A delinquência juvenil
Toda criança recebe com emoção as experiências que presencia, que é sempre uma experiência nova para a vida desta, e não há mediação entre o impulso e o mundo externo. O que se passa na mente infantil logo vai para a instância da ação, isso se dá pela diminuída capacidade de ser e estar no mundo, o que explica a inimputabilidade genérica conferida pela lei. Por esse conceito, pode-se incluir no comportamento infantil muitos atos que transigem a conduta social – sendo, portanto, conduta desviada –, não podendo todos os tipos de desvios de conduta serem considerados como forma de delinquência. Middendorff, pela convicção de que prevenir é melhor que sancionar, diz que delinquência juvenil é a conduta dos jovens desaprovada pela comunidade e determinante de uma intervenção do Estado – ressalta-se, aqui, a importância dessa intervenção estatal –, com observância dos limites de idade vigentes e dos preceitos relativos à responsabilidade penal[25]. Segundo Romano Ricciotti, há fatores que contribuem para o incremento do fenômeno da delinquência juvenil: a crise do consumo e escassez de bens materiais, a crueldade social, a quebra do modelo tradicional da família, a crescente mídia, a insuficiência da ação a educativa, a predominância da moral hedonista e dos impulsos agressivos. Em contrapartida, há autores que acreditam não haver aumento da delinquência, mas sim maior comprovação da mesma.[26]
Há quatro pontos de vista para se perceber a delinquência: o jurídico, o médico, o psicossocial e o sociocultural. Este trabalho apresentará, sucintamente, apenas, os enfoques jurídico e sociocultural. O primeiro enfoque [jurídico] considera delinquência o fato tipificado pela lei penal, como demonstra o artigo 103 do ECA; tendo como principal objetivo evitar a conduta descrita no preceito normativo (o verbo). A medida coercitiva é a tônica do processo, e a educação se faz pelo medo que a sanção – no sentido penal, e a qual sempre acompanha o preceito normativo – impõe. Para o enfoque sociocultural, a delinquência é tida como comportamento desviante – haja vista a atribuição de certa importância a determinados assuntos. Acentuam-se, por esse ponto de vista, as condições do sujeito, conforme seu registro histórico e todos os fatores que importam para sua ação. Nesse quesito são importantes habitat, família, escola, grupo de iguais, trabalho e, até, a recessão econômica mundial; isto, pois o que se vê é uma inadaptação, fato que não pode ser enclausurado normativamente, por ser conceito de vida. Jorge Trindade afirma o modelo educativo[27], no qual fato, sujeito e contexto (componentes correlatos da delinquência) formam uma unidade interpretativa. Esta interpretação se faz em nome do sujeito (menor), ela é uma atuação que favorece a cultura e permite, em condições de igualdade de oportunidades, desenvolver aptidões e entendimento individual, compreender o sentido de responsabilidade moral e social, e formar um membro transformador da relação contexto-sociedade. Portanto, para Trindade, a delinquência juvenil é fato sujeito e contexto, não se excluindo nenhum deles.[28]
Como dito anteriormente neste tópico, há necessidade da intervenção do Estado. E as decisões que são tomadas pelo Estado judicial têm caráter educativo, objetivando a reinserção social, levando sempre em consideração a personalidade dos interessados.[29]
Em comparação dos modelos vistos no extinto Código de Menores e no vigente Estatuto da Criança e do Adolescente, podem-se retirar ideias comuns: (a) o ato infracional – contrastado com o crime ou a contravenção penal – é conceito jurídico, não importando o real estado psicopatológico do sujeito, este deve ser menor de 18 anos (tendo, pelo menos, 12 anos), pois o que se adota no Brasil é o modelo biológico [por ser jurídico, pode-se mudar o entendimento conforme as razões históricas e sociais]; (b) o menor é um cidadão, sujeito de direitos e deveres – é pessoa em desenvolvimento –, havendo necessidade de uma especial atenção das instituições e do Estado. A criança e o adolescente tem direitos fundamentais e direitos específicos, respectivamente como pessoa e como menor de 18 anos; (c) a ideologia protetora (fulcrada no princípio da Proteção Integral) pode mascarar privação de garantias e direitos reconhecidos para a totalidade, abrindo-se a possibilidade de abusos sob o pretexto de ser interesse da criança ou adolescente.[30]
Conforme o modelo educativo entendido por Trindade, pode-se, assim, explicar os critérios de qualidade da medida socioeducativa:
Proteção e repressão, aspectos às vezes co-implicados no atendimento educacional do adolescente, não têm conteúdo de pena criminal, pois os menores estão isentos de pena. A resposta social não tem qualidade de sanção penal. Não se trata, como afirmam alguns realistas, de mero eufemismo. Por isso, a medida socioeducativa, aplicável somente a adolescentes (maiores de doze anos) e nunca a crianças (menores de doze anos), deve obedecer aos seguintes critérios de qualidade:
- ter caráter educativo;
- visar à socialização;
- estar adequada à etapa desenvolvimental e às necessidades individuais.
