3 A FAZENDA PÚBLICA: BREVES CONSIDERAÇÕES
A aplicação da tutela antecipada, in retro examinada, contra a Fazenda Pública, é assunto ainda discutido por diversos doutrinadores em razão da interpretação das normas que regulam esta última.
Por tal razão, antes de nos aprofundarmos no tema principal deste estudo científico, indispensável se faz abordar, ainda que brevemente, os aspectos basilares e normativos que envolvem referido ente público, o que, certamente, possibilitará melhor compreensão da matéria em foco.
3.1 Conceito e abrangência
É sabido que, tradicionalmente, a expressão Fazenda Pública guarda relação com a área da administração pública que trata da gestão das finanças e da fixação/implementação de políticas econômicas, representando, portanto, o aspecto financeiro de entes públicos.
Como forma de lhe conferir um sentido mais amplo, passou-se, entretanto, a empregar a denominação em comento como sinônimo de Estado em juízo, designando-se, desse modo, toda e qualquer pessoa jurídica de direito público que atuasse em ações judiciais, ainda que a demanda não envolvesse matéria fiscal ou financeira.
Irrepreensível é, pois, a colocação de Meirelles (2001, p. 617), para quem “a administração pública, quando ingressa em juízo por qualquer de suas entidades estatais, por suas autarquias, por suas fundações públicas ou por seus órgãos que tenham capacidade processual, recebe a designação tradicional de Fazenda Pública, porque seu erário é que suporta os encargos patrimoniais da demanda”.
Destarte, tem-se como incontroverso que integram o conceito de Fazenda Pública tão somente a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal e suas respectivas autarquias e fundações públicas.
Frise-se que, nesse rol, encontram-se ainda inseridas as agências executivas e reguladoras, uma vez que ostentam o matiz de autarquias especiais, bem como as associações públicas, estas últimas nos termos do art. 41, inciso IV, do Código Civil (BRASIL, 2002, não paginado).
Restam, portanto, excluídas as empresas públicas e as sociedades de economia mista, as quais, como se sabe, sujeitam-se ao regime geral das pessoas jurídicas de direito privado.
Feita essa conceituação introdutória, mister se faz consignar, entretanto, a seguinte lição de Cunha (2011, p. 34), para quem a Fazenda Pública é mais que um mero aglomerado de pessoas jurídicas:
Com efeito, a Fazenda Pública revela-se como fautriz do interesse público, devendo atender à finalidade da lei de consecução do bem comum, a fim de alcançar as metas de manter a boa convivência dos indivíduos que compõem a sociedade. Não que a Fazenda Pública seja titular do interesse público, mas se apresenta como o ente destinado a preservá-lo. Diferentemente das pessoas jurídicas de direito privado, a Fazenda Pública não consiste num mero aglomerado de pessoas, com personalidade jurídica própria; é algo mais do que isso, tendo a difícil incumbência de bem administrar a coisa pública.
Com razão referido autor.
Inclusive, é exatamente por conta dessa função de tutelar o interesse público, que a Fazenda Pública ostenta certas prerrogativas processuais que a diferencia das demais pessoas físicas e/ou jurídicas de direito privado.
Analisemos essa questão mais a fundo.
3.2 As prerrogativas processuais conferidas à Fazenda Pública e seu fundamento
A título de exemplo, pode-se citar como prerrogativas conferidas à Fazenda Pública: (I) juízo privativo; (II) prazo em dobro para recorrer e quádruplo para contestar; (III) dispensa do pagamento antecipado das despesas processuais; (IV) dispensa do preparo nos recursos; (V) dispensa do depósito na ação rescisória; (VI) não incidência dos efeitos da revelia; (VII) impenhorabilidade de bens; (VIII) reexame necessário ou duplo grau de jurisdição obrigatório nas sentenças proferidas em seu prejuízo; e (IX) regime próprio de cumprimento das decisões proferidas contra si em caráter provisório.
Dentre as acima elencadas, somente as duas últimas, porém, guardam relevância para este trabalho, uma vez que corriqueiramente são apontadas como os óbices ao deferimento da tutela antecipada em face da Fazenda Pública.
Como suas análises, entretanto, estão reservadas para o último capítulo deste estudo científico, resta-nos, agora, apenas examinar o fundamento no qual se baseiam as previsões legais que instituem essas, e todas as demais prerrogativas retro citadas, em favor do ente público.
Nessa esteira, observa-se que, muito embora alguns poucos doutrinadores, com fulcro em suposta violação ao princípio da isonomia, ainda se insurjam contra esse tratamento processual diferenciado, decorrente do estabelecimento de prerrogativas em benefício da Fazenda Pública[1], majoritariamente tem se defendido a constitucionalidade das previsões legais correspondentes, à vista do princípio da supremacia do interesse público, sendo este o principal fundamento daquelas.
Compartilhando esse entendimento, posiciona-se Cunha (2011, p. 35-38):
Exatamente por atuar no processo em virtude da existência de interesse público, consulta ao próprio interesse público viabilizar o exercício dessa sua atividade no processo da melhor e mais ampla maneira possível, evitando-se condenações injustificáveis para o erário e, de resto, para toda a coletividade que seria beneficiada com serviços públicos custeados com tais recursos.
