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Aplicação da inexigibilidade de conduta diversa nos crimes tributários

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Agenda 16/12/2014 às 12:16

O presente artigo trata da aplicação da inexigibilidade de conduta diversa nos crimes contra a ordem tributária, quando os empresários alegam dificuldades financeiras para exclusão da culpabilidade e, em consequência, do crime.

1. INEXIGIBILIDADE OU EXIGIBILIDADE DE CONDUTA CONFORME O DIREITO

Não há unanimidade a respeito do termo. Alguns dizem que o terceiro elemento da culpabilidade chamar-se-ia exigibilidade de conduta diversa[1], outros que se denominaria inexigibilidade de conduta diversa[2]. Os termos não são sinônimos, tanto que um afirma a exigibilidade e o outro a nega, sem mencionar que Nahum[3] assevera que, desde a época de Goldschmidt, exigibilidade e inexigibilidade aparecem, no seio do juízo de culpabilidade, como conceitos não simétricos: nem em todo caso que falte exigibilidade se irá falar em inexigibilidade, ao inimputável ou àquele que falta a significação antijurídica de sua conduta não se pode exigir o comportamento de acordo com o comando ou o dever-ser normativo.

Entretanto, nem o inimputável, a que faltaria a capacidade de culpabilidade, nem aquele que faltaria a significação jurídica de sua conduta, a quem se ausentaria o dolo, atuam amparados pela inexigibilidade.

Parte-se da premissa de que a inexigibilidade de conduta diversa é uma causa de exclusão da culpabilidade, ou seja, é o seu elemento negativo. Nahum[4] afirma que a inexigibilidade, na hipótese de excludente da culpabilidade, é decorrente do conteúdo material único dos elementos estruturais da culpabilidade, função motivadora da norma penal, constituída pela exigência de que o agente atue conforme sua personalidade adequada ao dever-ser normativo.

Segundo Welzel[5], estaria caracterizada a culpabilidade pela presença da imputabilidade e da possibilidade de conhecimento do injusto, porém isso não significa que o ordenamento jurídico não tenha razões para renunciar à reprovação da culpabilidade e exculpar o acusado, absolvendo-o da pena pela presença da inexigibilidade de conduta diversa.

Sob essa mesma concepção da existência de uma face negativa para a culpabilidade, Jakobs[6] formula-lhe o tipo negativo. Assim, a relação das causas de inexigibilidade com o tipo de culpabilidade é análoga à das causas de justificação com o tipo de injusto[7], sendo que a sua ausência não é condição para estar presente a culpabilidade, pois a inexigibilidade se apresenta como o tipo negativo da culpabilidade, ao passo que a imputabilidade e a consciência potencial da ilicitude se constituem nos elementos positivos.

A culpabilidade é diminuída ou excluída quando o sujeito age com o ânimo exculpante ou em um contexto exculpante, sendo que a obediência à norma é inexigível se a motivação não jurídica do agente imputável, que não respeita o fundamento de validade da norma, se explica por uma situação que, para o sujeito se constitui em uma desgraça, ou o agente é coagido, como no caso da coação moral irresistível. A inexigibilidade se fundamenta na situação de fato existente no momento da ação, pois o caráter ameaçador do contexto é que faz surgir a inexigibilidade de conduta diversa.

Dessa forma, o Judiciário somente se manifesta a respeito da exigibilidade quando a defesa alega, em um caso concreto, que um determinado comportamento era inexigível, então, há um pronunciamento judicial a respeito da presença da exigibilidade, a partir da demonstração da não existência de elementos caracterizadores da inexigibilidade, eis por que, sempre que se estuda a inexigibilidade de conduta diversa também se estuda a sua exigibilidade[8].

Veja-se o interessante caso julgado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, cujo relator foi Tourinho Neto[9]. Tratou-se de um recurso de uma sentença absolutória proferida pelo juiz federal da 9ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais em um processo cuja denúncia imputava à ré Maria das Graças de Jesus a prática do crime previsto no art. 171, § 3º, do CP, por estar aposentada por invalidez pelo Funrural e também como trabalhadora urbana, sob o nome falso de Maria Oliveira da Silva.

