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A esfera dos cargos públicos na perspectiva comunitarista de Michael Walzer

Agenda 21/07/2014 às 13:10

O modelo para cargos públicos proposto por Walzer, seguindo a perspectiva comunitarista, busca garantir uma igualdade de oportunidades para os indivíduos membros de determinado grupo.

1. Introdução.

O livro “Esferas da Justiça: Uma defesa do pluralismo e da igualdade” de Michael Walzer, um dos principais defensores do comunitarismo no mundo atual, representa importante estudo que propõe uma teoria da justiça voltada para a proteção dos direitos humanos, assim como da valoração do espaço público, da comunidade e das suas particularidades históricas. Essa obra foi escrita por Walzer anos após ter ministrado um curso na Harvard University, no início da década de 1970, em cuja oportunidade foi travado um debate com Robert Nozick sobre “Capitalismo de Socialismo”. Esse último, defensor do liberalismo radical, também registrou suas ideias expostas no referido debate em “Anarquia, Estado e Utopia”, obra de igual importância para os estudos sobre o liberalismo.

Em sua obra, Walzer apresenta várias classes de diferentes bens sociais, cuja distribuição é assunto da justiça, sendo que em cada classe haverá um critério específico (particular) para sua distribuição. Tais classes compõem as diferentes esferas da justiça, quais sejam a afiliação, segurança e bem-estar social, dinheiro e mercadorias, cargos públicos, trabalho árduo, lazer, educação, parentesco e amor, graça divina, reconhecimento e poder político.

Com efeito, o presente estudo pretende expor com detalhes a visão de Walzer sobre uma dessas esferas, a dos cargos públicos, e sua relação com a igualdade simples, igualdade complexa, afiliação e meritocracia. Ao final, buscar-se-á oferecer uma consideração crítica sobre a exposição do referido autor sobre essa esfera.


2. A igualdade simples na esfera dos cargos públicos.

No início deste capítulo, o autor observa que a expressão “cargo” será utilizada na maior parte do texto como sendo “cargo público”, sendo esse o sentido usual de nossa língua. Propõe adiante uma definição mais abrangente em relação às conceituações tradicionais, levando-se em conta a escala abrangente das autoridades constituídas no mundo moderno: “O cargo público é qualquer posto no qual toda comunidade política tem interesse, e escolhe a pessoa que o detém ou regulamenta as normas para sua escolha”. (WALZER, 2003, p. 175).

A nomeação dos cargos deve ser controlada e sua distribuição não é de livre escolha individual ou se presta a servir às conjecturas de pequenos grupos. Os cargos, nesses termos, não poderão ser apropriados, herdados, nem vendidos no mercado pela iniciativa privada. Tais estipulações são importantes, pois esse era o cenário visto no passado. Para Max Weber, nas “sociedades patrimoniais” até mesmo os postos burocráticos estatais tinham conotação de propriedade e de herança (passagem do cargo de pai para filho, sem necessidade de nomeação). O mercado determina o sistema de cargos e aqueles que detêm o seu poder (ou seus respectivos representantes como, por exemplo, os gerentes) são a principal alternativa às autoridades constituídas, mas submetidos a uma regulamentação política no que concerne à distribuição dos postos no mercado.

No contexto histórico, a ideia de cargo já era desenvolvida dentro da Igreja cristã. Os seus chefes defendiam que os postos eclesiásticos não pertenciam a quem os detivesse, como também não poderiam ser negociados, razão pela qual os cargos deveriam ser distribuídos pelas autoridades da Igreja, que atuavam em nome de Deus. Desse modo, o nepotismo e a simonia eram considerados pela Igreja como pecados. A partir dessas reflexões, Walzer afirma que Deus teria sido o primeiro meritocrata.

Daqui surgem as primeiras ideias para a defesa de um funcionalismo público, pois, assim como o serviço a Deus, a comunidade política paulatinamente transformava seu serviço em trabalho realizado por indivíduos qualificados, sem a interferência de famílias poderosas ou da hegemonia política de partidos.