Para que a Fazenda Pública possa, contudo, atuar da melhor e mais ampla maneira possível, é preciso que se lhe confiram condições necessárias e suficientes para tanto. Dentre as condições oferecidas, avultam as prerrogativas processuais, identificadas, por alguns, como privilégios. Não se trata, a bem da verdade, de privilégios. Estes – os privilégios – consistem em vantagens sem fundamento, criando-se um a discriminação, com situações de desvantagens. As “vantagens” processuais conferidas à Fazenda Pública revestem o matiz de prerrogativas, eis que contêm fundamento razoável, atendendo, efetivamente, ao princípio da igualdade, no sentido aristotélico de tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual.
Ora, a Fazenda Pública, que é representada em juízo por seus procuradores, não reúne as mesmas condições que um particular para defender seus interesses em juízo.
[...]
[...] Sendo a Fazenda Pública desigual frente ao particular, somente estará atendido o princípio da igualdade se lhe for conferido tratamento desigual.
Considerando que o princípio da isonomia decorre dessa ideia de tratar igualmente os desiguais, tratando-se os desiguais de maneira desigual, existem várias regras, no Código de Processo Civil, que contempla, tratamento desigual, e nem por isso se está a afrontar o princípio da isonomia. Nesses casos, atende-se ao princípio da isonomia.
Tudo isso, aliado ao fato de a Fazenda Pública ser promotora do interesse público, justifica a manutenção de prerrogativas processuais, e não privilégios, instituídas em favor das pessoas jurídicas de direito público.
Irrepreensível é o pensamento supra.
De certo, não há que se falar em violação ao princípio da isonomia, pois o tratamento diferenciado, conferido à Fazenda Pública em juízo, tem por fim, justamente, estabelecer o equilíbrio entre as partes envolvidas, em atendimento àquele mesmo princípio constitucional.
Note-se que não se trata de privilégio, conforme o autor supra destacou.
Em sintonia se apresenta a análise de Grinover (apud ROSATI, 2002, não paginado):
No direito atual, prerrogativas e privilégios só poderia admitir-se por exceção, em razão da diversidade das posições subjetivas assumidas no ordenamento jurídico. Exceções que são ao regime comum, as prerrogativas e os privilégios se distinguem, porquanto estes são instituídos visando a proteção de interesses pessoais, e aquelas decorrem do interesse público. Resulta daí ser a prerrogativa irrenunciável.
Analisando o beneficio do prazo, como prerrogativa concedida à Fazenda e ao Ministério Público, vê-se que é ela instituída exatamente com base no interesse publico ou social, justificando-se em razão da natureza, organização e fins do Estado moderno. Os prazos fixados à Fazenda Pública e ao órgão do Ministério Público são mais amplos, justamente em obediência ao princípio da igualdade, real e proporcional, que impõe tratamento desigual aos desiguais, para nivela-los na igualdade substancial.
Todavia, revela-se inegável que, se por um lado o Estado necessita de prerrogativas, de outro os particulares também carecem de meios céleres e eficazes para resguardarem seus direitos individuais em face daquele, sobretudo à vista da morosidade processual que hodiernamente assola a justiça brasileira.
Aqui, então, ganha realce a problemática envolvendo o instituto da tutela antecipada.
Nesse ponto, dispensa comentários a seguinte colocação de Manente (2006, p. 155): “O problema então surge quando se trata de compatibilizar as prerrogativas da Fazenda Pública com o instituto da tutela antecipada, que prestigia o provável direito do autor, que possui urgência em desfrutá-lo, com a impossibilidade de execução imediata em face da necessidade de reexame necessário da sentença desfavorável aos seus interesses”.
Conforme já alinhado acima, o reexame necessário, entretanto, não é o único possível óbice à concessão da tutela antecipada nos processos em que figura como ré a Fazenda Pública.
Analisemos agora, com mais precisão, a questão em estudo.
4 A TUTELA ANTECIPADA EM FACE DA FAZENDA PÚBLICA
Induvidosamente, a participação cada vez mais constante da Fazenda Pública em processos judiciais sobreleva a necessidade de proteção do particular, que, não apenas pode vir a sofrer com a rotineira morosidade da marcha processual, como também com a burocracia inerente à intervenção judicial daquela, que, inclusive, dentre outras prerrogativas, dispõe, como já dito, de prazo em dobro para recorrer e quádruplo para contestar.
Essa e outras circunstâncias, como por exemplo, o volume de trabalho que cerca os advogados públicos e demais procuradores, impede, evidentemente, um desenvolvimento mais célere de ações judiciais que possuam o Erário como réu.
Assim é que, em determinadas situações, há de se convir não ser suficiente a tutela reparatória, posterior à lesão do direito, que, inclusive, só se mostraria eficaz em subsequente processo de execução.
Ganha realce, destarte, a antecipação genérica dos efeitos da tutela, cuja finalidade é, claramente, contornar os resultados funestos da morosidade processual, em benefício do particular.