A acusada, em juízo, confessou a conduta, mas ponderou que era portadora de hanseníase contagiante desde os 14 anos de idade, o que, por si só, atribui-lhe um fardo bastante pesado. A doença trouxe dores e seqüelas inerentes ao próprio corpo e a sociedade lhe aumentou o sofrimento ao exigir-lhe a marginalidade e o afastamento do convívio de todos, até mesmo dos filhos, sendo que o laudo pericial constatou infiltração no rosto e nos nódulos das orelhas, nas mãos, nos braços, joelhos e pés, além de anestesia térmica tátil dolorosa nestes e nas pernas e rarefação dos supercílios.

O juiz de 1º grau absolveu a acusada sob o fundamento da inexigibilidade de conduta diversa, já que não lhe foram assegurados os direitos fundamentais pela Constituição da República. A liberdade, porque não teria a faculdade de autodeterminar-se optando por este ou por aquele comportamento, como trabalho, estudo, família, etc. A igualdade, porque se vê obrigada a trancafiar-se num leprosário, distante de tudo o que ocorre na vida social, além da dignidade da pessoa humana (tratada pelos semelhantes com diferença e discriminação).

No Tribunal, Tourinho Neto confirmou a tese da inexigibilidade de conduta diversa e acrescentou não se tratar de deixar impune um crime do qual se comprovou a materialidade e a autoria, mas, sim, de aplicação da lei penal em função de elementos que demonstram a condição pessoal, cultural e financeira da ré, dentro do contexto apresentado, uma vez que não se pode almejar o direito penal do terror e da punição pela punição, sem se levar em conta aspectos outros que não a letra fria da lei.

A ementa ficou assim redigida:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. ART. 171, 3º, DO CÓDIGO PENAL. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. EXISTÊNCIA. 1. Embora a autoria e a materialidade restaram demonstradas, restou comprovada, in casu, a existência de inexigibilidade de conduta diversa, que possibilita a exclusão de ilicitude. 2. A natureza da enfermidade da apelante carece de relevância frente à aplicação do direito penal, devendo ser consideradas as circunstâncias em que os fatos ocorreram. 3. Apelação não provida. (Apelação Criminal 2001.38.00.011318-9, Rel. Desembargador Federal TOURINHO NETO, TERCEIRA TURMA, julgado em 03.03.2008).

É possível afirmar que a culpabilidade é a reprovação por ter o sujeito agido antijuridicamente, optando por um desvalor, quando podia se abster de fazê-lo, em razão de lhe ser facultado motivar-se pelo valor imposto pela norma e pelo valor da norma como dever. Se o juízo positivo de culpabilidade é a reprovação, tanto por inexistirem circunstâncias concomitantes produtoras de uma motivação anormal, quanto por ser dado ao sujeito a opção de comportar-se de acordo com a norma, há necessidade de se estabelecer qual o seu juízo negativo, tornando uma ação não reprovável por ser inexigível conforme o Direito.

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2. A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA INEXIGIBILIDADE AOS CRIMES TRIBUTÁRIOS

A fim de se evitar possível má interpretação do que aqui se defende, de já se afirma que a inexigibilidade de conduta diversa, como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, é de melhor aplicação, quando se refere aos crimes contra a ordem tributária, nos casos do art. 2º, II, da Lei 8.137/90, e do art. 168-A, caput, do Código Penal[10], ou seja, nas hipóteses em que não ocorra falsificação ou fraude, porém não deve ser de plano afastada nas duas últimas hipóteses mencionadas.

É que os dispositivos do art. 1º, os demais itens do art. 2º e o art. 3º da Lei 8.137/90 e o art. 337-A do Código Penal não se referem ao inadimplemento dos tributos e contribuições sociais, mas às condutas de falsificação e fraude contra o fisco, mediante a utilização de artifício e ardil, o que denota uma prévia e deliberada intenção de ludibriar a fiscalização tributária e previdenciária[11].

