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Ata notarial como meio de prova judiciária

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Agenda 29/08/2014 às 11:11

A ata notarial possibilita o registro de fatos com um grau de detalhamento e confiabilidade extraordinário, considerando a possibilidade de ser complementada com documentos de imagens e sons. Trata-se de instrumento valioso para a composição de provas em processos judiciais.

Sumário: I – Introdução.I - Abstract.II – Direito à prova e ata notarial. III – Ata notarial como prova atípica e admissibilidade em juízo.IV – Competência do tabelião e fé pública.V – Autoria do instrumento.VI – Extensão dos efeitos da fé pública.VII – Limites intrínsecos à ata notarial como meio de prova: competência do agente público.VIII – Limites extrínsecos à utilização da ata notarial: força probante em comparação com as provas típicas.IX - Conclusões.Bibliografia.


I - introdução

O sistema processual civil brasileiro garante o direito de acesso aos meios de prova. A prática forense, entretanto, demonstra que há dificuldades concretas que impedem o amplo exercício deste direito.

Muitos destes problemas se devem à notória morosidade e ineficiência do aparelho judiciário nacional, em praticamente todas as esferas e instâncias. Em diversas situações, entretanto, mesmo ignorando os problemas do Poder Judiciário brasileiro, ocorrem dificuldades inerentes à demonstração de certas situações de fato, especialmente aquelas em que há diversos eventos envolvidos (assembléias societárias, por exemplo), ou em que as impressões sobre certa situação devem ser captadas em pouco tempo, ou em um período de tempo prolongado.

O maior acesso aos meios de gravação e reprodução de imagens e sons, nos últimos anos, certamente contribuiu para facilitar a demonstração de fatos em juízo. Mas ainda há eventos que podem ser melhor comprovados por meio das impressões de uma pessoa que os presenciou, e que pode, através de uma narrativa isenta e precisa, oferecer ao juiz elementos de convicção seguros.

É neste contexto que a ata notarial deve ser estudada. Há inúmeras situações em que meios de gravação e reprodução de imagens e sons simplesmente não são adequados à correta compreensão de uma situação ou evento.

Em última análise, a ata notarial bem executada, consistente em uma narrativa precisa, detalhada e isenta de fatos ou eventos, apresenta as vantagens das provas pessoais, uma vez que seu conteúdo é formulado por uma pessoa com plena capacidade de interpretação das impressões que seus sentidos lhe fornecem. Considerando que este meio de prova pode, ainda, ser complementado com documentos adicionais (registros fotográficos, fonográficos,  etc), verifica-se que tal instrumento possui potencial para embasar um quadro probatório extremamente sólido.

O presente trabalho visa verificar quais as limitações inerentes à ata notarial, tanto no que diz respeito à sua formação quanto no que diz respeito à sua utilização frente aos meios de prova típicos previstos no Código de Processo Civil.


II – direito à prova e ata notarial

O sistema processual civil brasileiro, baseado em um modelo constitucional de princípios e garantias típicos de um Estado Democrático de Direito, assegura aos jurisdicionados o direito à prova.

Este direito é definido por Cândido Rangel Dinamarco da seguinte forma.

“Direito à prova é o conjunto de oportunidades oferecidas à parte pela Constituição e pela lei, para que possa demonstrar no processo a veracidade do que afirmam em relação aos fatos relevantes para o julgamento.”[1]

O direito à prova, um dos mais importantes princípios inerentes à garantia do devido processo legal, constitui atualmente um pilar do processo.  No sistema processual civil brasileiro, este é inferido de determinados textos genéricos constantes na própria Constituição Federal, e é igualmente afirmado pelo disposto no art. 332 do Código de Processo Civil, que estabelece que “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, são hábeis para provar a verdade dos fatos em que se funda a ação ou defesa”.

O dispositivo mencionado fala em meios, não em fontes de prova.

Embora ainda existam divergências doutrinárias, e o próprio texto do Código de Processo Civil confunda os termos, atualmente é aceito que fontes de prova são elementos que existem fora do processo, e que podem inclusive existir antes dele, enquanto meios de prova são técnicas processuais utilizadas para acessar as fontes, e delas extrair a informação dos fatos relevantes para a causa.

