PARTE II
Sumário : 1. A inexigibilidade de conduta diversa e os delitos culposos. 2. A inexigibilidade de Conduta Diversa nas Causas de Aumento de Pena. 3. A inexigibilidade de Conduta Diversa no Tribunal do Júri. 4. A Inexigibilidade de Conduta Diversa e a Insegurança Jurídica. 5. Conclusão.
1. A inexigibilidade de conduta diversa e os delitos culposos
Muito já se falou a respeito da impossibilidade jurídica de exigência de condutas conforme o Direito, e especialmente abordamos o tema na primeira parte desse trabalho. No entanto, muito pouco ou quase nada já se referiu sobre a possibilidade de adoção da tese no que respeita aos delitos de conduta tipicamente culposa.
Mas, diante de todos os princípios decorrentes do conceito de culpabilidade, é possível concluir pela adoção da inexigibilidade irrestrita mesmo em se tratando de infrações cometidas sob o manto da inobservância do cuidado necessário?
Ao que cremos, sim.
Isso porque com a evolução do conceito de culpabilidade, chegou-se à adoção da Teoria Normativa, segundo a qual o pressuposto da pena é puro juízo de reprovação, a ser formulado pelo julgador.
Assim, retirou-se da culpabilidade o dolo e a culpa, que foram inseridos no tipo penal, tendo em vista que se tratam de elementos integrantes da conduta [1].
Bem se vê, pois, que culpa e culpabilidade consistem em elementos de natureza completamente diversa: enquanto aquela diz respeito à falta de vontade dirigida ao resultado – o qual somente advém da inobservância da cautela imposta para a prática de determinada ação ou omissão –, esta se refere à censurabilidade do ato humano típico.
Ambas são independentes. São conceitos de natureza diversa.
Destarte, mesmo o sujeito agindo de forma imprudente, negligente ou imperita, sua ação pode não ser censurável.
E, se a ausência da censura advier da impossibilidade de se exigir, no caso concreto, que o sujeito aja consoante as regras de cuidado reclamadas ao Homo Medius, ter-se-á um caso de crime culposo inculpável pela presença da causa supralegal de exclusão da culpabilidade.
Pode-se pensar no seguinte caso:
Imagine-se um exímio motorista que vê o filho sofrer de grave enfermidade repentina e que, para salvar a vida do ente querido, coloca-o em seu automóvel a fim de levá-lo ao hospital.
Trata-se de hipótese em que a criança está prestes a morrer, se não atendida imediatamente. Qualquer minuto que se perca pode custar-lhe a vida.
Diante de quadro alterado das circunstâncias fáticas, o pai emprega no veículo velocidade por demais incompatível com o local em que trafega, vindo a lesionar transeunte que observava corretamente as regras de trânsito.
Pergunta-se: inobstante tenha cometido a figura típica do artigo 129, § 6º, do Código Penal, merece o motorista a reprimenda penal? Foi censurável sua conduta? Era exigível que colocasse em risco a vida do filho a fim de preservar a incolumidade física de terceiros?
O fato é típico, visto que o delito de ofender a integridade corporal de outrem é previsto na modalidade culposa e a culpa se fez presente na conduta do acusado, eis que não observou as regras de trânsito.
Mas, sob o prisma da culpabilidade, não era exigível que o agente respeitasse aquelas regras tendo em vista que a observância do cuidado necessário poderia custar o sacrifício de uma vida.
A situação de anormalidade era tal (risco de vida do ente querido) que o ordenamento jurídico não poderia exigir do agente outra conduta, que não a posta em prática.
Destarte, por encontrarem-se em patamar diverso culpa e culpabilidade, não há o que impeça se adote, nos delitos culposos, a tese da inexigibilidade de conduta diversa como excludente supralegal da culpabilidade, desde que a conduta causadora do resultado seja de tal sorte irrepreensível.
2. A inexigibilidade de conduta diversa nas causas de aumento da pena
Já abordamos a inexigibilidade de conduta diversa na prática das infrações penais, sem nos referirmos às circunstâncias do crime.