A qualquer tempo, se o adolescente estiver, se o adolescente estiver socializado ou reeducado, no sentido de que reúne condições de conviver melhor com os outros e consigo mesmo, o julgador tem a obrigação de desconstituir a medida, que deixou de ser necessária, pois sua finalidade foi alcançada. Nenhuma medida socioeducativa se sustenta em si mesma. (…)
A responsabilidade dos menores (…) não se confunde com a capacidade de imputabilidade do adulto. Diferencia-se mais qualitativamente do que quantitativamente. Reclama uma dimensão social. Em outras palavras, é simultaneamente pessoal e social; individual e coletiva. Deve servir para estimular o processo de socialização e, nesse sentido, aumenta a responsabilidade dos adultos, das instituições e da sociedade.
É imprescindível haver inter-relação entre órgãos de aplicação e órgãos de execução das medidas, sob pena de as decisões judiciais ficarem sem controle e sem resposta. Esta é mais importante do que a medida em si.[31] (grifo nosso)
O que se vê, atualmente, não é o que deveria ser visto conforme a lei; é visível e gritante o anacronismo do texto legal que ampara o menor infrator.
Conceito de vítima
Segundo Smanio e Fabretti, vítima “é o sujeito passivo eventual, material, específico em cada crime, é quem sofre a lesão do bem jurídico de que é titular.”[32] Com esse conceito, pode-se imaginar que o infrator não pode ser equiparado à vítima; entretanto, como bem asseveram os autores mencionados “As guerras mundiais e os conflitos que permanecem até os dias de hoje mostraram a necessidade de proteção das vítimas não só de crimes, mas também de abusos de poder praticados pelos Estados.”[33] Portanto, com este esclarecimento, é certo que o menor infrator não só pode ser como, de fato, é vítima.
Acrescenta-se, a este conceito, uma das definições de vítima dada por Guaracy Moreira Junior, a qual chama de “Vítima da Política Social”. São as chamadas de vítimas do Estado, “são encontradas não só em países de regimes políticos instáveis e pobres onde predominam guerras e revoluções, como também nos países em desenvolvimento, como o Brasil.”[34] É o chamado crime branco, praticado pelo poder público contra a sociedade.
Há muitas práticas, como já mostradas, de opressão ao menor interno; práticas as quais são degradantes, não, apenas para o menor, para a sociedade em geral. O inciso I do artigo 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente fala que “As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados. I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado (…)”. Válter Ishida aponta, ainda, que – com este inciso – “temos a possibilidade de ser determinada a (…) correção de irregularidade na execução de políticas públicas, (…) obrigatoriedade de oferta eficiente e regular de serviços públicos obrigatórios (…).”[35] (grifo nosso) É claro, com isto, o descaso do Estado e a falta de ação da sociedade, pois haveria meios para finalizar completamente a ofensa indevida que é feita aos internos. À luz desse artigo, poder-se-ia pensar em medidas protetivas ao adolescente que sofre maus-tratos (piores que poderia ser em um núcleo familiar) nas mãos dos maus funcionários do Estado.