De todo modo, prevalece atualmente que o direito à prova, conforme fixado no art. 332 do CPC, visa assegurar tanto o emprego dos meios de prova quanto a possibilidade de a eles submeter os elementos externos úteis ao processo, as fontes.  Isto é possível, desde que estes elementos tenham sido obtidos por modos legítimos.

Já na Constituição Federal, o direito à prova integra o conjunto de garantias do justo processo fixado por meio dos princípios do contraditório e da ampla defesa, sendo que a observância destes princípios é resumida pela garantia do devido processo legal (art. 5.º, LIV e LV). Portanto, e sob o ponto de vista do modelo processual constitucional, o direito à prova é a possibilidade de acesso às fontes e de utilização dos meios de prova, desde que tal atividade não resulte na descaracterização do justo processo.

As fontes de provas (ou seja, os elementos externos ao processo, utilizados para a formação do convencimento do juiz), ainda segundo o entendimento de Dinamarco, podem ser divididas em provas reais e provas pessoais.

São reais as fontes passivas de provas, sobre as quais o juiz e seus auxiliares realizam atividades, sem que seu objeto tenha qualquer participação (p.ex. documentos, coisas, e pessoas, estas últimas quando submetidas à atividade probatória externa, como perícias). Já as fontes de provas pessoais são as fontes ativas, que participam da produção de elementos de convicção (p.ex. testemunhas e as próprias partes, quando da tomada de depoimento pessoal).

Diante deste quadro geral do direito à prova, surge a questão das provas impróprias, admitidas expressamente pelo artigo 332 do Código de Processo Civil como “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos”.

O sistema processual civil brasileiro não estabelece um rol taxativo de meios de prova, ou seja, de técnicas processuais utilizadas para acessar as informações contidas nas fontes probatórias. Fontes de provas pessoais ou reais podem ser acessadas por qualquer meio ou técnica, desde que respeitados os princípios do devido processo legal.

É neste contexto que o presente trabalho busca definir os contornos da ata notarial como um meio de prova. Quais são os limites deste meio de prova, no que diz respeito à garantia constitucional do devido processo legal? Estes limites implicam na impossibilidade de acesso a determinadas fontes probatórias por meio da ata, por disposição legal específica?

É igualmente relevante o estudo da ata notarial no que diz respeito à competência funcional do tabelião, sob o ponto de vista da fé pública (e decorrente presunção de veracidade) de suas declarações, tais como fixadas naquele instrumento, e no que tange à própria possibilidade de utilização judicial da ata, considerando a competência daquele órgão.

Todos estes pontos serão abordados de maneira crítica, mas não exaustiva, no presente trabalho.


III – ata notarial como prova atípica e admissibilidade em juízo

O sistema processual civil brasileiro, como já visto, admite expressamente as provas atípicas, ou seja, aquelas que não se encontram estabelecidas de maneira expressa no texto legal – em termos mais precisos, o sistema admite a utilização de meios de prova não previstos de maneira expressa no texto normativo, não havendo que se falar em hierarquia entre eles.

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Como bem expõe Cássio Scarpinella Bueno, em certas questões a norma exige, para a demonstração de um fato, a apresentação de certo documento, excluindo a possibilidade de outros meios de prova demonstrarem aquele evento: fora esta hipótese, provas típicas e atípicas possuem a mesma força probante.

“De resto, não há razão para sustentar a existência de qualquer hierarquia entre os diversos meios de prova expressamente admitidos (“provas típicas”) ou não rejeitadas pelo direito brasileiro (“provas atípicas”). O que ocorre, por vezes, é que a própria lei material exige, como prova da existência de um ato ou fato jurídico, um específico documento (um instrumento pré-concebido para fazer prova do ato ou fato no futuro) e, consequentemente, os demais meios de prova não têm o condão de comprová-lo.”[2]

É possível, neste ponto, traçar um paralelo entre os requisitos de admissibilidade da prova atípica no sistema processual civil brasileiro e aqueles estabelecidos no sistema italiano, conforme definidos por Luigi Paolo Comoglio.