Como mecanismo de distribuição de cargos, o concurso (ou concorrência pública) é visto como o caminho ideal para garantia de valores como honestidade e eficiência (critério de bom governo), mas, sobretudo, realizar a justiça e a igualdade de oportunidades a todos. Para tanto, os critérios justos e métodos para contratação encontram-se definidos em leis e, caso seja necessário, serão exigidos em juízo programas de ação afirmativa na transformação de empregos em cargos. Há aqui uma exigência de atuação concreta do Estado para definição dos critérios para regulamentação dos métodos de seleção, recrutamento, aplicação dos exames, formação e diplomação dos candidatos, medidas essas que visam garantir a todos os cidadãos oportunidades iguais de atingir os padrões universais.

Nesse contexto, a igualdade simples propõe a substituição da antiga divisão do trabalho pelo funcionalismo púbico universal, onde todos os empregos se tornariam realmente cargos, compreendendo um “sistema que contenha todos os empregos cuja ocupação possa constituir vantagem econômica ou social, e ao qual todos os cidadãos tenham acesso igualitário”. (WALZER, 2003, p. 179). Contudo, como reflexo deste modelo, poderia haver uma hierarquia ampla e complexa com mistura de virtudes intelectuais, razão pela qual Walzer apresenta outro tipo de igualdade simples que sustenta a fraca importância da transformação de cargos em empregos, tornando o cidadão o detentor do cargo. O próprio exercício do cargo representaria um monopólio injustificável. Trata-se do radicalismo populista, visto como antieclesiástico, antiprofissional e antiintelectual.

Em oposição a essas duas formas de igualdade simples, Walzer defende que o funcionalismo público universal deverá impor a supremacia do poder estatal sobre os interesses privados, mas sem deixar de considerar a preeminência do talento ou da educação, assim como das demais qualidades que forem necessárias para o exercício de determinado cargo. Admite-se em alguns casos o rodízio nos cargos públicos, todavia, o Estado irá impor limites às suas prerrogativas, pois não se pode admitir o monopólio dos qualificados.


3. Meritocracia.

O autor ressalta a importância dos processos de seleção e inicia suas reflexões sobre a meritocracia, para quem esta seria a “argumentação fundamental em qualquer comunidade política na qual prevaleça a ideia do cargo” (WALZER, 2013, p. 184), segundo a qual as pessoas mais qualificadas deveriam preencher os cargos. O mérito (no sentido de talento ou merecimento) decorre dessa qualificação, que será determinante para a ocupação dos postos nos quais as qualidades do candidato vão se encaixar. Todavia, há também aqueles cargos onde há apenas uma exigência de qualificação mínima. Nesses casos, o autor afirma que talvez fosse justo distribuir os cargos pelo método do “primeiro a chegar” ou “por sorteio”. Isso porque, para tais casos, o mérito seria um qualificativo demasiado forte para gerar essa determinação entre o sujeito que detém o cargo e o lugar onde ele está (ou deveria estar).

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Mais adiante, Walzer entende ser importante distinguirmos o mérito da qualificação. O mérito se apresenta como um tipo especial de merecimento, sendo que o título do candidato é precedente e define a seleção. Nesse caso, o exame é objetivo e leva em conta somente o passado. Já a qualificação parte de uma ideia mais abrangente, cabendo às comissões de seleção a análise tanto do passado como do futuro do candidato, sobretudo com relação ao seu desempenho, estabelecendo também certas preferências quanto ao modo de preenchimento do cargo.

O autor toma como exemplo a classe médica. O título de “doutor” pertencerá àquele indivíduo que cumprir certos requisitos objetivos, tais como estudar seriamente, trabalhar com os elementos materiais necessários e ser aprovado em todas as avaliações. Logo, receberá o título de forma justa. Mas não seria injusto negar a esse mesmo indivíduo um estágio ou residência em determinado hospital, ainda que fosse o aluno com as maiores notas da universidade. A comissão de seleção não estará vinculada a este critério, mas, sim, partir de previsões acerca do que ele ainda deverá realizar no hospital. Com isso, o título não garantirá ao indivíduo o direito a uma vaga, mas será mera qualificação que o autoriza a concorrer a tal vaga. Portanto, conclui que os cargos não podem ser merecidos ou considerados como “prêmios”, como pensam os defensores da meritocracia.

