC não tem autorização, mas ao mesmo tempo está violando o regulamento (art. 32 do Dec. 5.123/04).

Então, para os CACs é fundamental a questão de se saber se a arma está no mapa de atirador (para porte municiado) ou nos mapas de caçador ou colecionador (arma precisa estar desmuniciada e separada da munição).

De qualquer forma, se a pessoa estiver sem autorização de porte (como no caso do magistrado mencionado acima), e estiver descumprindo alguma portaria ou Instrução Normativa do Exército Brasileiro ou da Polícia Federal, não existe crime, porque o TIPO PENAL não nos remete à estas normas infra legais, refere-se restritivamente à lei e ao decreto que a regulamenta. 

Do artigo 15 – Disparo de arma de fogo em local habitado

O crime do art. 15, eu tomo a liberdade de tratá-lo por último e apenas brevemente, por ser diferente: Trata-se do efetivo USO da arma de fogo, este crime se configura mediante o simples ato de se disparar uma arma de fogo. Espera-se que quando o cidadão tiver que utilizar legitimamente sua arma, apesar de no Brasil não existir a presunção legal de inocência em nenhum lugar senão na Constituição Federal (o cidadão é inquirido e processado criminalmente até provar a legítima defesa), espera-se que ao se sentenciar a legítima defesa, também se decrete que o ato do disparo também não se configurou em crime autônomo. Bom senso é importante.

O art. 15, que seria muito importante para se evitar que algum alucinado simplesmente saísse atirando nas ruas apenas porque não tinha rojões, pela sua má redação expõe até mesmo os agentes da lei, no exercício de suas funções, e principalmente qualquer cidadão que precisar se defender mediante o uso de sua arma de fogo – e não esteja nos longínquos sertões brasileiros.

Das GTES do Exército Brasileiro

A GTE é o documento que afere simultaneamente que o CAC nela identificado está com o CR absolutamente em ordem, bem como a documentação da arma nela especificada. A GTE especifica a quantidade e tipo de munição transportada, a região de cobertura (cidade ou percurso entre cidades, Estado da Federação no caso de atleta federado, ou todo o país, no caso de atleta confederado), e o PRAZO de sua validade. Violar qualquer uma das prerrogativas da GTE implica em processo administrativo perante o Exército Brasileiro, com as correspondentes sanções previstas nos diversos regulamentos que regulam as atividades desportivas de tiro.

As guias de tráfego do Exército Brasileiro são emitidas sob a força do contido na Portaria 04 do DLog. Como atualmente são emitidas por meios eletrônicos, são chamadas de GTEs, Guias de Tráfego Eletrônicas. Apesar de emitidas eletronicamente, deve sempre estar com o SELO do Exército Brasileiro, comprovando que a taxa correspondente foi paga.

Ocorre que a referida portaria é anterior à Lei 10.826/03, e ao Dec. 5.123/04, e tem em seu bojo os artigos 40 e 41, que são frontalmente contrários aos mesmos.

Vejamos:

A lei diz que os CACs não figuram entre as pessoas para quem o porte de arma é proibido, art. 6o, Inc. IX, e que o direito de porte será exercido na forma do “regulamento desta lei”, Dec. 5.123/04.

No art. 8, tratando ao Colecionador, Atirador ou Colecionador como “autorizado a portar a arma”. E qualquer intérprete da lei deve sempre atentar à mens legis, aqui bem explicitada.

O Exército Brasileiro tem competência para autorizar os CRs e o “porte de trânsito” de CACs, nos termos do Art. 24. Mas não tem competência para REGULAR o porte de armas de CACs. Vejamos a redação do art. 6, Inc. IX, última parte: “na forma do regulamento desta Lei, observando-se, no que couber, a legislação ambiental”. Então o porte de armas de CACs (sim, este é o nomem iuris correto, nos termos do art. 8), não é regulamentado pelo Exército Brasileiro, a quem cabe REGISTRAR os CACs e autorizar a emissão de GTEs, mas a regulamentação fica para o Decreto 5.123/04.

O Dec. 5.123/04 SEPAROU colecionadores e caçadores dos atiradores, e tem a seguinte estrutura no que diz respeito aos CACs:

art. 30 – Atiradores devem portar suas armas acompanhadas de Guias de Tráfego;

art. 31 – Atiradores em competições INTERNACIONAIS devem, além da Guia de Tráfego, portar suas armas DESMUNICIADAS;

art. 32 – Colecionadores e caçadores devem, além da Guia de Tráfego, portar suas armas DESMUNICIADAS;

Já a Portaria 04 do DLog, até mesmo por ser ANTERIOR à Lei 10.826/03 e ao Decreto 5.123/04, não fez esta separação entre os atiradores, atiradores em competições internacionais, e os colecionadores e caçadores. Ficaram todos contidos dentro dos artigos 39, 40 e 41, ou seja, no que diz respeito ao Exército Brasileiro, não existe diferença entre um atirador ou um colecionador, não existe diferença entre quem dispara milhares de tiros por mês se preparando para uma competição, e uma pessoa que tem uma arma de 200 anos de idade totalmente obsoleta.

Neste ponto, até que o Exército Brasileiro edite novas regras, os artigos 40 e 41 encontram-se TACITAMENTE REVOGADOS pelo art. 30 do Dec. 5.123/04, especificamente em relação aos atiradores.

Mas daí vem, recentemente, a ITA 01/2014 (Instrução Técnico Administrativa), com o Comandante do DFPC normatizando a emissão de guias de tráfego.