Partindo-se da premissa de que a inexigibilidade de conduta diversa é mais bem aplicada nos casos de omissão de recolhimento de tributos, constata-se que grande parte das vezes resulta da situação da economia nacional, mormente na época atual de globalização, na qual a queda das ações da Bolsa de Pequim ou Jacarta afeta imediatamente todo o mercado mundial.

Nessa situação de pouca liquidez, os empresários – industriais, comerciantes e profissionais liberais – não possuem outra opção senão a de deixar de recolher as contribuições e os tributos para pagar aos empregados e as obrigações de empréstimos com instituições financeiras, a fim de garantir a sobrevivência da empresa. Acontece uma situação extraordinária de motivação, a impossibilidade de recolher os tributos em detrimento da sobrevivência do negócio, na qual se encontra fortemente diminuída a capacidade de atuar conforme a norma tributária.

Segundo Dobrowolski[12], não haveria, nessas circunstâncias, razoabilidade em agir de outro modo. A ordem jurídica não obrigaria o empresário a paralisar o seu negócio, deixando de pagar o salário aos empregados e os créditos aos fornecedores, para satisfazer os débitos de natureza fiscal e previdenciária, pois a ordem jurídica não determina a contratação de empréstimos bancários, para pagamento das obrigações tributárias, seja pela dificuldade de obtê-los em momento crítico seja pela extorsão dos juros bancários praticados no país.

Vislumbra-se, nesse caso, a presença da inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Conforme acentua Dias[13], sobre uma personalidade responsável poderá incidir uma sensível desconformação entre a censurabilidade externa objetiva do fato e a essência fundamental do que constitui sua dirigibilidade normativa, em virtude de fatores externos que não censuram a conduta, mas impuseram-lhe um desvio no cumprimento normal de suas intenções, portanto, estaria excluída a culpa ante a presença da inexigibilidade.

A circunstância concomitante da ausência de liquidez suficiente, presente no fato concreto, impele o sujeito a agir em desacordo com a norma, que lhe manda recolher o tributo. Em razão das dificuldades financeiras da empresa, ele se vê compelido a optar pelo pagamento da folha de salários e dos fornecedores, em detrimento do recolhimento das obrigações tributárias, aí incluídas as contribuições previdenciárias.

É possível afirmar que essa situação se enquadraria na inexigibilidade de conduta diversa porque o Direito protege valores e, em conseqüência, os impõe, mas, diante de determinados eventos concretos, torna-se compreensível a opção adotada pelo agente, considerando, excepcionalmente, que naquelas circunstâncias não se poderia exigir um comportamento de acordo com o dever-ser normativo (injusto) ou reconhece que o ato se deu em virtude de circunstâncias imperiosas que provocaram um desvalor da personalidade ética do agente (culpabilidade) não reprovável a ponto de justificar a necessidade de uma sanção[14].

Não se trata, pura e simplesmente, do reconhecimento de uma condição psicológica do sujeito. Na verdade, essa avaliação psicológica do agente somente é feita se primeiramente estiver constatada a presença das circunstâncias objetivas, ou seja, os pressupostos de fato que permitam a análise da existência da inexigibilidade da conduta diversa. Como bem defendeu Dias[15], o agente praticou um ato desvalioso em decorrência de circunstâncias imperiosas que lhe desviaram momentaneamente a conduta do comando da norma.

Jakobs[16] defende que são necessários, para caracterizar a causa supralegal de exclusão da culpabilidade na modalidade de inexigibilidade de conduta diversa, os seguintes requisitos: 1) deve existir uma situação de conflito; 2) que faça surgir o fato valorado objetivamente como solução adequada; 3) sem que o agente ou o terceiro beneficiado sejam responsáveis pela situação de conflito.

A partir dessa idéia, analisando a aplicação da inexigibilidade de conduta diversa nos crimes contra a ordem tributária, é possível afirmar que: 1) somente há uma situação de conflito quando está provado que a saúde financeira da empresa é precária ao ponto de encontrar-se em estágio de falência ou pré-falência; 2) que a opção feita tenha sido efetivamente no sentido de preservação da empresa e não para lazer ou aumento de patrimônio dos sócios; 3) que a precariedade dos recursos seja motivada pela situação econômica geral ou por fato estranho à responsabilidade dos sócios e não por gastos perdulários e má administração.