3.1. O sistema chinês de exames.

Para Walzer, esse método serviria como exemplo que se aproximaria ao modelo de funcionalismo público universal, o qual propõe um exame universal para seleção.

A China, por cerca de treze séculos, fazia recrutamento por meio de um complexo sistema de exames. No pós-feudalismo, os cargos eram vistos como importante fonte de prestígio no contexto social, sendo que o poder decorrente do dinheiro não tinha o condão de comprar cargos, embora fosse possível durante todos esses séculos. O status dos indivíduos era associado às notas altas obtidas nos exames. Os exames tinham por finalidade acabar com a aristocracia hereditária e, ao mesmo tempo, buscar talentos para o funcionalismo público, mas, para que isso fosse possível, o governo se empenhava e proporcionar a igualdade de oportunidades, inclusive com o fornecimento de escolas públicas e bolsas de estudo, além de combater a cola ou qualquer tipo de favorecimentos[1]. Com o passar dos anos, foram adotados nos exames alguns métodos como “a lista dos sessenta méritos”, “a capacidade de pensar à maneira de Confúcio”, “a rotinização e eliminação de questões especulativas”. Era tendência crescente a avaliação da capacidade dos candidatos por meio dos testes, ocasionando na substituição da vida intelectual pela vida de exames.

Portanto, “todas essas provas são de caráter convencional, e é só dentro da convenção que se pode dizer que os candidatos aprovados merecem seus diplomas e que o subsequente poder exercido pelos detentores dos diplomas constitui uma meritocracia.” (WALZER, 2003, p. 192).


4. O significado de qualificação.

Para Walzer, não existe meritocracia no exato sentido do termo. Sustenta que não haveria como evitar escolhas particulares a partir de possíveis méritos, sobretudo porque seria bastante difícil realizar uma seleção impessoal que tomasse por base determinada classificação objetiva de qualidades. Por tal razão, o autor propõe que as comissões devem garantir a ponderação igualitária entre os candidatos classificados, levando-se em conta tão somente as suas qualidades. Com isso, sustenta que a esfera do cargo deve ser separada da esfera da política.

Essa ponderação igualitária parte do pressuposto segundo o qual, quaisquer que sejam as condições de competição entre os indivíduos, as qualidades de cada um deles deverão ser valorizadas. Todavia, há uma preocupação não apenas com as qualidades dos candidatos, mas também com as qualificações, compreendidas como as qualidades que se exigem para a ocupação de determinado cargo ou que são inerentes ao seu exercício. Com isso, “as comissões de seleção têm o compromisso de procurar tais qualidades – isto é, têm o compromisso de procurar candidatos qualificados, não só por justiça aos candidatos, mas também por consideração por todas as pessoas que dependem do serviço de funcionários qualificados.” (WALZER, 2003, p. 198).

Com essas considerações, o autor demonstra que sua preocupação é com o melhor desempenho possível no exercício do cargo, e não no seu exame.

4.1. Qual é o problema do nepotismo?

Conforme dito no início desse capítulo, embora tenha sido um costume de certos papas e bispos, a prática do nepotismo era considerada pela Igreja como ato pecaminoso. Para Walzer, todavia, a afiliação não deve ser desprezada, por entender que em certos casos pode haver a necessidade de escolha, por parte de autoridades, de pessoas próximas (parentes, amigos ou pessoas provenientes departido aliado) com as quais possam confiar e lhes atribuir importantes cargos. Para o autor, os laços de sangue e a confiança são qualificações importantes para o exercício de cargos políticos, ressaltando que tal permissividade deve sofrer limitações quanto à sua extensão.

Outra questão seria a possibilidade de ocorrência de nepotismo coletivo nos casos de grupos raciais, étnicos e religiosos, dentro dos quais a escolha dos detentores de cargos é feita internamente a partir dos seus próprios membros. Para certos cargos, a escolha de pessoas do mesmo grupo garantiria maior eficiência no seu desempenho e até mesmo por ser uma questão de segurança física, em casos de polícia.

Mas Walzer ressalta que uma visão ampliada para além dessas questões que envolvem o nepotismo (pressuposto de confiança ou amizade) poderia gerar importante conquista política, além de proporcionar o acesso (à candidatura) a todos os cidadãos.