Segundo aquele autor[3], tais requisitos são os seguintes.

a)     A inviolabilidade do contraditório e do direito de defesa da parte, a ser exercido tempestivamente e preventivamente na aquisição e valoração da eficácia da prova em processo diferente, na qual esta será reutilizada.

b)     A inviolabilidade do direito à prova contrária, de que as partes do novo processo que sofrem o efeito da prova atípica devem usufruir.

c)     A absoluta inadmissibilidade da prova, coletada ou formada em outra sede (judiciária ou administrativa), fora do contraditório das partes em litígio, a qual possa exercer uma eficácia vinculante de “prova plena” no outro processo no qual se pretende utilizá-la, em prejuízo daquele que não teve a oportunidade de defender-se previamente naquela sede anterior.

d)    A inutilidade da prova atípica, documental ou constituenda, que foi formada ou encontrada em violação às proibições probatórias, legais ou constitucionais;

e)     A inutilidade, em forma atípica, da prova típica viciada com nulidade ou causa de inadmissibilidade, mesmo se formada ou encontrada em outro processo;

f)      A exigência de uma adequada e correta motivação do juiz, acerca de critérios racionais de valoração diferenciada da idoneidade probatória, confiança e da eficácia de tal prova.

O item “c”, acima, é de aplicação discutível no sistema brasileiro, especialmente considerando as diversas restrições que Comoglio faz à prova atípica no sistema italiano, e que consideramos inaplicáveis ao sistema brasileiro, especialmente tendo em vista o art. 332 do CPC atual.

De todo modo, os critérios de admissibilidade da prova atípica, conforme propostos por aquele autor, encontram um efetivo paralelo com as restrições à prova atípica ínsitas ao modelo brasileiro: a prova atípica não pode agredir os parâmetros do ordenamento, expressos ou implícitos na Constituição Federal. A prova não pode contrariar o ordenamento jurídico e, mesmo sendo em si lícita (conforme o ordenamento jurídico), não pode ser obtida de forma de forma ilícita (contrária ao ordenamento jurídico).

Isto significa que qualquer meio, qualquer técnica processual é válida e legítima para possibilitar o acesso às informações relevantes contidas em elementos estranhos ao processo – as fontes de prova - com o objetivo de formar a convicção do juiz, desde que não haja ofensa ao devido processo legal em seu sentido amplo (material e processual). Segundo o entendimento da doutrina atual, o direito à prova deve ser interpretado em conjunto com o princípio do contraditório, conforme estabelece João Batista Lopes[4].

“A especial atenção dedicada pela doutrina às provas atípicas justifica-se à luz da moderna concepção do princípio do contraditório, que não se exaure no binômio informação-reação, mas inclui o direito à prova, assim entendido:

a) o direito de indicar os meios pertinentes para demonstrar a existência dos fatos alegados;

b) o direito de produzir efetivamente as provas pertinentes e adequadas ao caso;

c) o direito de demonstrar que as provas produzidas pelo adversário não são concludentes ou idôneas;

d) o direito à valoração da prova segundo critérios técnicos admitidos pelo sistema.”

Portanto, nenhum meio de prova pode dificultar a defesa da parte contrária em uma demanda judicial, e nenhum meio de prova pode implicar, por si só, em ofensa à lei material, seja no que diz respeito ao meio em si, seja quanto à sua forma de obtenção. Afora estes pontos, qualquer técnica de acesso aos elementos probatórios é admissível em um processo.

Estabelecidos estes pressupostos, deve-se afirmar que a ata notarial não é um simples documento, e portanto não constitui prova típica, mas atípica. Trata-se afinal, como se verá adiante, de um instrumento público formulado com o propósito de registrar e dar publicidade a determinados fatos.

Mais relevante, sua utilização em juízo não ofende o ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a formação e a utilização deste instrumento não implicam em qualquer ofensa às normas de direito material ou processual.

Em primeiro lugar, existe previsão legal para a formação do instrumento denominado ata notarial (o artigo 7.º da Lei 8.935/94, que será estudado em detalhes adiante), de modo que não se pode falar em ofensa à norma de direito material no que diz respeito à formação da prova em si, ou à sua obtenção.