Um caso paradigmático da não possibilidade de aplicação da inexigibilidade de conduta diversa foi o julgado pela Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no dia 12 de setembro de 2006, sob o número 2004.83.00.021320-7[17]. Na ementa consta que a empresa possuía em conta corrente valor que excedia ao valor do débito e detinha patrimônio mais de dez vezes superior ao valor devido à previdência, conforme se verifica abaixo:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. MATERIALIDADE E AUTORIA INCONTESTES. CAUSA EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE. DIFICULDADES FINANCEIRAS QUE NÃO GUARDAM NEXO CAUSAL COM O DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES TRIBUTÁRIAS. DISPONIBILIDADE FINANCEIRA E PATRIMONIAL. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA NÃO VERIFICADA. IMPROVIMENTO DA APELAÇÃO. A inexigibilidade de conduta diversa capaz de excluir a culpabilidade do agente, consubstanciada na impossibilidade de recolher aos cofres da previdência social os valores recolhidos dos salários dos empregados, não pode ser apenas alegada, necessário se faz produzir prova do que se afirma, já que a autoria e materialidade criminosa restaram indubitáveis. Constatado que a empresa do apelante dispunha em conta bancária valor que excede ao valor do débito previdenciário e, ainda, que o apelante possuía, durante o período do débito, patrimônio mais de dez vezes maior que o devido à previdência, não se sustenta a tese de dificuldades financeiras intransponíveis ou de empobrecimento do agente.Tratando-se de crime omissivo próprio, o dolo é genérico, caracterizando-se a omissão como ilícito penal e não civil. Apelação improvida. (ACR 2004.83.00.021320-7, Rel. Desembargador Federal Lázaro Guimarães, Rev. Margarida Cantarelli, Quarta Turma, TRF5, julgado em 12.09.2006, DJ 13.10.2006, p. 1116).

Nesse caso, faltou o primeiro requisito, de que somente há uma situação de conflito quando está provado que a saúde financeira da empresa é precária ao ponto de encontrar-se em estágio de falência ou pré-falência. Como ficou demonstrado nos autos tanto a empresa possuía numerário em conta corrente suficiente para pagar o devido como era detentora de patrimônio suficiente para garantir todo o débito.           


3. APLICAÇÃO A UM CASO CONCRETO DA INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

A inexigibilidade de conduta diversa como causa excludente da culpabilidade penal pode ser largamente aplicada. O Superior Tribunal de Justiça, noticia Toledo[18], admitiu em tese, por sua 5ª Turma, a sua alegação, em crime de homicídio, veja abaixo a ementa:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. - Inexigibilidade de outra conduta. Causa legal e supralegal de exclusão de culpabilidade, cuja admissibilidade no direito brasileiro já não pode ser negada. - Júri. Homicídio. Defesa alternativa baseada na alegação de não-exigibilidade de conduta diversa. Possibilidade, em tese, desde que se apresentem ao júri quesitos sobre fatos e circunstancias, não sobre mero conceito jurídico. - Quesitos. Como devem ser formulados. Interpretação do art. 484, III, do CPP, a luz da reforma penal. Recurso especial conhecido e parcialmente provido para extirpar-se do acórdão a proibição de, em novo julgamento, questionar-se o júri sobre a causa de exclusão da culpabilidade em foco. (REsp 2492/RS, Rel. Ministro  ASSIS TOLEDO, QUINTA TURMA, julgado em 23.05.1990, DJ 06.08.1990 p. 7347)[19].

Há, por exemplo, a situação dos chamados “sacoleiros”, que, desempregados no Brasil, vêem-se premidos a comprar mercadorias no Paraguai e a aqui revendê-las. Discute-se, igualmente, a aplicação dessa excludente nos chamados crimes de não-recolhimento das contribuições previdenciárias na época própria, quando o agente opta por não fazê-lo para salvar da falência a empresa.