Indaga-se da possibilidade de afastamento de uma causa de aumento da sanção se a mesma se deu em circunstância adversa, a ponto de o ordenamento jurídico não poder exigir que não se tivesse feito presente.
A fim de responder a indagação, podemos sustentar que se a culpabilidade é um conceito graduável, de acordo com o grau de censura da conduta, que por sua vez é diretamente proporcional ao Quantum da sanção, então uma circunstância capaz de aumentar a pena, quando plenamente justificada, não pode influir na fixação da mesma. Não é parâmetro de graduação sancionatória.
Em outras palavras, mesmo que o sujeito seja culpável, por ter praticado uma conduta provida de reprovabilidade, e mereça a sanção penal, não terá aplicação a causa de aumento se sobre essa não tiver lugar o juízo de censura, por ser inexigível a sua ausência.
Para tanto, mister que a circunstância do crime advenha de uma conduta autônoma própria do agente, apenas a ele atribuível, já que a ausência de reprovação provém da inexigibilidade de conduta diversa proveniente do sujeito ativo do delito.
Assim, a título de exemplificação, o artigo 121, § 4º, do Código Penal, prevê que no homicídio culposo a pena é aumentada de um terço se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima.
Mas, no caso de a omissão de socorro (conduta autônoma) provir de circunstâncias adversas, diante da inexigibilidade de conduta diferente, a causa de aumento pode ser afastada.
É o caso do agente que, cometendo homicídio culposo na direção de veículo, não presta auxílio à vítima por temor de represália ou por buscar atendimento médico próprio em virtude de lesões sofridas no acidente.
Nesses casos, muito embora não haja discordância da possibilidade da isenção da causa de aumento de pena, tal faculdade, ao menos explicitamente, não é vista como hipótese de inexigibilidade de outra conduta, consoante se depreende das decisões supra, citadas por SILVA FRANCO et al (1995, p. 1617):
Não há aplicar a majoração do art. 121, § 4º, do CP se, sentindo-se ameaçado pelos circunstantes, deixa o agente de prestar imediato socorro à vítima, fugindo do local do sinistro (TACRIM – JUTACRIM 31/304).
É mais prudente não aumentar a reprimenda imposta ao acusado que abandona o local dos fatos sem prestar socorro à vítima, por temor da reação popular ante sua conduta punível ( TACRIM – SP – JUTACRIM XI/269).
Nos acidentes de trânsito não se majora a penalidade do réu que abandona o local com o escopo de procurar socorros médicos para estancar sangue que flui de suas próprias lesões (TACRIM – RT 412/290).
Mas, muito embora as decisões sob análise não contemplem a inexigibilidade de conduta diversa como eximente, o fato é que naquelas hipóteses a omissão de socorro é incensurável por não se poder reclamar do agente outro comportamento, hipótese em que a causa de aumento é afastada.
Dessa forma, pode-se falar em inexigibilidade de outra conduta como excludente, não só da pena, por completo, mas também de parte da pena, desde que a causa de aumento configure-se como um comportamento autônomo e justificado e seja inexigível que essa conduta não se tenha materializado.
3. A inexigibilidade de conduta diversa no tribunal do júri
Consoante já se ressaltou, inúmeras são as possibilidades de configuração de conduta ilícita, dotada da característica da incensurabilidade por impossibilidade de ação ou omissão compatível com o ordenamento jurídico.
A inexigibilidade de conduta diversa, pois, pode se fazer presente na violação das mais diversas espécies de bens jurídicos tutelados e, efetivamente, configura-se em delitos contra a vida.
Assim, diante da competência constitucionalmente prevista do Tribunal do Júri para o julgamento dessa espécie de delitos, a tese tem amplo espaço nos debates firmados perante o Conselho de Sentença.