Por outro lado, a utilização do instrumento em juízo não ofende as normas de direito processual que informam o devido processo legal, no que diz respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa. O sistema processual civil brasileiro admite meios de prova pré-constituídos, como a prova documental, sendo que para fins de exercício do direito ao contraditório (especialmente no que diz respeito à produção de contraprovas), a ata notarial pode ser comparada a um documento.

E considerando os parâmetros desenvolvidos por Comoglio, acima mencionados, quanto à admissibilidade da prova atípica, e considerando as peculiaridades da produção e da utilização em juízo da ata notarial, é possível concluir o seguinte.

O meio de prova em estudo não impede, por sua natureza, o direito à produção de prova contrária, desde que este seja utilizado de forma oportuna, considerando o fenômeno da preclusão (artigo 183 do Código de Processo Civil)

Por outro lado, o artigo 225 do Código Civil estabelece de forma expressa que “as reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão”.

De uma interpretação sistemática destes textos legais, em conjunto com os princípios constitucionais de livre acesso à justiça e de contraditório e ampla defesa, é possível extrair a conclusão que quaisquer espécies de instrumentos capazes de demonstrar a ocorrência de um fato, ou a existência de uma coisa, podem ser admitidos em juízo, e sua produção autoriza o uso de todos os recursos inerentes à ampla defesa pela parte contrária. Isto inclui a produção de prova contrária.

Por outro lado, é inegável que qualquer espécie de prova deve ser corretamente valorada pelo órgão julgador, e esta valoração deve resultar em uma correta motivação da decisão judicial no que diz respeito à idoneidade probatória, confiança e da eficácia de tal prova.

É neste ponto que as restrições de Comoglio à prova atípica, em nosso entendimento, tornam-se especialmente relevantes ao estudo de admissibilidade da ata notarial como prova em juízo, perante o sistema processual civil brasileiro.

Estes três fatores – idoneidade probatória, confiabilidade e eficácia da ata notarial como meio de prova – serão analisados detidamente, considerando, novamente, as particularidades da produção do instrumento denominado ata notarial, e sua análise em juízo, que decorre necessariamente desses fatores.  


IV – competência do tabelião e fé pública

A base legislativa que permite a lavratura da ata notarial encontra-se tanto na Constituição Federal, como na lei federal 8.935/94 e no Código de Processo Civil, sendo que o texto pertinente de todas as normas será transcrito a seguir, dada sua importância para este estudo.

“Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§1.º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário”

(Constituição Federal)

“Art. 1º Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

(...)

Art.6.º Aos notários compete:

(...)

III – autenticar os fatos.

Art. 7.º Aos tabeliões de notas compete com exclusividade:

I – lavrar escrituras e procurações públicas;

II – lavrar testamentos públicos e aprovar os cerrados;

III – lavrar atas notariais.”

(Lei 8.935/94)

“Art. 364. O documentos público faz prova não só da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o tabelião, ou o funcionário declarar que ocorreram em sua presença.”

(Código de Processo Civil)

A leitura dos textos normativos acima permite concluir, em uma primeira leitura, o seguinte.

Os serviços notariais são atividades de caráter público exercidas mediante delegação estatal, e consistem em serviços de organização técnica e administrativa efetivados por agentes dotados de fé pública. Dentre estes atos encontra-se a lavratura da ata notarial, um instrumento dotado de fé pública, e constituído com o objetivo, comum aos demais serviços notariais, de autenticar fatos para os fins de garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

A definição proposta para o instrumento denominado ata notarial, acima, não impede a sua utilização como meio de prova judiciária, e parece claro que sua força probante é a de um instrumento público, dotado de fé pública. Este não é um raciocínio aceito de forma unânime pelo Poder Judiciário, entretanto: cabe neste ponto trazer trecho extraído de um acórdão originado no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que merece estudo detalhado.

“O agravante, autor, insiste na tese de que a ata notarial elaborada pelo 14º Tabelião de Notas da Capital, que é um documento revestido de fé pública, e as fotos que trouxe são suficientes para provar o abandono do imóvel. Diz, ainda, que a lei não exige forma específica para a constatação do abandono.

(...)