Nesse ponto, merece destaque a ponderação de Pereira (2006, p. 191), que, em meio a defesa do cabimento da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, faz interessante consideração sobre o tão falado interesse público:
A tutela de urgência tenta contornar os efeitos nefastos do tempo; suprimi-la simboliza a promessa de atividade jurisdicional congenitamente defeituosa. O Estado merece ver seus direitos protegidos, mas os cidadãos não têm menores prerrogativas. Os particulares devem seguir comandos legislativos e se submetem às deliberações jurisdicionais; não há por que imunizar o Estado em relação a esses mesmos vetores.
A vaga invocação do interesse público não socorre a restrição às tutelas de urgência; bem diversamente, anima ainda mais a necessidade de igualar, em termo de acesso jurisdicional, o Estado e seus componentes.
Entendimentos como este, entretanto, foram constantemente rechaçados por corrente, ora minoritária, que sustentava o não cabimento da medida em foco.
4.1 Os principais óbices que impediriam a concessão da tutela antecipada
Os principais argumentos utilizados em defesa da impossibilidade de deferimento da tutela antecipada em face da Fazenda Pública são, basicamente, os seguintes: (I) a Lei n.º 8.437/1992 ao vedar, em seu artigo 1º, §3º, o cabimento das cautelares satisfativas contra a Fazenda Pública estaria vedando a própria tutela antecipada (BRASIL, 1992, não paginado), obstando, assim, a sua concessão; (II) o regime à que se submeteria a Fazenda Pública para o pagamento de quantia certa em dinheiro, pela via dos precatórios, instituído pelo artigo 100 da Constituição Federal (BRASIL, 1988, não paginado), seria um óbice à concessão da tutela antecipada contra o Erário, pois impediria a satisfação imediata de obrigações pecuniárias; (III) a necessidade do reexame necessário, previsto pelo artigo 475 do Código de Processo Civil (BRASIL, 1973, não paginado), à vista do duplo grau de jurisdição obrigatório, seria um obstáculo à admissibilidade da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, pois, se a sentença final apenas poderia produzir seus efeitos depois de confirmada pelo juízo a quo, uma decisão antecipatória, de cunho meramente interlocutório, jamais poderia produzir efeitos imediatos.
Analisemos, individualmente, cada um dos argumentos supra.
4.1.1 A Lei n.º 8.437/1992
Dispõe o artigo 1º, caput, da Lei n.º 8.437/1992 (BRASIL, 1992, não paginado), que:
Art. 1° Não será cabível medida liminar contra atos do Poder Público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança, em virtude de vedação legal.
Como bem se pode notar, o dispositivo legal em comento veda, peremptoriamente, a concessão de liminares em medidas cautelares que esgotem, ainda que parcialmente, o objeto da ação.
Em face de tal circunstância, é que alguns doutrinadores, como dito, passaram a esposar a tese de que a norma supra, ao vedar o cabimento de cautelares satisfativas contra a Fazenda Pública, estaria, por consequência, obstando a concessão da própria tutela antecipada.
Todavia, considerando que o diploma legal supracitado, como sua própria ementa indica, foi concebido apenas para disciplinar a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público, não há como se estender suas previsões e, sobretudo, vedações a, instituto que sequer foi por ele regulado expressamente.
Nesse sentido, vale recordar, inclusive, que, com o advento da Lei n.º 9.494/1997, que veio a disciplinar, como se observará, pontos específicos pertinentes a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, o entendimento aqui fustigado perdeu toda a sua razão de ser, já que inconcebível a aplicação, por extensão, dos preceitos alinhados pela Lei n.º 8.437/1992, em detrimento da legislação específica.
Assim pondera Pereira (2006, p. 197), para quem a Lei n.º 8.437/1992 “não tem pertinência quanto à antecipação da tutela (art. 273 e 461), pois quanto a esta existe a Lei n.º 9.494/1997”.
De mais a mais, restando clara a distinção entre os institutos da cautelar, da medida liminar e da tutela antecipada – ponto, inclusive, já abordado anteriormente neste estudo científico –, é de se convir pela total inexistência do óbice em comento.
Valiosa, nesse ponto, é a lição de Theodoro Junior (2007, p. 562), que dispensa outros comentários:
Uma vez que a antecipação de tutela não se confunde com a medida cautelar, tem-se entendido que o particular, observados os requisitos do art. 273 do CPC, tem direito de obter, provisoriamente, os efeitos que somente advinham da final sentença de mérito, mesmo em face da Fazenda Pública. A Lei n.º 8.437/92, ao vedar medida liminar em ação cautelar que esgote, no todo ou em parte, o objeto do processo movido contra o Poder Público, não representaria empecilho à antecipação da tutela, justamente por não se tratar de mera medida cautelar, mas de instituto novo, não alcançado pela restrição da questionada lei de proteção processual à Fazenda Pública.
Não havendo no regime do art. 273 do CPC nada que exclua o Poder Público de sua incidência, correta a conclusão que defende sujeição deste à norma contida naquele dispositivo legal [...].