Há uma tensão entre cultura instituída e direito posto, como já foi dito, causando certo anacronismo. As políticas públicas encontram-se em época mais remota que as leis que as abrangem; o artigo 227 da Constituição Federal, por exemplo, fala em prioridade absoluta da infância e juventude em nosso país, que essa ideia seja desencontrada com a mente de grande parte da população já é assustador, mas quando é o próprio Estado quem não cumpre algo que deveria ser prioritário, a aberração já se alterou de nome. Existe uma necessidade de efetivação do princípio da proteção integral. Conforme o artigo 122 do ECA, nenhum adolescente poderá sofrer medida de internação se houver outra mediada mais adequada; não cabendo a ele, mas ao Estado, provar que se cometeu o ato infracional, e quem foi o sujeito da ação. Ademais, o artigo diz expressamente que a medida poderá ser aplicada, não deverá. Considera-se, para a aplicação da medida, as características psico-sociais e a segurança pública, no que se diferencia do processo penal.
(…) o direito da infância e juventude, ao regular a apuração do ato infracional, focaliza de forma privilegiada as condições psico-sociais do adolescente. Assim, não existe o modelo ‘para tal conduta, tal sanção’. A descrição de condutas serve, como podemos observar no artigo 122, para limitar a possibilidade de aplicação da privação de liberdade, não para determiná-la.[36]
Ao menor interno, a vitimização pode vir, no mínimo, em dobro; pelas repressão, opressão e agressão feitas dentro da instituição e antes de seu ingresso, como visto supra. “A violência”, segundo Elida Séguin, “está presente no ambiente familiar e em condutas omissivas do Poder Público e da Sociedade Civil, entre estes os educadores que fecham os olhos às evidências de maus-tratos.”[37] Como se percebe, o poder público peca, neste caso, pela ação e pela omissão.
Segundo o artigo 18 do ECA, todos devem velar pela dignidade da criança e do adolescente, evitando que qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor lhe seja feito. É nessa questão que há violência de toda a sociedade para com o menor infrator, é a chamada violência branca, que está ligada à omissão. É um “deixar se fazer que também vitimiza.”[38]
É certo que no caso de internos é difícil, mas não impossível, alguém da sociedade civil ser omisso, não por agir de fato, mas por não ter real acesso às condições de existência. Desta forma, o artigo 125 do ECA salienta que “É dever do Estado zelar pela integridade física e mental dos internos, cabendo-lhes adotar as medidas adequadas de contenção e segurança.” Como bem observa Ishida,
A responsabilidade pelo zelo da integridade do adolescente interno é do Poder Público. A responsabilidade abrange a conduta comissiva ou omissiva, apurada por meio de ação civil pública, por meio de ação de responsabilização individual e de indenização.[39]
Acrescenta-se com a ideia de Elida Séguin,
A luta em defesa dos indivíduos contra os abusos dos mais fortes esbarra numa grande hipocrisia. O Estado transforma-se, em nome de interesses econômicos, num dos mais importantes vilões dos Direitos Humanos ao deixar de cumprir o que lhe cabe.
(…)
Uma forma cruel de vitimização ocorre pela omissão. Omissão estatal e da própria comunidade que assiste silente ao sofrimento de grupos politicamente minoritários.
Os direitos econômicos e sociais são um prolongamento dos direitos e liberdades individuais, contemplando a pessoa humana, além de sua qualidade pessoal, para garantir seus direitos de participação na sociedade, a substituição de um conceito de justiça distributiva pelo de uma justiça comutativa, que deve levar em conta as desigualdades individuais.[40]
Não bastando a vitimização que sofrem, por repressão completamente injusta, os menores infratores; há possibilidade da criança o adolescente ser vitima do Estado ser estar nessa situação. Ao que expõe Selma Aragão ao tratar dos irmãos gêmeos na Birmânia (atual Mianmar) que lideraram os rebeldes cristãos de seu país,
Estes heróis guerreiros que chegam aos 12 anos adorados como divindades, fizeram a passagem do ser criança a adolescente lutando para sobreviver num mundo onde os direitos humanos foram transformados na banalidade do mal. São vítimas e agressores de si mesmos. São histórias reais, e mostradas como culto do que ocorre no universo das crianças e adolescentes no mundo.[41]
Considerações Finais
Em suma, a “conduta delinqüencial é produto de um controle social ineficiente, de socialização frustrada por pais desinteressados, fracasso escolar, falta de perspectivas profissionais e um sistema legal duvidoso.” (TRINDADE, p. 73). Isto é, é um problema social por afetar a sociedade e por originar-se desta. Põe-se em questão, aqui, a indubitabilidade do ordenamento jurídico brasileiro como um todo; se a delinquência é causada por uma anomia ao ponto de não haver segurança na aceitação da lei por todos, é possível que a sociedade como um todo seja questionável e não passível de respeito e ordem.