Com o devido respeito, é uma peça que além de ser absolutamente ilegal, pois viola leis hierarquicamente superiores, ofende gravemente os direitos dos CACs submissos àquele Comando do Exército Brasileiro. Causa espanto que um General de Divisão, que tenha 115.000 brasileiros sob sua responsabilidade, edite uma instrução que agrave tanto a situação de quem pratica esportes de tiro.

Para se ter uma ideia, além desta ITA continuar violando explicitamente o disposto na lei no que diz respeito à exigir que as armas de atiradores estejam desmuniciadas e separadas da munição, ainda se criou a exigência de que, agora, se necessite de DUAS OU MAIS GUIAS DE TRÂNSITO para a mesma arma. Um atirador que tenha uma guia de trânsito de um ano para treinamento, agora irá precisar DE MAIS UMA, para participar de competições. Obviamente, terá que pagar mais taxas, mais taxas, mais taxas – além da enorme, gigantesca burocracia adicional que isto implicará para o Exército, fazendo com que suas unidades descentralizadas agora tenham que dedicar 10 vezes mais tempo pois, ao invés de se emitir uma única GTE com validade de um ano, agora se emitirá uma com um ano, e tantas quantas necessário para as competições. Eu mesmo terei que emitir aproximadamente 3 guias por semana, mas conheço pessoas que precisarão emitir quase 10 GTEs POR SEMANA!!!!

O art. 8, chega ao absurdo de mencionar que “A GT não é válida como porte de arma de fogo, previsto nos termos da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003”

Com o devido respeito, quem redigiu esta ITA, e quem a assinou, deveria ter pelo menos LIDO A LEI antes de mencioná-la... GTE não é porte de arma, mas é o documento através do qual se afere a regularidade do CAC e da arma. Atirador não precisa de “porte de arma”, só precisa de sua identidade e da GTE.

Na prática, a ITA 01/2014 extinguiu o nosso direito de ter uma GTE nacional com validade de um ano, como qualquer atirador confederado tem, e isto se fez sem respaldo em nenhuma única letra da lei, apenas se seguiu a orientação do plano de governo contido no PNDH-3, que é a de restringir ao máximo a circulação de armas em território nacional.

Como as GTEs estão sendo emitidas de forma contrária à lei, com textos inseridos que são danosos aos direitos constantes na lei e no regulamento, tem ocorrido diversas prisões de CACs com suas documentações absolutamente em ordem. O motivo, na quase totalidade das vezes, pode ser atribuído ao fato de que as Polícias desconhecem os documentos dos CACs, ou simplesmente os desconsiderem como inexistentes no mundo jurídico – há delegados que afirmam que GTE não é documento válido para o porte de armas. Estamos no Brasil, o país uma lei “pega”, outra “não pega”, e ninguém é punido por isto.

Se em uma ponta temos um gigantesco número de brasileiros que decidiu, de forma autônoma e não provocada, se negar a levar suas armas à renovação de registro, na outra ponta temos a categoria que gasta quantias gigantescas de tempo e dinheiro gerando receitas milionárias para o Exército Brasileiro para poder praticar os esportes de tiro, sendo punidos pelo Estado não pela Lei, mas por portarias e instruções administrativas absolutamente ilegais.

CONCLUSÃO

Quando se trata de armas de calibre permitido, os verbos deter, adquirir, receber, ter em depósito, manter sob sua guarda e ocultar configuram-se em sua plenitude em crime do artigo 14 apenas e tão somente se o agente estiver FORA do endereço de seu domicílio OU SUAS DEPENDÊNCIAS, não importando se a arma está ou não registrada. Caso contrário, o único crime possível será o do art. 12, apenas e tão somente se a arma não estiver registrada no nome do agente, onde não há crime possível.

Quando se trata de armas de calibre restrito, o local físico é irrelevante, o crime se configura pela simples constatação de o núcleo do tipo estar cominado com a presença de uma arma de calibre restrito ou proibida, ou em qualquer uma das situações descritas no parágrafo único do art. 16.

Quando se trata de CACs, é sempre necessária a GTE, sendo que ao contrário dos ATIRADORES, os colecionadores e caçadores devem portar suas armas desmuniciadas, e com a munição transportada separada da arma.

E por último: CAC só precisa da GTE e documento de identificação pessoal para transportar sua arma e dar fiel cumprimento aos três requisitos da lei previstos nos artigos 14 e 16: Autorização, determinação legal e determinação regulamentar. Se no corpo da GTE contiver informações contrárias ao disposto na lei, e ou se o CAC estiver portando sua arma de forma que não atenda as disposições do documento, o mesmo não estará cometendo qualquer um dos crimes previstos em lei, podendo no máximo estar sujeito a alguma das sanções administrativas, caso estejam previstas nos regulamentos do Exército Brasileiro.

i Lenza, Pedro – Direito Constitucional Esquematizado, 9a Edição – São Paulo: Método, 2005, pág. 96

ii Kelsen, Hans – Teoria Pura do Direito, São Paulo: Martins Fontes, págs. 14-15

iiihttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3665.htm

iv TJ-SP, Apelação n° 990.09.221650-3, 12a Cam. de Dir. Criminal, Rel. Des. João Morenghi, J. 14/04/2010

Sobre o autor
Arnaldo Adasz

Advogado, Perito em Balística Forense e Legislação Brasileira de Armas de Fogo, Primeiro Presidente e co-fundador da Associação Brasileira de Atiradores Civis, membro do Conselho Consultivo de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército Brasileiro.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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