4.1.2 O regime dos precatórios
Estatui o artigo 100, caput, da Constituição Federal (BRASIL, 1998, não paginado) que:
Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
Diante da necessidade de se obedecer à norma em foco, passou-se a defender que esta última constituiria óbice à concessão da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, pois impediria a satisfação imediata de obrigações pecuniárias.
Não obstante o raciocínio empregado parece, a priori, coerente, algumas ponderações necessitam ser feitas sobre o tema.
Primeiramente, convém observar que essa questão envolvendo a ordem de apresentação de precatórios, guarda relação apenas com demandas condenatórias a uma prestação de pagar quantia certa, não chegando a influenciar, portanto, naquelas de cunho meramente declaratório e constitutivo, cujos efeitos, sob esse prisma, poderiam ser antecipados, sem qualquer embargo.
Além disso, é inequívoco que existem dívidas pecuniárias do Erário que não se submetem ao regime dos precatórios, a saber: (I) dívidas de pequeno valor; (II) créditos oriundos de sentença proferidas em sede de mandado de segurança, relacionados a parcelas vencidas após o ajuizamento da ação; e (III) dívidas contratuais ou já previstas em orçamento[2].
Em segundo lugar, muito embora nos demais casos seja, a princípio, inviável a satisfação imediata de obrigações pecuniárias, por conta da necessidade de se observar a ordem cronológica de apresentação dos precatórios, tem-se, ao menos que, em se admitindo a possibilidade da concessão da tutela de urgência, a decisão correspondente estaria apta a colocar “a parte vitoriosa na ‘fila de espera’ para a sua expedição, cujo procedimento findaria com o depósito judicial da quantia, que somente poderia ser levantada em caso de procedência definitiva da demanda” (Didier Junior, Braga e Oliveira, 2012, p. 548).
Comungando desse entendimento, posiciona-se Barros (2003, p. 194):
Mesmo em se tratando de causa contra o Estado, o limite é a inserção do precatório na linha de espera. Vale dizer: o juiz emite o precatório, que é inscrito. Se, antes de ocorrer o trânsito em julgado da decisão condenatória, chegar o momento de o precatório antecipado ser pago, o dinheiro respectivo ficará à disposição do juízo, até a solução final do processo. Essa solução, acredito, respeitando o sistema de precatórios, evita que o credor sofra os prejuízos decorrentes da demora.
De modo semelhante, assevera Bueno (2004, p. 137):
O argumento do art. 100 da CF sempre me pareceu fraco também. A uma porque, se a tutela antecipada significa emprestar efeitos antes do tempo, pode ser que alguém já fique satisfeito em ver o precatório sendo expedido antes do tempo. Eventuais ‘filas’ de credores que deverão se formar ao lado das existentes (credores comuns e credores alimentares) é questão que deve se resolver junto à organização da Administração Pública, que se pressupõe eficiente (art. 37, caput, da CF), e não pode ser oposta ao cidadão que tem seu direito reconhecido, posto que com base em cognição sumária. A duas, para aqueles casos de urgência 'urgentíssima’, o tempo inerente ao processamento do precatório não pode ser óbice à antecipação de tutela propriamente dita, mas muito diferentemente, será uma forma de modificação dos meios de concretização da medida em desfavor da Fazenda.
Em oposição, porém, ao posicionamento supra, aponta Manente (2006, p. 169) a existência de julgado proferido pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que asseveraria não ser possível a expedição do precatório por meio de decisão interlocutória, antecipatória da tutela, em razão de o artigo 100 da Constituição Federal, in retro transcrito, prever a inclusão no regime dos precatórios apenas dos créditos devidos pela Fazenda Pública em virtude de sentença judiciária.
A propósito, note-se a ementa:
CONSTITUCIONAL E PROCESSO CIVIL. EXPEDIÇÃO DE PRECATÓRIO PARA REPETIÇÃO DE INDÉBITO TRIBUTÁRIO ATRAVÉS DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. Não é possível a expedição do precatório através de antecipação de tutela, pois a norma do art. 100 da CF/88 prevê a inclusão no sistema de precatórios, apenas, dos créditos devidos pela Fazenda Pública em virtude de sentença judiciária. (Agravo de Instrumento n.º 24224/PE, Terceira Turma, Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Relator: Desembargador Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, julgado em 06/06/2000) (BRASIL, 2014a).
Com efeito, aduz o artigo 100, caput, da Constituição Federal, como já visto, que “os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios” (BRASIL, 1988, não paginado, grifou-se).
Em complemento, ainda, exigem os §§ 1º, 3º e 5º da referida norma, a verificação do trânsito em julgado da sentença correspondente, senão vejamos:
Art. 100. Omissis
§ 1º Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo.
§ 2º Omissis
§ 3º O disposto no caput deste artigo relativamente à expedição de precatórios não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor que as Fazendas referidas devam fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado.
§ 5º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente. (BRASIL, 1988, não paginado, grifou-se)
A primeira vista, a previsão normativa em comento, leva a crer, realmente, na total incompatibilidade do instituto da tutela antecipada com o regime dos precatórios.
