É clássica a diferenciação entre normas processuais e normas materiais no estudo da teoria da norma jurídica. Coloca-se a distinção em razão das vicissitudes que cada uma das espécies apresenta no momento de interpretação e aplicação. Tradicionalmente se diz que as normas processuais são direito adjetivo, enquanto as normas materiais configuram direito substantivo. Estas impõem uma relação jurídica material entre os sujeitos, com conteúdo apto à constituição de situações jurídicas substanciais, conformando direitos e deveres. Já as normas processuais, adjetivas, regulam a forma de tutela jurídica dos direitos através do processo, regulando o agir processual e materializando instrumento de tutela jurídica das situações substanciais – o processo não é um fim em si mesmo. Contudo, é importante desde já atentar que tal distinção não é rigorosa, na medida em que o direito de ação é direito autônomo, independente do direito substantivo, podendo ser exercido ainda que posteriormente a relação material não seja demonstrada. Por isso, como afirma Tercio Sampaio Ferraz Jr., tal distinção “tende a cair em desuso”[1].
O processo é instrumento para a tutela dos direitos materiais, ao mesmo tempo em que é por ele preenchido, em uma relação de circularidade. Se ao processo cabe a função de concretização dos direitos materiais, o direito material põe-se como o valor regente da criação, interpretação e aplicação das regras de processo. Conforme aponta Fredie Didier Jr., “não há processo oco”[2].
De toda forma, atente-se à distinção oferecida por Marcos Bernardes de Mello:
Diz-se de direito material toda norma jurídica de cuja incidência resultam fatos jurídicos que têm por eficácia a criação e a regulação de direitos → ← deveres, de pretensões → ← obrigações, ações → ← situações de acionado e exceções → ← situações de excetuado, que definem licitude ou ilicitude de condutas, estabelecem responsabilidades, prescrevem sanções civis ou penais, criem ônus ou premiações, dentre outras categorias eficaciais dessa natureza. De direito formal, ao contrário, são as normas que regulam a forma dos atos jurídicos ou o modo de exercício dos direitos, que prescrevem, exclusivamente, ritos, prazos, competências e formas processuais. Estas não atribuem direitos passíveis de subjetivação, nem mesmo direitos transisndividuais, apenas instituem instrumentos destinados à plena veridicidade do direito material.[3]
No que refere à prestação da atividade jurisdicional, da dicotomia entre as normas materiais e processuais decorre diferente classificação quanto aos defeitos de sua aplicação: não sendo observada norma jurídica material, estar-se-á diante de error in judicando, enquanto se não for observada a norma processual, o caso é de error in procedendo[4].
Doutra forma, a localização topográfica de uma norma não é suficiente para determinar sua natureza, sendo necessário observar seu objeto para se determinar a natureza de uma norma como processual ou material. De fato, as normas jurídicas materiais tratam das relações jurídicas substanciais entre os sujeitos, apontando a opção do ordenamento jurídico entre interesses conflitantes; já as normas processuais disciplina o poder do Estado na solução de tais conflitos através do exercício da jurisdição, não possuindo uma opção prévia de prevalência entre os interesses materiais das partes, mas somente oferecendo-as condições de proteger de forma eficiente os seus direitos. As normas sobre prova, por exemplo, encontram espaço tanto no código civil quanto no código de processo civil, havendo normas processuais e materiais em um e em outro código.
Além disso, outro fenômeno impõe a relativização da dicotomia: o neoconstitucionalismo. É que um dos seus desdobramentos é o processo de constitucionalização do direito, trazendo ao status constitucional diversas normas regentes do processo. De fato, estão inseridos em nossa Constituição diversos princípios processuais, com destaque para o devido processo legal, o contraditório, a inafastabilidade da jurisdição, por exemplo, além de regras processuais como o dever de motivação das decisões judiciais e de publicidade do processo (art. 93, IX, da CR).
O processo absorve, assim, os valores fundamentais do ordenamento jurídico, consagrados pela Constituição. Tal constatação faz perceber que o processo não conforma um ambiente ideologicamente neutro, muito pelo contrário, o processo é informado pelas opções valorativas da Carta, mormente pela proposta de retomada de valores, mais uma característica do neoconstitucionalismo. Nesse sentido, a lição de Arruda Alvim:
Já se verificou que o processo civil é inspirado em princípios fundamentais, e, assim sendo, finalisticamente suas normas têm, a nosso ver, caráter ideológico, o que se torna evidente ou perceptível quando observamos as relações íntimas do Direito Processual Civil com o Direito Constitucional.[5]
A partir daí pode-se afirmar que este Direito Constitucional Processual consagra direitos fundamentais processuais, indispensáveis à prestação da jurisdição em um ambiente de solidariedade social, diálogo e respeito à dignidade da pessoa humana. A nossa Constituição consagra, dentre outros, o direito fundamental ao processo devido, o direito fundamental ao contraditório e o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, consagrados pelos princípios processuais acima referidos.
Assim, a teoria dos direitos fundamentais pode ser pensada como uma teoria dos princípios, já que exercem uma função axiológica no sistema, para a normatização de seus valores e a instituição de fins[6]. Estando, então, intimamente ligados os princípios aos direitos fundamentais, não podem ser estudados em apartado.
