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Código Florestal:

O tiro pode sair pela culatra

Agenda 30/08/2014 às 16:16

O Código de 2012 é uma das leis mais assistemáticas já vistas. Não adota princípios científicos no estabelecimento das áreas de proteção que deveria resguardar e desrespeita frontalmente o princípio da isonomia em diversos dispositivos e ao adotar o módulo fiscal como critério de dimensionamento dos imóveis agrários.

O Código Florestal de 2012 “aparentemente” libera pequenas propriedades agrárias da obrigação de manter Reserva Legal (RL). Ao tratar das áreas consolidadas em áreas de RL (Seção III, do Capítulo XIII, que trata das disposições transitórias), o Código dispõe, no art. 67, que, nos imóveis que detinham, em 22/07/08, área de até quatro módulos fiscais e que possuam remanescente de vegetação nativa em porcentuais inferiores ao previsto no art. 12, a Reserva Legal será constituída com a área ocupada com a vegetação nativa existente em 22/07/08. 

Ao tratar da agricultura familiar, no Capítulo XII, o Código dispõe, no art. 54, que para cumprimento da manutenção da RL na pequena propriedade ou posse agrária familiar - aquela explorada mediante trabalho pessoal do agricultor familiar e empreendedor familiar rural -, poderão “ser computados os plantios de árvores frutíferas, ornamentais ou industriais, compostos por espécies exóticas, cultivadas em sistema intercalar ou em consórcio com espécies nativas da região em sistemas agroflorestais”.

O Legislador adotou técnica legislativa assaz anfibológica. De um lado impõe obrigação de manter RL a todos os proprietários agrários, de outro, tenta abrir larga avenida para pequenos proprietários - familiares e não familiares, indistintamente -, para descumprimento da obrigação. Por fim, impõe ao grupo mais vulnerável, agricultores familiares, a obrigação de manter RL sob a forma de sistemas agroflorestais.

Ressalte-se que o Código instituiu dois padrões de proprietários agrários no que tange ao cumprimento da manutenção da RL. O primeiro refere-se aos que respeitaram as regras prescritas pelo Código Florestal de 1965. O segundo é composto por quem o descumpriu, o qual recebe tratamento privilegiado.

Os proprietários de imóveis agrários, independente do tamanho, que averbaram a RL, terão de preservá-la nos porcentuais especificados pelo Código de 1965. Os proprietários de imóveis agrários que desmataram a RL até 22-07-08, aparentemente, poderão manter a vegetação nativa que existir no imóvel numa porcentagem da área total do imóvel que pode variar em uma miríade de tiras que vai de 0 a 80%, na Amazônia, e de 0 a 20%, nas demais regiões.

Para facilitar a compreensão dos dispositivos, suponha três pequenos imóveis agrários, confrontantes e de áreas iguais. Para simplificar, desconsidere a existência de Áreas de Preservação Permanente. Considere que os imóveis possuam dois módulos fiscais, cada um, e que estão situados em Macapá-AP, cujo modulo fiscal é de 50 ha.

Abel cercou e averbou sua RL, em conformidade com o Código de 1965. Por estar situada na Amazônia, sua RL seria de 80 ha, restando 20 ha de livre utilização. Caim desmatou totalmente a vegetação nativa de seu imóvel e converteu 100 ha em pastagem. Noé desmatou 80% da área do imóvel agrário e deixou 20 ha de vegetação nativa.

Numa interpretação literal do art. 67, Caim estaria desobrigado de manter RL e teria 100 ha de livre utilização. Noé possuía 20 ha de vegetação nativa em 22/07/08. Em conformidade com o art. 67, a RL de Noé seria constituída com a área ocupada com a vegetação nativa, ou seja, 20 ha. Logo, a área de livre utilização de Noé seria de 80 ha.

Prosseguindo com a análise, imagine que Abel seja agricultor responsável por família numerosa, que vive da agricultura em situação extremamente precária, mal fazendo para se alimentar e adquirir remédios, roupas, calçados e material escolar para as crianças. Imagine Caim e Noé, agricultores não familiares, agentes públicos (motorista, professor, vereador, prefeito, deputado, senador, juiz, promotor, defensor) que recebe seus vencimentos regiamente no inicio de cada mês.

Considere, agora, Abel, Caim e Noé agricultores familiares, responsáveis por famílias numerosas, que vivem em situação extremamente precária. Noé poderá registrar no Cadastro Ambiental Rural somente o remanescente de vegetação nativa (20 ha) a título de RL, em conformidade com o art. 67 do Código Florestal? Ou Noé, na condição de agricultor familiar, deverá completar o remanescente de vegetação nativa de 60 ha com sistema agroflorestal, nos termos do art. 54 do Código Florestal? Está Caim isento de registrar RL, visto não deter nenhuma vegetação nativa até 22-07-08? Ou Caim terá de registrar RL sob a forma de sistema agroflorestal?

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Considerando Caim agricultor não familiar, precisará registrar RL no CAR? Deverá cumprir o disposto no art. 12 do Código Florestal e recuperar sua RL?

Na hipótese de se aplicar literalmente o art. 67, Caim, que descumpriu a lei em maior grau, será o grande beneficiado com o Código de 2012. Abel, o hipossuficiente sob a ótica material, provavelmente, sentir-se-ia no papel de bobo, pois foi punido por cumprir a lei e ademais, arcará, pelo resto da vida, com o ônus de manter a RL. Caim e Noé pensariam consigo mesmos: - “no Brasil o crime compensa”.