Ao se empregar, porém, uma análise mais atenta sobre a matéria envolvida, é possível se observar que o aludido regime, previsto pelo artigo 100 da Constituição Federal, não chega a excluir a possibilidade de expedição de precatórios em sede de tutela de urgência, sendo, destarte, possível a conformação desses institutos.
Por certo, se de um lado a referida norma faz alusão à sentença judicial transitada em julgado, de outro não disciplina circunstância que envolva pagamento de débitos oriundos de decisão antecipatória da tutela, não chegando, portanto, a vedá-lo expressamente.
Assim, registra Bueno (2004, p. 142):
[...] não há problema nenhum em atrelar o pagamento ao trânsito em julgado, justamente porque é de tutela antecipada que se está a tratar aqui. Nos casos em que não há necessidade de antecipação de tutela, aguarda-se o trânsito em julgado; em outras situações em que há urgência (art. 273, I, por exemplo), antecipa-se a tutela, não obstante o texto da Constituição. Se antecipar é ‘efetivar’ antes do tempo, que seja antes do trânsito em julgado.
Manifestam-se do mesmo modo Didier Junior, Braga e Oliveira (2012, p. 559), para quem “[...] o § 1º do art. 100 da Constituição Federal, ao condicionar a expedição de precatório ao prévio trânsito em julgado, não impede que já se conceda a tutela antecipada (que desencadeia execução provisória) para adiantar os atos executivos que antecedem a expedição do precatório”.
Em complemento, obtemperam os referidos autores que a exigência de sentença judicial com trânsito em julgado seria ainda inconstitucional, senão vejamos:
[...] a EC n. 30/2001 conferiu nova redação ao art. 100, § 1º, CF, para vincular a expedição de precatório ao trânsito em julgado da decisão judicial. E mesmo no § 3º do art. 100, quando dispensa a emissão de precatório, exige o trânsito em julgado. [...].
Diante dessa exigência, questiona-se se seria possível a antecipação dos efeitos da tutela contra o Poder Público, para pagar quantia, por tratar-se de decisão interlocutória, no mais das vezes.
De certo que sim, pois a emenda constitucional é inconstitucional.
Isso porque essa imposição de formação de coisa julgada foi inserida por emenda constitucional que afronta, diretamente, o direito fundamental à tutela preventiva (contra ameaça de lesão à direito) e efetiva – este último corolário do devido processo legal, do direito a um processo sem dilações indevidas e do próprio direito de acesso à justiça –, bem como o direito à igualdade. Afronta normas fundamentais, constitucionais, pretéritas e impositivas.
Nesse sentido, também é a lição de Bueno (2004, p. 141):
[...] esse vínculo ao trânsito em julgado é fruto de emenda à Constituição que, seria despiciendo dizer, estivéssemos, eventualmente, em outro lugar do mundo, deve observar determinadas regras que são anteriores e impositivas. Assim, na exata medida em que a necessidade de aguardar o trânsito em julgado, para que o jurisdicionado se beneficie de uma decisão judicial que o favorece, tem aptidão para colocar em risco uma situação de ameaça ou criar uma lesão de difícil reparação ou irreparável, o lapso temporal correspondente atrita com a proteção do art. 5º, XXXV. Nesse sentido, a emenda constitucional é inconstitucional.
Deixando-se de lado, entrementes, a questão relativa à (in)constitucionalidade da norma em exame, certo é que a possibilidade da concessão da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, para pagamento de quantia determinada, tem sido abraçada por grande parte doutrina, ainda que muitos apontem como limite a inserção do precatório na linha de espera.
Logo, o regime dos precatórios, malgrado implique em restrições à satisfação imediata de obrigações pecuniárias deferidas em sede de tutela de urgência, de modo algum pode ser visto como verdadeiro óbice ao deferimento desta.
Ressalve-se, porém, que, à vista de situações excepcionais, há doutrinadores que chegam a afastar a aludida restrição, defendendo não apenas o cabimento da tutela antecipada, mas também o seu cumprimento, independentemente da expedição precatório, ante a impossibilidade de conformar este último com cenários de urgência urgentíssima.
Nessa esteira, é a lição de Benucci (2001, p. 84-87):
Se a ordem judicial deve ser cumprida para se evitar um dano, e sendo uma manifestação do princípio constitucional da inafastabilidade do controle judicial, é perfeitamente razoável e jurídico que o pagamento pela Fazenda Pública seja feito independentemente da ordem dos precatórios, em casos especiais, quando o magistrado, sopesando os valores dos bens jurídicos em conflito, assim entender.
[...]
Se até os princípios jurídicos fundamentais apresentam determinadas situações de colidência, que implica relativizar um dos princípios colidentes, não há motivo razoável em não relativizar um dispositivo constitucional – como o art. 100 – em face da colidência inerente aos vários princípios constitucionais.
[...]
Portanto, condicionar a possibilidade de atuação da antecipação de tutela frente à Fazenda Pública ao regime dos precatórios em qualquer hipótese, é admitir a possibilidade de perecimento dos direitos fundamentais do jurisdicionado.