5. A reserva de cargos.

Embora esteja claro que os cargos são reservados aos membros da comunidade política, certos cargos acabam sendo exercidos de forma desproporcional por membros de algum grupo específico, situação essa que, em sendo exigido um padrão de distribuição das cotas ou cargos, far-se-á necessário discutir pelas vias legislativa e judicial, objetivando a definição de um padrão proporcional (justo).

O importante é que a forma de distribuição dos cargos seja intensamente reiterada no âmbito dos outros grupos, no sentido de evitar qualquer discriminação de certos candidatos em razão da sua afiliação. Todavia, considerando a complexidade dessa questão, o autor lembra que a “teoria da justiça como reiteração” encontraria problemas na população dos Estados Unidos, com suas diferenças étnico-raciais, razão pela qual propõe que esse país devesse ser uma federação de grupos, ao invés de uma comunidade de cidadãos. Isso porque “o que está em jogo, nesta tese, não é consideração igual para indivíduos, mas a representação igualitária para raças e religiões: integridade comunitária, amor-próprio dos membros na qualidade de membros”. Portanto, “o princípio da ponderação igualitária só se aplicaria, então, dentro dos grupos confederados. A igualdade é sempre relativa; exige que comparemos o tratamento de um indivíduo a um conjunto de outros, e não a todos os outros. Sempre é possível modificar o sistema distributivo simplesmente retraçando seus limites.” (WALZER, 2003, p. 204-205).

5.1. O caso dos negros norte-americanos.

Os negros norte-americanos, durante uma longa história, vêm sofrendo com discriminação de ordem econômica e educacional. Esse panorama, para Walzer, reflete o baixo nível de qualificação dos candidatos negros e, proporcionalmente, no número detentores de cargos na sociedade norte-americana.

Para o autor, seria possível remediar esse problema de duas formas: (1) O estabelecimento de políticas e regras igualitárias de seleção e recrutamento para cargos ou empregos; (2) Um tratamento que julga ser “mais radical e de longo alcance” consistente em aplicar, temporariamente, certo número (fixo) de cargos para os negros[2], mecanismo esse que poderia trazer maior aceitação por parte da cultura racista norte-americana a partir de uma interação reiterada entre os indivíduos. (WALZER, 2003, p. 206-207).

Embora a reserva de cargos seja uma medida polêmica e, de certo modo, paliativa, o autor afirma que não haveria ameaça para as hierarquias e estruturas de grupos. Seria, portanto, uma medida alternativa na qual, mesmo violando alguns direitos individuais, teria a força de exigir nova distribuição de riquezas entre os indivíduos (negros e brancos).


6. O profissionalismo e a insolência dos cargos.

Para Walzer, a distribuição dos cargos traz consigo algo subjacente que os tornam ainda mais importantes: “renome e status, poder e prerrogativas, riqueza e conforto”, razão pela qual formula a seguinte questão: “O que vem depois da qualificação e da seleção?” (2003, p. 211).

O cargo não é apenas uma função social, mas também uma carreira pessoal. Por isso, o exercício do cargo traz ao seu detentor quatro recompensas em sua carreira: (1) O prazer em razão do seu desempenho nas atividades especializadas que são desenvolvidas; (2) Altos salários e honorários, ou seja, a renda auferida; (3) O status inerente ao cargo; e, finalmente, (4) um lugar na hierarquia que estabelece relacionamentos de poder. Todos esses fatores são faces do profissionalismo.

Para o autor, a insolência dos cargos é justamente essa visão do cargo como algo que gera predominância, sobretudo porque as atividades desempenhadas não podem ser adaptadas para aumentar as recompensas acima referidas, em detrimento da comunidade. Assim, os detentores dos cargos servem a finalidades comunitárias e estão sujeitos ao controle dos seus membros.

Esse cenário de controle seria viabilizado por meio de uma educação pública, por meio da qual seria garantida uma preparação dos cidadãos para tal fiscalização, tornando-os mais conscientes dos seus direitos e os cargos menos misteriosos. Para o autor, “é necessário agir de outras maneiras para preencher as lacunas da distribuição de conhecimento e poder: opor-se à segregação de especialidades e especialistas, impor modelos mais cooperativos de trabalho e complementar a auto-regulamentação dos profissionais com algum tipo de supervisão comunitária (comitês de análise crítica, por exemplo).” (WALZER, 2003, p.217). Em conclusão, sem a sujeição dos detentores de cargos aos cidadãos, o ideal de uma perspectiva comunitária daria lugar para a tirania do poder.