Os princípios são espécie normativa caracterizada, como já se deixou transparecer, por possuírem um caráter menos descritivo que as regras e mais finalístico, na busca por um estado ideal de coisas, ao mesmo tempo em que consagram direitos fundamentais que possibilitam sua concretização. Esses direitos fundamentais, informados por uma dupla perspectiva, têm em seu caráter subjetivo a instituição de direitos judiciáveis, ou seja, situações jurídicas substanciais ativas para os cidadãos. Por outro lado, sob a perspectiva objetiva, os direitos fundamentais servem à estruturação do ordenamento jurídico, condicionando o legislador no momento de produção das leis, servindo-lhe como parâmetro de controle. Importante o que aponta Fredie Didier Jr.:
As normas que consagram direitos fundamentais têm aplicação imediata (art. 5°, §1°, CF/88), obrigando o legislador a criar normas processuais em conformidade com elas e, ainda, adequadas à tutela das situações jurídicas ativas (principalmente os direitos fundamentais).[7]
Dessa forma, chega-se à conclusão que os princípios processuais são normas com um aspecto inegavelmente material, aptas a conformar situações jurídicas substanciais, não se resumindo à somente regular a forma de tutela de direito. Inclusive, os direitos fundamentais consagrados a partir dos princípios processuais, eles próprios, podem ser objeto de tutela jurisdicional quando desrespeitados.
Por outro lado, também não se nega que os princípios processuais apresentam uma dimensão formal, na medida em que, apesar de não serem normas eminentemente descritivas, são aplicadas no processo a partir das decisões judiciais que os concretizam – afirmam as condutas que preenchem seu objeto – preocupadas com a ordenação da atividade estatal de tutela dos direitos. Assim, podem servir também de instrumento à tutela de outros direitos através do processo, orientando as condutas sem uma opção prévia pela posição jurídica substancial de uma parte ou outra.
Veja-se, por exemplo, o princípio do contraditório (art. 5°, LV, CR). Este princípio apresenta aspecto duplo, substancial e formal. Este último consagra a garantia de participação no processo, na medida em que às partes deve ser dada a oportunidade de serem ouvidas, comunicadas e participarem do diálogo processual. A dimensão formal tem características de norma processual pois, apesar de não ser regra (característica eminentemente descritiva), fundamenta a tomada de decisões pelo magistrado no sentido de dar voz e oportunidade de manifestação às partes. Por outro lado, o aspecto substancial do contraditório consiste na consagração da possibilidade de influência das partes na decisão judicial. Elas tem o direito de influenciar a tomada de posição do juiz, de serem ouvidas, de participarem ativamente e em cooperação da construção de uma decisão justa. Desta perspectiva substancial do contraditório decorre a impossibilidade de prolação de decisão surpresa, e o dever de fundamentação das decisões judiciais, decorre o direito fundamental ao contraditório, situação jurídica substancial.
Por fim, a título de retomada das ideias iniciais apresentadas: caso o magistrado não dê às partes a oportunidade de se manifestarem sobre a perícia, não intimando-as a respeito da apresentação do laudo e prolatando diretamente a sentença, incorrerá tanto em error in procedendo, pois fere o contraditório em sua acepção formal, concretizado no art. 433, parágrafo único, do CPC, quanto em error in judicando, pois verifica-se o desrespeito ao direito de influência, desrespeito à norma material que concede às partes o direito de se manifestarem e efetivamente influenciarem a decisão judicial e não sofrerem a quebra de expectativas através de decisões-surpresa. Afirma-se, assim, a dupla perspectiva.
O entendimento esposado somente corrobora com a ideia de que a dicotomia norma processual/norma material tende a cair em desuso, na medida em que uma mesma norma pode conter conteúdo formal e substancial, eminentemente quando se trata de princípios e sua estrutura normativa não descritiva, mas finalística. Cambi arremata, tratando a respeito do devido processo legal:
Com isto, relativiza-se a tradicional distinção entre substance e procedure. Direito processual e direito material não se diferem por critérios absolutos. Mesmo os direitos formais devem ser, igualmente, limitados por dados materiais da realidade, pelos substratos dos princípios jurídicos e pelas estruturas existentes, podendo-se afirmar que já conteúdos substanciais nas disposições processuais. Assim, evita-se a compreensão de que o direito processual é uma ciência rigorosamente formal, abstrata, com fórmulas puras e regras vazias, destituídas de conteúdo e neutras quanto a valores.[8]
O estudo das normas de direito material e de direito processual ainda é tema de grande importância para o direito processual, sendo repetidamente tratado pela doutrina clássica e contemporânea. Todavia, não mais se encara a diferenciação de forma estanque, mas por um Processo comunicativo circular. A compreensão do tema auxilia do aplicador do direito e vem sendo retomado em face da perspectiva de um novo Código de Processo Civil, mormente no que tange ao direito intertemporal, onde recebem tratamento diferenciado as normas materiais das normas processuais.
Notas
[1] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. São Paulo: Atlas, 2003. p. 144.
[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil – vol. 1. Salvador: JusPodivm, 2014. pp. 26-28.
[3] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. São Paulo: 2007. p. 32.
[4] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 95.
[5] ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: RT, 2011. p. 146.
[6] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT, 2013. pp. 65-69
[7] DIDIER JR., Fredie Ob cit., p. 41.
[8] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. São Paulo: RT, 2009. p. 220.