Mas a antecipação havia, mesmo, que ser parcial, como deferida, porque, antes de tudo, o abandono deve ser constatado por oficial de justiça. Com efeito, para deferir o pleito do agravante deve haver prova inconteste da situação fática alegada mediante lavratura de auto circunstanciado como consta do Enunciado 27 do Centro de Estudos do extinto 2º TAC-SP (“Em princípio, a imissão de posse na ação de despejo deve ser antecedida de constatação, demonstrada mediante auto circunstanciado”).

Por fim, a lei 8.935/94, que regulamenta os serviços notariais e de registros, dispõe que: “Art. 1.º Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa, destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.” A vistoria do imóvel em questão com vistas a produzir prova de fato para efeitos judiciais foge à sua competência.”[5]

A decisão acima aborda dois temas relevantes, pertinentes ao assunto em discussão: a competência do tabelião de notas para produzir um instrumento capaz de produzir prova de fato em processo judicial, e, ultrapassado este ponto, a fé pública que tal instrumento deve ou não merecer em comparação com outros atos efetuados por agentes públicos.

No que diz respeito à competência do tabelião de notas para produzir prova de fato, para efeitos judiciais, entendemos que a decisão acima encontra-se equivocada.

Como visto no texto legal transcrito, os arts. 1.º e 6.º da Lei 8.935/94 são claros ao estabelecer que os tabeliões possuem competência para autenticar fatos, e os serviços que lhes são delegados pelo Poder Público visam garantir a publicidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

Por outro lado, o próprio sistema processual civil admite, em seu art. 332, que todos os meios de provas são admissíveis, ressalvadas as restrições já feitas. E o art. 364 do CPC é igualmente claro ao estabelecer que “o documento público faz prova não só da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o tabelião, ou o funcionário declarar que ocorreram em sua presença.”.

A restrição feita pelo acórdão no que diz respeito à suposta incompetência do tabelião para “produzir prova de fato para efeitos judiciais” ignora a atuação do tabelião na lavratura de diversos instrumentos que fazem, sim, prova de fato para todos os efeitos legais, e que o Poder Judiciário sempre aceitou, inclusive por exigência legal, no que diz respeito à presunção de veracidade, em virtude da fé pública de que goza aquele agente.

Uma escritura de compra e venda de imóveis, por exemplo, nada mais é do que um ato registral efetuado para fins de autenticação de um ato jurídico. E um dos motivos pelos quais a lei confere ao tabelião a competência para produzir tal ato é a fé pública de que ele goza, no que diz respeito ao registro dos fatos que presenciou com seus próprios sentidos: cabe a este profissional atestar quem são os declarantes, e reconhecê-los como tais, como requisitos essenciais da lavratura.

Este é um efetivo registro dos fatos alcançados pelos sentidos do tabelião, essencial para o registro, a autenticação e a validade do ato (no exemplo, a escritura de compra e venda de imóvel). A fé pública de que goza este profissional, no que diz respeito ao registro de fatos para fins de produção de provas em todas as instâncias do Poder Público, não pode ser afastada pelo Poder Judiciário, sob pena de completo esvaziamento das funções daquele agente, e de ofensa ao texto legal e constitucional já mencionado.

Existe, portanto, fé pública do tabelião no que diz respeito ao registro dos fatos que presenciou, gerando efetiva presunção (relativa) de veracidade, a ser quebrada, em juízo, pela parte contrária da demanda (sendo fundamental, neste ponto, o direito à prova contrária, conforme apontado por Comoglio). Cabe neste ponto trazer a definição de fé pública estabelecida por de Walter Ceneviva, por ser imediatamente aplicável ao assunto sob estudo.