7. A contenção de cargo.

Walzer sustenta que a expansão dos cargos decorre do “controle político de atividades e empregos essenciais para o bem-estar da comunidade” e de um pleito de “igualdade justa de oportunidades”, sendo que ambos os motivos devem estar vinculados ao funcionalismo público universal. Trata-se de uma política democrática que se sobrepõe aos critérios particulares em relação à questão do emprego.

Para o autor, nem todos os empregos necessariamente devem se transformar em cargos, embora esteja claro em sua teoria que “os cargos pertencem às pessoas que são atendidas por eles”, mas há casos em que os empregos são pertencentes a certos grupos, prevalecendo sua própria política, e não a do Estado. Alguns exemplos serão abordados nos tópicos seguintes. (2003, p. 218-219).

7.1. O mundo da pequena burguesia.

Walzer cita como exemplo o caso dos pequenos empresários norte-americanos (ou, nas palavras do próprio autor, o setor “pequeno-burguês”), dentro do qual são estabelecidos seus próprios critérios de emprego à margem das leis de ação afirmativa e de métodos justos para a seleção. Seria, portanto, um mundo personalista onde a troca de favores e a escolha de parentes ou amigos para ocupar vagas (nepotismo) são vistas como prerrogativa do setor.

Propõe o autor que, em razão dessa distribuição injusta de empregos, seria possível partir para a eliminação de todo o setor ou lançá-lo na marginalidade do sistema legal (nos moldes dos países socialistas) em nome da igualdade.

7.2. Controle dos trabalhadores.

Este tópico parte de uma ideia (conjectura) onde as empresas e fábricas norte-americanas seriam administradas democraticamente[3], como, por exemplo, uma comuna de fábrica. A partir dessa hipótese, o autor questiona quais seriam os métodos de seleção apropriados. Pergunta, ainda, se o gerente (de pessoal) ou a comissão responsável pelo recrutamento, eleitos democraticamente, deveriam atuar em nome do ideal de igualdade justa de oportunidades.

Walzer afirma que, num processo de admissão, a qualificação em sentido estrito (simples capacidade de aprender e executar o serviço) seria o principal requisito, embora os responsáveis pelo recrutamento tenham liberdade para estabelecer critérios adicionais para o processo de admissão, acolhendo, inclusive, a possibilidade (ainda que restrita) para contratação dentro de um contexto de rede (parentes, amigos, membros de certo grupo etc.), mas desde que esteja restrita dentro de sua própria esfera[4].

7.3. Clientelismo.

Não obstante o sorteio seja um método possível de distribuição de cargos que não exijam grandes habilidades do candidato, o sistema de clientelismo norte-americano (distribuição de cargos pelas autoridades eleitas) parece ser legítimo para Walzer, desde que não haja também a exigência de muito tempo de estudo pelos candidatos ou de relevantes qualificações, salvo a experiência com atividade política, necessária em alguns cargos mais altos.

Em defesa do clientelismo, o autor afirma que esse sistema gera “lealdade, compromisso e participação, e pode muito bem ser característica necessária de qualquer democracia genuinamente localista ou descentralizada”. (WALZER, 2003, p.222). Um governo local, por exemplo, terá melhor funcionamento se privilegiar a amizade e a troca de favores.

Portanto, apesar de não negar a importância da burocracia impessoal e politicamente neutra, Walzer ressalta que a igualdade de oportunidades é um modelo adotado na distribuição de alguns empregos vinculados a sistemas burocráticos, centralizados e profissionalizados, nos quais se encontram subjacentes o controle comunitário e o ideal de justiça. Todavia, ressalta que há empregos situados fora de tais sistemas, controlados por pessoas ou grupos que não estão vinculados à justa distribuição ou exigência de prévia qualificação. Nesse caso, há valorização dos“relacionamentos humanos”. Trata-se, pois, da igualdade complexa na esfera dos cargos, onde se “exige abertura da carreira para os talentos, mas estabelece limites para as prerrogativas dos talentosos”, reconhecendo “a autonomia das outras esferas, onde outras formas de concorrência e cooperação, outras formas de elevação, honra e serviços prevalecem de maneira legítima.” (2003, p.223-224).