Certamente, foi sopesando os princípios constitucionais envolvidos, que o Superior Tribunal de Justiça assim decidiu:
ADMINISTRATIVO – FAZENDA PÚBLICA – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS – CABIMENTO – ART. 461, § 5º, E ART. 461-A DO CPC – DECISÃO MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. 1. A negativa de fornecimento de um medicamento de uso imprescindível, cuja ausência gera risco à vida ou grave risco à saúde, é ato que, per se, viola direitos indisponíveis, pois vida e a saúde são bens jurídicos constitucionalmente tutelados em primeiro plano. 2. O bloqueio da conta bancária da Fazenda Pública possui características semelhantes ao seqüestro e encontra respaldo no art. 461, § 5º, do CPC, uma vez tratar-se não de norma taxativa, mas exemplificativa, autorizando o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as medidas assecuratórias para o cumprimento da tutela específica. 3. O direito à saúde deve prevalecer sobre o princípio da impenhorabilidade dos recursos públicos. Nas palavras do Min. Teori Albino Zavascki, pode-se ter por legítima, ante a omissão do agente estatal responsável pelo fornecimento do medicamento, a determinação judicial do bloqueio de verbas públicas como meio de efetivação do direito prevalente. (REsp 840.912/RS, Primeira Turma, julgado em 15.2.2007, DJ 23.4.2007) 4. Não há que se sujeitar os valores deferidos em antecipação de tutela ao regime de precatórios, pois seria o mesmo que negar a possibilidade de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, quando o Supremo Tribunal Federal apenas resguarda as exceções do art. 1º da Lei 9.494/97. Precedente. Agravo regimental improvido. (Agravo Regimental n.º 935.083/RS, Segunda Turma, Superior Tribunal de Justiça, Relator: Humberto Martins, julgado em 02/08/2007, DJ 15/08/2007, p. 268) (BRASIL, 2014b, grifou-se).
Repise-se, porém, que a aplicação desse entendimento se restringe, como dito, a situações peculiares, especialíssimas, de urgência urgentíssima, somente verificável à luz do caso concreto, não sendo admitida, como regra, a dispensa da expedição do precatório pela jurisprudência majoritária.
Nesse sentido, acenam os julgados do Egrégio Supremo Tribunal Federal:
“Há risco de grave lesão à ordem e à economia públicas na decisão judicial que determina imediato pagamento de precatórios de valores elevados, sem obediência à ordem cronológica.” (SS 4.090-AgR, Rel. Min. Presidente Cezar Peluso, julgamento em 17-2-2011, Plenário, DJE de 14-3-2011.
4.1.3 O reexame necessário
Dispõe o artigo 475 do Código de Processo Civil (BRASIL, 1973, não paginado) que:
Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI);
§ 1º Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.
§ 2º Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.
§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente.
À vista da norma em comento, que veio a instituir o conhecido reexame necessário, passou-se a defender que este último constituiria óbice à concessão da tutela antecipada contra a Fazenda Pública sob a justificativa de que, se a sentença final proferida em desfavor desta apenas poderia produzir seus efeitos depois de confirmada pelo juízo a quo, uma decisão antecipatória, de cunho meramente interlocutório, jamais poderia produzir efeitos imediatos.
Em que pese a logicidade empregada, duas ponderações novamente necessitam ser feitas.
Primeiramente, é inequívoca a existência de hipóteses que não se submetem ao reexame necessário, conforme destaca a norma acima transcrita, em seus §§ 2º e 3º.
Destarte, ao menos em relação a essas, não haveria que se falar em qualquer impedimento, já que dispensado o duplo grau de jurisdição obrigatório.
Quanto aos demais casos, cuja sentença final restaria submetida ao reexame necessário, irretocável é o entendimento de Frias (1996, p. 70), para quem
[...] a regra do referido art. 475 do CPC é excepcional, de modo que deve ser interpretada restritivamente: se o dispositivo impõe o reexame de sentenças proferidas contras as Fazendas, as decisões contra elas produzidas não deverão ser, só por isto, reexaminadas, até porque, ao cabo do processo em que foram proferidas estas, será prolatada aquela, esta sim a ser obrigatoriamente revista.
Na mesma linha, prelecionam Didier Junior, Braga e Oliveira (2012, p. 550), que ainda chegam a acrescentar outra razão para o afastamento desse pretenso óbice do reexame necessário:
Em primeiro lugar, não há que se aplicar a norma, na medida em que o duplo grau obrigatório só se refere às sentenças e a tutela antecipada é concedida por meio de decisão interlocutória.
Em segundo lugar, já se demonstrou que a tutela antecipada não é novidade em nosso ordenamento – já havia previsão em alguns procedimentos especiais. Sempre se admitiu, portanto, em face da Fazenda Pública, naquelas situações esparsas (possessórias, mandado de segurança etc.), sem que se levantasse o óbice da remessa necessária – ao contrário inúmeras foram as leis e inúmeros foram os institutos criados para mitigar as consequências das medidas provisórias nestas circunstâncias. O novo está na circunstância de, agora, a medida poder ser concedida para a generalidade dos direitos. E, com isso, traz-se à baila tal argumento, sem que a lei, no particular o art. 273, CPC, fizesse qualquer restrição a respeito.