Neste diapasão, há, como foi falado, o anacronismo, que ocorre pela não sincronia do texto legal com os acontecimentos reais – é uma exacerbação de erro no “dever ser” da norma legal. Já foram apontados os artigos 18 do ECA e 227 da Carta Magna brasileira; acrescenta-se a esta lista alguns: os artigos 66 usque 68 das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing). São alguns dos artigos que tratam, especificamente dos “Procedimentos disciplinares”. Nossas normas cumprem bem o que as Regras de Beijing programam. Ocorre que há crassa disparidade entre a tipificação e a prática.
A única solução possível quanto à isso é a criação de consciência no todo da população, mudança de consciência jurídica. Uma real mudança de mentalidade, assumindo qual é a realidade social e cumprindo o que esta no texto legal. Há extrema necessidade de que essa mudança seja coletiva, e que não exista uma cultura do privilégio, de levar a melhor em todas as situações. Conforme é o pensamento da criminologia crítica, a saber:
Enquanto a teoria tradicional propunha unicamente o tratamento dos jovens infratores e a luta contra os fatos que eles levavam a cabo, a criminologia crítica, ao contrário, fala muito pouco da luta contra os fatos, do tratamento dos infratores, insistindo, no entanto, com todas suas energias, na reconstrução das estruturas sociais e na sua reforma. A política criminal, mais que instrumentos policiais, deve buscar as chaves que decifrem seus mistérios. Somente num segundo plano os criminólogos críticos se preocupam com respostas dirigidas diretamente aos infratores. Sua meta principal está em reestruturar a sociedade mais que a reinsertar o indivíduo. Afirma, ademais, que as sanções do tipo penal, enquanto não mudem radicalmente de sentido, produzem um mal maior e que a prevenção tradicional resulta contraproducente, em especial a secundária dirigida ao jovem infrator. Em troca, quando o sujeito passivo é toda a comunidade, pode ser benéfica e lograr corrigir as estruturas injustas, considerando a necessidade de evitar as estigmatizações, as incriminações e as etiquetagens. Daí por que a teoria crítica guarda afinidade com a tese de que o adolescente não pode ser sujeito somente da repressão. (TRINDADE, pp. 86 e 87) (grifo nosso)
A soma do histórico de agressões praticadas por funcionários contra menores internos, da vontade de que esse grupo de funcionários seja “melhor” equipado e da hostilização dos menores abandonados (muitas vezes possíveis ou reais infratores), deixa visível a falta de sensibilidade ou consciência das autoridades e do sistema (não só prisional, como o social em geral) para com o menor infrator. Não só falta adesão, como, muitas vezes, parece que se abdicou do princípio da Proteção Integral ao menor; que, mesmo sendo infrator, merece recuperação e atenção, uma ressocialização de fato e não, apenas, de direito.
Ademais, deve-se buscar sanar o problema na fonte; acabar com as causas que, mais evidentemente, originam o cometimento de ato infracional. Para tanto, é necessária que a mudança de consciência seja, também, social. A criação de abrigos ajuda a resolver o problema dos menores em situação de rua existentes, mas uma família um lar sólidos acabam com a chance de novos menores em situação de rua. A estrutura educacional e o entendimento do ser perante a realidade seriam outras mudanças que fariam cessar a origem de menores infratores e internos.
O que se urge fazer instantaneamente é o fim das agressões a internos, por maior que seja o grau de periculosidade, uma vez que a agressão não deve ser adotada, senão finda todas outras medidas cabíveis; tentando aplicar estas medidas e não supondo sua falha, apenas.