O Código Florestal consagra tratamento privilegiado aos agricultores familiares no que tange à manutenção da RL? Parece que sim, pois somente eles estão autorizados a manter a RL sob a forma de sistema agroflorestal (art. 54). Não existe no sistema constitucional brasileiro direito absoluto a tratamento igualitário. Todavia, distinções arbitrárias são vedadas, conforme a mais abalizada doutrina e as reiteradas decisões do STF. No entendimento do STF o tratamento desigual a situações desiguais mais exalta do que contraria o princípio da isonomia, sendo que sua realização está no tratar iguais com igualdade e desiguais com desigualdade[1].

Não faz sentido o Legislador exigir que o pobre agricultor familiar mantenha RL na forma de sistemas florestais (art. 54) e liberar um deputado ou senador, pequeno proprietário não familiar, de manter RL (art. 67). Somente ao agricultor familiar deve ser dado tratamento desigual com vista a realizar o princípio da isonomia. Isso significa que agricultores “não familiares” não foram contemplados com esse beneficio, logo terá de manter RL nas dimensões prescritas pelo art. 12.

Sendo Abel, Caim e Noé agricultores familiares responsáveis por famílias numerosas, que vivem em situação extremamente precária, nem o legislador e nem o intérprete não podem conferir tratamento diferenciado a pessoas e a situações substancialmente iguais, sendo-lhes constitucionalmente vedada qualquer diferenciação baseada no cumprimento (ou descumprimento) de uma lei que foi amplamente desobedecida por significativo número de proprietários agrários[2].

Obviamente, a interpretação e aplicação literal do art. 67 estão contaminadas de inconstitucionalidade por infringir frontalmente o princípio da isonomia (CF, art. 5º, caput) e por violar o direito de todos ao ambiente ecologicamente equilibrado, consagrado no art. 225 da Lei Superior. Na verdade, a interpretação literal do art. 67 gera teratologias, conforme exemplificado acima. Ela viola as mencionadas normas constitucionais e joga por terra princípios básicos que representam as vigas mestras do ordenamento jurídico, como a razoabilidade e a proporcionalidade.

Aqui há de se perguntar: Considerando que do universo de 5.181.595 de imóveis agrários (571 milhões de ha) 4,6 milhões têm até quatro módulos fiscais (90% do total de propriedades agrárias) e ocupam área de 135 milhões de ha (24% do total da área de propriedades agrárias), tendo em conta que 65% do total de imóveis agrários brasileiros têm até um módulo fiscal e ocupam apenas 8% da área agrícola do país e que as propriedades com mais de 15 módulos rurais representam somente 3% do total de imóveis do país e ocupam 56% da área agrícola, qual será o impacto ambiental se mecanismo restolho for considerado Constitucional?

A resposta é simples. Resultarão tratamentos discriminatórios em escala nunca imaginada. Ademais, tornará a gestão ambiental do país ainda mais complexa e caótica, dificultando o controle e anulando a possibilidade de conferir mínima racionalidade à proteção ambiental.

Caso se entenda que, em cada imóvel com área inferior a quatro módulos fiscais, a RL seja constituída com a área ocupada com a vegetação nativa existente em 22/08/08, a Amazônia terá a seguinte situação imobiliária no que tange às propriedades agrárias com até quatro módulos fiscais: a) imóveis agrários com 80% de ARL averbada conforme o Código de 1965; b) imóveis agrários com mais de 80% de vegetação nativa (com RL averbada ou não); c) imóveis agrários que dispõe de vegetação nativa em extensão que varia entre 0,1 a 80% de sua área total, com infinidade de dimensões de RL; d) imóveis agrários com 50% de vegetação nativa (art. 68); e) imóveis agrários sem vegetação nativa, com áreas totais de RL e de livre uso integralmente convertidas.

Se a interpretação literal do art. 67 prevalecer ao escrutínio do STF, os imóveis agrários de pequena dimensão não terão mais porcentagem homogênea de RL, mas uma gigantesca colcha de retalhos com os mais variados tamanhos de tiras de RL. Mutatis mutandis, a mesma análise se aplica as demais regiões do país. Por suposto, isto inviabiliza o monitoramento e o controle dessas tiras de RL em milhões de imóveis em todo o país.

O Código de 2012 é uma das leis mais assistemáticas já vistas. Difícil de compreender e dificílima de aplicar. Não adota princípios científicos no estabelecimento das áreas de proteção que deveria resguardar e desrespeita frontalmente o princípio da isonomia em diversos dispositivos e ao adotar o módulo fiscal como critério de dimensionamento dos imóveis agrários[3]. Consegue aglutinar todos os defeitos apontados no diploma revogado e ser mil vezes pior que o defasado e muitíssimo emendado Código Florestal de 1965. Os dispositivos supracitados são uma pequena prova disso. Não se pode negar que o Código Florestal de 2012 vai em direção oposta aos anseios dos produtores agrários de clareza, simplificação na aplicação da lei, justiça e segurança jurídica e dos interesses superiores do país.


Notas

[1] CARVALHO, E. F. Curso de Direito Florestal Brasileiro - Sistematizado e Esquematizado - De Acordo com as Leis 12.651/2012 e 12.727/2012, Juruá, Curitiba, 2013.

[2] Ibid.

[3] CARVALHO, E. F. Código Florestal, Relative Verfassungswidrigkeit “and” die Unterschiedlichkeit der Regelung: o tiro pode sair pela culatra. Artigo submetido à apreciação do Comitê Editorial da Revista Direito Ambiental da RT para fim de publicação.

Sobre o autor
Edson Ferreira Carvalho

Engenheiro Agrônomo, Doutor em Agronomia, Bacharel em Direito e Pós-Doutor em Direito (University of Notre Dame, USA), Professor de Direito Agrário e Ambiental do Departamento de Direito da Universidade Federal de Viçosa.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Edson Ferreira. Código Florestal:: O tiro pode sair pela culatra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4077, 30 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31423. Acesso em: 22 dez. 2024.

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