Interessante é ainda a ponderação de Cunha (2011, p. 259):
[...] não se sujeitam ao reexame necessário as decisões interlocutórias proferidas contra a Fazenda Pública. Como bem lembrado por Renato Luís Benucci, no processo de mandado de segurança há reexame necessário e, nem por isso, está vedada a concessão de liminar. De igual modo, a simples existência do reexame necessário não é fator necessário e suficiente para impedir a concessão de provimentos antecipatórios contra a Fazenda Pública.
Destarte, atendidos os requisitos legalmente previstos para a concessão da tutela antecipada, não deve o reexame necessário constituir óbice ao seu deferimento, até porque ainda cabível a remessa quando prolatada a sentença.
Vale notar que o Superior Tribunal de Justiça, há muito, tem assim se manifestado:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. LIMINAR EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. [...] 6. "A obrigatoriedade do reexame necessário das sentenças proferidas contra a Fazenda Pública (art. 475 do CPC) não é óbice à antecipação dos efeitos da tutela pleiteada" (REsp 913.072/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 21.6.2007). [...] 8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido. (Recurso Especial n.º 1053299/RS, Primeira Turma, Superior Tribunal de Justiça, Relator: Denise Arruda, julgado em 10/11/2009, DJ 27/11/2009) (BRASIL, 2014c, grifou-se).
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. ART. 273 DO CPC. SÚMULA 07-STJ. ART. 475 DO CPC. REEXAME DO CONJUNTO PROBATÓRIO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE. CASO NÃO INCLUÍDO NA EXCEPCIONALIDADE DA LEI 9.494/97. [...] II - O reexame necessário não pode obstar os efeitos da antecipação de tutela, porquanto a decisão liminar, além de objetivar a garantia da efetiva execução de sentença, não se trata de sentença definitiva, conforme dicção do art. 475 do CPC. Ainda assim, a medida antecipatória não impede a sua confirmação por meio da sentença de mérito, posteriormente sujeita ao duplo grau de jurisdição. Precedentes. [...] Agravo regimental desprovido. (Agravo Regimental no Recurso Especial n.º 719.846/RS, Quinta Turma, Superior Tribunal de Justiça, Relator: Felix Fischer, julgado em 19/05/2005, DJ 01/07/2005) (BRASIL, 2014d, grifou-se).
4.1.4 Outros supostos óbices
Colacionando lições de outros doutrinadores, Didier Junior, Braga e Oliveira (2012, p. 546-547) identificam a existência de outros supostos óbices que impediriam a concessão medida antecipatória em estudo, os quais, como bem se vê, acabam, porém, sendo rechaçados de forma categórica:
João Batista Lopes acrescenta outro argumento e, de pronto, o rebate: “Dir-se-á que a presunção de legitimidade do ato administrativo e sua auto-executoriedade constituem óbice à antecipação da medida. O argumento é desvalioso porque sobredita presunção não é absoluta e deve ceder ante prova inequívoca (retius, prova segura) em sentido contrário”.
Renato Luis Benucci também enumera outros óbices trazidos à concessão de tutela de antecipada contra a Fazenda Pública, e já os rejeita de plano. Diz-se que não haveria que se falar em receio de dano em face do Poder Público, pois o Estado sempre poderá arcar com os débitos decorrentes de condenação em juízo, sendo desnecessária a tutela antecipada. O argumento é equivocado porque nem sempre o Estado será demandado por direito patrimonial, relativo a prestação de pagar quantia certa, isso sem falar nos casos em que o direito patrimonial é conexo a um outro extrapatrimonial. Argui-se, ainda, a inviabilidade de antecipação de tutela punitiva, pois dificilmente os procuradores do Estado incorrem em abusos e deslealdades processuais. Têm suas atividades norteadas pela máxima da moralidade e legalidade, bem como pelos deveres da veracidade e probidade. Não é bem assim. Basta cogitar, como diria o autor, da interposição de recursos contrários à súmula do tribunal superior. Pensar o contrário, seria anuir com abusos e excessos cometidos pela Fazenda em juízo, protelando o processo.
Encerrando, referidos autores concluem que “parece não haver mais discussão sobre a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela em face do Poder Público, até mesmo porque existe uma lei que a disciplina (Lei Federal n.º 9.494/1997)” (DIDIER JUNIOR, BRAGA E OLIVEIRA, 2012, p. 546-547).
Todavia, muito embora a Lei n.º 9.494/1997 tenha, realmente, dado fim a boa parte das dúvidas outrora existentes sobre o tema, disciplinando, de forma expressa, a aplicação do instituto da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, não se pode olvidar que aquela, em contrapartida, veio a dar origem a outro questionamento que merece resposta.
Vejamos.
4.2 Da restrição imposta pela Lei n.º 9.494/97
Com o advento do diploma legal em exame, passou-se a discutir a constitucionalidade do preceito estipulado em seu artigo 1º – posteriormente complementado pelo art. 2º-B (incluído pela Medida Provisória n.º 2.180-35, de 2001) –, que teria restringido a aplicação do instituto da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, ao vedar sua concessão para casos que versassem sobre a reclassificação ou equiparação de servidores públicos, e para aqueles que tratassem de concessão de aumento ou extensão de vantagens pecuniárias, entre outros similares.