“(...) a fé pública não é um fato social de que um ato ou uma circunstância sejam aceitos por bons pela comunidade. Pública, nessa expressão clássica, não se refere a conjunto expressivo de pessoas. Reporta-se ao direito público, cujos preceitos qualificam e justificam a fé, em documento, tendo-o por autêntico, seguro e apto a produzir efeitos de direito. Para que estes efeitos sejam acolhidos é imprescindível que a lei assim os reconheça: a união jurídica e exegética entre o substantivo (fé) e o adjetivo (pública) depende de que o Poder Público, através de processo legislativo apropriado, assim o declare. Desse modo, é possível afirmar que a fé pública, na consideração aqui dada, corresponde apenas à conseqüência jurídica da presunção da verdade que faz do documento a prova do fato ao qual se referia. A prova do fato oposto incumbe a quem o alegue.”[6]

Considerando a definição de fé pública proposta por Ceneviva, não há como evitar a conclusão segundo a qual a ata notarial constitui, sim, instrumento dotado de fé pública, sendo comparada, em seu valor probatório, à escritura pública, inclusive no que diz respeito ao registro de fatos. Este raciocínio vem sendo aceito pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, com conseqüências extremamente relevantes, inclusive para possibilitar o efetivo cumprimento de ordens judiciais, em situações nas quais há resistência da parte contrária ao cumprimento de ordem judicial, e a comprovação desta resistência depende do registro de fatos.

“Trouxe, a requerente, aos autos, ata notarial lavrada pelo Tabelião do Cartório do 3º Ofício de Notas e Protesto de Títulos de Brasília (fls. 272) atestando ter sido obstado o ingresso na mencionada assembléia, não só do 2º Tabelião do Cartório do 3º Ofício que pretendia registrar os fatos ali ocorridos, mas, também, de advogados, inclusive de um que se dizia representante da Ordem dos Advogados e de um outro que solicitava autorização para adentrar o recinto a fim de entregar ao Presidente da Mesa o original que tinha em mãos da decisão expedida por esta Presidência.

(...)

A Lei nº 8.935/94, em seu artigo 7º, atribui competência aos Tabeliães de Notas para lavrar ata notarial, instrumento por meio do qual o Tabelião, que tem fé pública, faz a narrativa dos fatos que presencia ou presenciou com seus próprios sentidos, sendo, portanto, documento que possui a mesma força probante da escritura pública.

Diante disso, por hora, defiro apenas o pedido constantes da petição de fls. 267 (ii), pelo que determino a expedição de ofícios às empresas Opportunity Zain S/A e Opportunity Fund, a fim de que se abstenham de empregar qualquer efeito à multicitada assembléia, se efetivamente realizada, bem como a prestarem esclarecimentos, em 05 (cinco) dias, acerca do noticiado descumprimento da decisão de fls. 146/147, proferida por esta Presidência em 18/05/2005.”[7]

Ou seja, o tabelião não está limitado ao registro de meras declarações, devendo igualmente ser-lhe atribuída a possibilidade de registrar fatos (mesmo porque, como visto, o registro de declarações passa necessariamente pelo reconhecimento de fatos perceptíveis com os sentidos do agente, ao menos no que diz respeito ao reconhecimento dos declarantes).

Deve-se reconhecer, portanto, que o conteúdo da ata notarial é dotado de fé pública, da qual decorre a presunção relativa da veracidade dos fatos ali narrados.

Cabe recordar que presunção relativa é aquela que, mesmo ocorrendo, admite prova em contrário. Ou seja, o fato demonstrado pela ata é considerado verdadeiro até que haja prova em sentido contrário.

Conclui-se, assim, o seguinte.

Se o tabelião de notas possui permissão legal e constitucional para lavrar instrumentos públicos, dotados de fé pública, para autenticar fatos e garantir a segurança, eficácia e publicidade dos atos, é possível concluir que estes instrumentos podem, sim, servir de prova de fato perante o Poder Judiciário, pelos seguintes motivos.

O agente possui competência para tanto, em razão dos permissivos legais e constitucionais acima transcritos;

O registro e a autenticação de fatos é fundamental para o exercício das funções legais do tabelião, citando-se novamente, como exemplo, o reconhecimento dos declarantes em uma escritura de compra e venda; e, finalmente

O sistema processual civil brasileiro não faz qualquer restrição à utilização da ata notarial como um meio de prova de fatos, o que foi igualmente demonstrado.

Sobre o autor
Francisco dos Santos Dias Bloch

Mestrando em direito processual civil pela PUC/SP. Especialista em direito processual civil pela PUC/SP. Advogado em São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BLOCH, Francisco Santos Dias. Ata notarial como meio de prova judiciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4076, 29 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31377. Acesso em: 22 nov. 2024.

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