8. Considerações finais.

O modelo para cargos públicos proposto por Walzer, seguindo a perspectiva comunitarista, busca garantir uma igualdade de oportunidades para os indivíduos membros de determinado grupo. Todavia, há posicionamentos desse autor em relação a possíveis exceções a essa regra que merecem maior estudo e debate, como, por exemplo, o nepotismo, a respeito do qual os laços de sangue e confiança seriam importantes atributos para o exercício de certos cargos. Nessas linhas, a afiliação não poderia ser desprezada, já que em alguns casos a escolha de pessoas próximas (parentes, amigos ou pessoas provenientes de partido aliado) seria importante para o preenchimento de cargos relevantes.

O mesmo se pode observar quanto à defesa do clientelismo, sistema esse que suscitaria lealdade, compromisso e participação em um governo local, cujo funcionamento seria mais eficiente a partir da amizade e da troca de favores. O clientelismo configuraria como uma característica necessária a qualquer democracia localista ou descentralizada.

Embora tenha ressaltado que o nepotismo ou clientelismo devam sofrer limitações quanto à sua extensão, Walzer parte do pressuposto de sua admissibilidade o que, em tempos atuais, não guarda nenhuma consonância com uma política democrática e igualitária. Trata-se de questão bastante complexa, pois Walzer não apresenta em sua obra a forma como esses favorecimentos seriam controlados ou fiscalizados.

O nepotismo ou o clientelismo sempre pressupõem (1) favorecimento de determinado indivíduo ou grupo e (2) a exclusão dos demais. Portanto, embora sua proposta tenha por objetivo valorizar as peculiaridades do local ou do momento, a via eleita pode ter um efeito contrário ao propósito comunitarista.

Outra questão que suscita polêmica se refere às medidas alternativas propostas por Walzer em razão do racismo relatado no “caso dos negros norte-americanos”. Uma das propostas do autor para remediar este problema consistiria na imposição de certo número de cargos para os negros, cujo objetivo seria propiciar uma “interação reiterada” com as demais pessoas e fortalecer essa cultura. Trata-se de política de reserva de cargos que, embora possa gerar violação aos direitos individuais, teria força de exigir nova distribuição de riquezas entre todos os indivíduos.

A princípio, tal proposta não parece ser uma boa alternativa e poderia expor os indivíduos, tanto negros quanto brancos, a situações injustas e violadoras dos seus direitos individuais, sendo preferível a outra proposta para solução desse problema, que bem reflete o ideal comunitarista, ou seja, a realização de políticas e adoção de regras igualitárias para seleção e recrutamento para cargos ou empregos, sem qualquer distinção entre os cidadãos.


BIBLIOGRAFIA

WALZER, Michael. Esferas da Justiça. Uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


Notas

[1] Walzer lembra que vários foram os casos de condenação de examinadores à morte pelo governo Chinês, em razão desfavorecimento de parentes em exames de seleção. Nota-se que a prática do nepotismo era fortemente rejeitada com esse “castigo”, algo que jamais havia sido visto no Ocidente. (2003, p. 190).

[2] Para Walzer, trata-se da “reserva de cargos”, ou, no contexto brasileiro, da chamada “política de cotas”.

[3] Sobre a gestão exercida pelos trabalhadores, Walzer fará abordagem específica no capítulo 12 de sua obra.

[4] A título de exemplo, Walzer observa que em determinada época ou em determinado local, uma fábrica se mostraria mais bem sucedida sendo administrada por italianos. (2003, p.221).

Sobre o autor
Francisco Rabelo Dourado de Andrade

Advogado. Pós-Graduado em Direito Público pela PUC/Minas. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho/RJ. Mestrando em Direito Processual pela PUC/Minas. Sócio do escritório Dourado, Oliveira e Neder Advogados Associados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Francisco Rabelo Dourado. A esfera dos cargos públicos na perspectiva comunitarista de Michael Walzer. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4037, 21 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30337. Acesso em: 22 nov. 2024.

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