Na oportunidade, questionava-se a constitucionalidade da edição de normas que limitassem o deferimento da antecipação da tutela à vista de suposta afronta ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, assegurado pelo artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal (BRASIL, 1988, não paginado).
A esse respeito, são de grande valia as considerações tecidas por Souto (2000, p. 301-302), que colaciona sucintamente o embate então travado:
A constitucionalidade desse artigo 1º da Lei n; 9.494/97 foi colocada em xeque por inúmeras decisões judiciais – especialmente por parte da magistratura federal – que o entendiam contrário ao texto do Estatuto Político, por suposta violação do seu art. 5º, XXXV. Por outro lado, havia juízes federais e membros do Superior Tribunal de Justiça que se filiavam a outra corrente doutrinária, liderada, entre outros, pelo Professor aposentado da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia J.J Calmon de Passos. Para o citado processualista o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV) não impede que o Estado erija limitações à tutela provisória. O que não se pode admitir são óbices ao direito à ação principal.
Em face da controvérsia instalada, o Presidente da República, a Mesa do Senado e a Mesa da Câmara dos Deputados ingressaram com a Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 4, a qual, entretanto, restou julgada procedente pelo Pretório Excelso, por maioria, em 01/10/2008, pondo fim a contenda.
Reconhecida, então, a constitucionalidade da norma em foco, tornou-se patente aplicabilidade da restrição por ela imposta, conforme já decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal:
RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL. DEFERIMENTO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA PARA NOMEAÇÃO E POSSE EM CARGO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE DESRESPEITO AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADC 4. 1. Ao conceder a medida cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 4, esta nossa Corte vedou apenas a concessão de tutela antecipada que contrarie o disposto no art. 1º da Lei 9.494/97. 2. A reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou extensão de vantagens (art. 5º da Lei 4.348/64) cuidam da específica situação em que um servidor público postula tais direitos em Juízo. O mesmo vale para o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias de que trata o § 4º do art. 1º da Lei 5.021/66. 3. A determinação para que candidatos sejam nomeados e empossados em cargo público não ofende a decisão do STF na ADC 4. A postulação para ingresso nos quadros funcionais do Estado diz respeito ao direito de acesso aos cargos, empregos e funções de natureza pública. Direito expressamente assegurado pelo inciso II do art. 37 da Constituição Federal e consistente na instauração de vínculo jurídico até então inexistente. Direito, portanto, à formação de um liame jurídico a que o Poder Público, no caso, resiste. Já os demais direitos subjetivos, versados na ADC 4, esses dizem respeito à continuidade de uma relação jurídica preexistente ou, se se prefere, dizem respeito a institutos jurídicos que têm por pressuposto de incidência uma anterior relação jurídica entre o servidor público e a pessoa do Estado. Relação jurídica em nenhum momento posta em causa quanto à juridicidade de sua formação ou continuidade. 4. Reclamação que se julga improcedente. (Reclamação n.º 7212, Tribunal Pleno, Supremo Tribunal Federal, Relator: Ayres Britto, julgado em 02/06/2010, DJ 01/07/2010) (BRASIL, 2014e, grifou-se)
MAGISTRATURA. Magistrado. Aposentado. Férias não gozadas. Pagamento em pecúnia. Indenização. Tutela antecipada contra a Fazenda Pública. Verba que não constitui subsídio, vencimento, salário, nem vantagem pecuniária. Ofensa à liminar deferida na ADC nº 4. Não ocorrência. Situação não compreendida pelo art. 1º da Lei nº 9.494/97. Reclamação julgada improcedente. Agravo improvido. Precedentes. Não ofende a decisão liminar proferida na ADC nº 4, a antecipação de tutela que implica ordem de pagamento de verba de caráter indenizatório. (Reclamação n.º 5174, Tribunal Pleno, Supremo Tribunal Federal, Relator: Cezar Peluso, julgado em 27/11/2008, DJ 06/02/2009) (BRASIL, 2014f, grifou-se)
Vale registrar, entretanto, que a restrição imposta pelo art. 1.º e 2º-B da Lei n.º 9.494/1997, atualmente, deve ser examinada em conjunto com o que dispõe a nova Lei do Mandado de Segurança (arts. 7º, §2º e 14, §4º, da Lei n.º 12.016/2009), que veio a revogar as Leis de n.º 4.348/64 e 5.021/66.
Tem-se, então, atualmente, que, à vista dessas legislações, não se poderá conceder antecipação de tutela contra entes públicos: (I) que defira compensação de créditos tributários ou previdenciários (Súmula 212 do STJ); (II) que conceda a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior; (III) ou que determine a reclassificação ou equiparação de servidores púbicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento e qualquer natureza.
De se concluir, pois, que, afora tais restrições – e, recorde-se, afora aquela decorrente do regime dos precatórios, quando aplicado –, o emprego do instituto da tutela antecipada contra a Fazenda Pública não apresenta obstáculos.