Os Tribunais Regionais Federais têm, em várias oportunidades, absolvido acusados de crimes contra a ordem tributária sob a tese da causa supralegal de exclusão da culpabilidade na modalidade de inexigibilidade de conduta diversa, dadas as circunstâncias[20].

PENAL. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. FALTA DE RECOLHIMENTO. SÓCIO NÃO-DIRIGENTE DA EMPRESA. 1. o sócio não-dirigente da empresa, de cujo capital social participa com apenas 2% não pode ser responsabilizado penalmente pelo não-recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados, máxime em 1990, quando houve o bloqueio dos ativos financeiros por força de ordem governamental, hipótese que guarda pertinência com causa supralegal da inexigibilidade de conduta diversa. 2. Apelação provida. (Apelação Criminal n. 0105454/96. Apelante: Justiça Pública. Apelados: Paulo Roberto Fusco e Ane Shirley Damasceno Fusco. Relator: Juiz Fernando Gonçalves. Brasília, 11 de junho de 1996. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, p. 68489, 16 set. 1996c).

Caso interessante de aplicação da inexigibilidade de conduta diversa foi julgado definitivamente pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em 9 de outubro de 2007, com número de origem 2003.38.00.028306-3/MG[21], cuja ementa segue abaixo transcrita:

PENAL. NÃO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. LEI Nº 8.212/91, ART. 95, ALÍNEA "D". LEI Nº. 9.983/2000. ART. 168-A, § 1º, INC. I, DO CÓDIGO PENAL. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. DIFICULDADES FINANCEIRAS. ALEGAÇÃO DE INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. ACOLHIMENTO. 1. Constitui a infração descrita no art. 168-A do Código Penal, deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional. 2. O crime de apropriação indébita previdenciária, que é crime omissivo puro, não exige que da omissão resulte dano, bastando, para sua configuração, que o sujeito ativo deixe de repassar à Previdência Social a contribuição recolhida dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional. 3. Autoria e materialidade demonstradas. 4. Acolhimento da tese de inexigibilidade de conduta diversa, como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, considerando que a conduta dos réus, apesar de típica, visto que se amolda à figura prevista no art. 168-A do Código Penal, e de não estar albergada por qualquer causa excludente de ilicitude, não é culpável, na medida em que não lhes era exigível portar-se de maneira diversa, em consonância com o ordenamento jurídico. 5. Apelação improvida. (ACR 2003.38.00.028306-3/MG, Rel. Desembargador Federal Hilton Queiroz, Quarta Turma, DJ de 30/10/2007, p. 78).

O processo tramitou, inicialmente pela 9ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais, com sede em Belo Horizonte, a partir de uma denúncia ofertada pelo MPF contra Maria Helena Nunes Barbosa, Newton Santos Meireles e Ivanhoé Luiz Prado Júnior, sob a acusação da prática da infração ao art. 168-A, caput, do Código Penal, ao fundamento de que os réus, na condição de responsáveis pela gestão financeira da empresa Main Empreendimentos de Enfermagem Ltda, ter-se-iam apropriado indevidamente de valores oriundos de descontos legais, efetivados sobre o salário de seus empregados, e destinados à autarquia previdenciária.

Examinando a denúncia, decidiu o magistrado absolver o acusado Ivanhoé Luiz Prado Júnior com base no inc. IV do art. 386 do CPP, por não haver, nos autos, comprovação da autoria, uma vez que não praticava nenhum ato de gerência na administração financeira da empresa, o mesmo fazendo em relação a Maria Helena Nunes Barbosa e Newton Santos Meireles, estes em razão da circunstância exculpante de inexigibilidade de conduta diversa, com escora no inciso V do art. 386 do CPP.

Em seu recurso, pediu o MP a reforma da sentença, a fim de  que os réus fossem condenados, sustentando que a apropriação indébita previdenciária foi cometida reiteradamente, durante vinte e seis meses, e que a dificuldade da empresa não poderia ser argüida como justificativa para a retenção dos valores, pois esses pertenciam à terceira pessoa, no caso ao INSS. Argumentou ainda que os acusados utilizaram recursos públicos na manutenção da empresa, tornando a conduta injustificável.

Disse mais que ainda que as dificuldades financeiras estivessem definitivamente provadas nos autos, não haveria base jurídica para admiti-las como causa de justificação da conduta, por não se tratar de retenção de valores pertencentes à empresa, mas sim de terceiros, empregados e do Poder Público.

Por fim, a acusação se utilizou de um argumento de cunho sociológico, segundo o qual o crime previsto no art. 168-A do CP tem por objetivo inibir a omissão do recolhimento de contribuições previdenciárias, que financiam a Seguridade Social, atendendo a parcela mais humilde da população brasileira, o que tornaria o não recolhimento de tributos um dos crimes mais graves do ordenamento jurídico brasileiro.

A defesa alegou que a empresa era uma escola de enfermagem e os acusados eram empregados dela quando pertencia à Associação dos Amigos do Hospital Mário Pena, que lhes propôs a transferência da titularidade como quitação dos créditos trabalhistas, até porque não estaria havendo retorno financeiro à entidade mantenedora. Os acusados juntaram aos autos documentos fornecidos pelo SPC – Sistema de Proteção ao Crédito – dando conta do registro da inadimplência dos alunos no valor de R$ 34.293,08, sendo que para corroborar tais alegações, foram ouvidas duas testemunhas, que confirmaram o fato.

Disse a defesa que, em razão do alto índice de inadimplência, os acusados passaram a atrasar os pagamentos, motivando o protesto de títulos e a propositura  de diversas ações trabalhistas contra a empresa. Na tentativa, infrutífera, de regularizar a situação financeira da escola, os empresários fizeram empréstimos, venderam bens e tentaram reduzir os custos do negócio, até chegar ao ponto de se verem ameaçados de despejo dos imóveis alugados, por falta de pagamento.

 A 4ª Turma do TRF da 1ª Região não reformou a sentença que absolveu os apelados, confirmando a tese adotada pelo juiz de primeira instância: presença de circunstância exculpante, na modalidade de inexigibilidade de conduta diversa, não obstante, demonstradas, nos autos do processo, a materialidade e a autoria delitiva. O Tribunal entendeu que a exigibilidade de conduta diversa, elemento da culpabilidade, tem por fundamento a possibilidade de punição somente às condutas que poderiam ter sido evitadas, de sorte que, nas circunstâncias do fato, o agente tenha a alternativa de realizar, em vez do comportamento criminoso, um que seja de acordo com o ordenamento jurídico.

No julgamento, ficou assentado que os acusados não seriam culpáveis, por inexigibilidade de conduta diversa, já que não havia possibilidade de se lhes exigir atitude diferente da que praticaram. Hilton Queiroz afirmou no seu voto, que considerando a situação injusta, em face de um caso concreto, de condenar-se unicamente porque o fato não foi previsto pelo legislador, surgiu a possibilidade de aplicação das causas supralegais de exclusão da culpabilidade, que não são previstas na legislação penal.

No caso analisado, a dificuldade financeira alegada pelos réus foi comprovada por documentos e testemunhas: contratos de locação das instalações físicas da empresa, protestos de títulos, ações trabalhistas movidas contra a empresa, lista de alunos inadimplentes da escola, etc. Diante das provas, o órgão julgador reconheceu que a conduta dos réus, apesar de típica, haja vista que se amolda à figura prevista no art. 168-A do CP, e de não albergada por qualquer causa excludente de ilicitude, não foi culpável, na medida em que, em consonância com o ordenamento jurídico, não lhes era exigível portar-se de maneira diversa da que o fizeram.

Sobre o autor
Roberto Carvalho Veloso

Juiz Federal no Maranhão. Professor Adjunto da UFMA. Mestre e Doutor em Direito Penal pela UFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VELOSO, Roberto Carvalho. Aplicação da inexigibilidade de conduta diversa nos crimes tributários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4185, 16 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31626. Acesso em: 23 dez. 2024.

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