Muito embora a questão esteja distante de uma solução pacífica, é lícito afirmar que se há possibilidade de absolvição, por ausência de culpabilidade (artigo 386, inciso V, do Código de Processo Penal), em qualquer espécie de infração, desde que configurada a inexigibilidade de conduta diversa, não menos justa é a absolvição em delitos de competência do Tribunal do Júri, baseada no mesmo argumento.
Além desse princípio isonômico, segundo o qual crimes de natureza idêntica merecem ser tratados com as mesmas regras gerais do Direito Penal, soma-se ainda mais um argumento que vem a possibilitar a aplicação da tese da inexigibildiade da conduta diversa em crimes contra a vida: é a possibilidade conferida aos jurados de decisão por convicção íntima, não estendida aos demais crimes, onde vinga a exigência da decisão fundamentada.
E, muito embora alguns Tribunais ainda entendam pela nulidade do julgamento onde se quesita a inexigibilidade de conduta diversa, a coerência da tese leva a crer seja imperativa a quesitação da ausência de culpabilidade por falta de autodeterminação, sob pena até mesmo de cerceamento de defesa do acusado, isso em razão do artigo 484, inciso III, do Código de Processo Penal, que prevê a imperatividade da formulação de quesitos sobre "qualquer fato ou circunstância que por lei isente de pena ou exclua o crime".
Assim, sendo a inexigibilidade de conduta diversa uma causa de exclusão da culpabilidade que, salvo melhor juízo, isenta de pena o réu, a sua quesitação é, porque não dizer, obrigatória.
A formulação do quesito, entretanto, deve obedecer à exigência de adequação ao caso concreto, não sendo lícito ao juiz, pois, indagar apenas se "o réu agiu por lhe ser inexigível conduta diversa".
É nesse sentido a orientação da jurisprudência que prega a adoção da tese, consoante se depreende do julgado trazido por TOLEDO (1991, p. 329):
Processual Penal — Júri — Homicídio. CPP, art. 484, III.
Inexigibilidade de outra conduta. Causa legal e supralegal de exclusão de culpabilidade, cuja admissibilidade no direito brasileiro já não pode ser negada.
Júri. Homicídio. Defesa alternativa baseada na alegação de não-exigibilidade de conduta diversa. Possibilidade, em tese, desde que se apresentem ao Júri quesitos sobre fatos e circunstâncias, não sobre mero conceito jurídico (grifo nosso).
Quesitos. Como devem ser formulados. Interpretação do art. 484, III, do CPP, à luz da reforma penal.
Recurso especial conhecido e parcialmente provido para extirpar-se do acórdão a proibição de, em novo julgamento, questionar-se o Júri sobre a causa de exclusão da culpabilidade em foco.
Sendo assim, não se vê obstáculo à possibilidade de absolvição, nos crimes de competência do Tribunal do Júri, exatamente pela configuração de uma hipótese de excludente da culpabilidade, que é a inexigibilidade de conduta diversa, adotada como causa supralegal de isenção da pena, o que configura hipótese de imperativa quesitação.
4. A inexigibilidade de conduta diversa e a insegurança jurídica
Consoante já se tentou ressaltar, a doutrina divide-se no que diz respeito à possibilidade de adoção da tese da inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade.
O fulcro de argumentação da doutrina contrária reside no receio de impunidade que tal sistemática geraria, em razão do alargamento das hipóteses de absolvição, que se estenderiam inclusive a crimes de extrema gravidade.
Fala-se na insegurança jurídica que seria criada em se outorgando ao julgador amplos poderes (poderes supralegais) de constatação da ausência de culpabilidade na conduta do agente.
Ou, nas palavras de Jescheck, apud MIRABETE (1994, p. 191):
[...] necessário é que no âmbito da culpabilidade sejam previstos expressamente os requisitos fixados para as dirimentes e que uma causa supralegal de exclusão pela inexigibilidade de conduta diversa implicaria o enfraquecimento da eficácia da prevenção geral do Direito penal e conduziria a uma desigualdade na sua aplicação.
No mesmo sentido posicionam-se ZAFFARONI & PIERANGELI (1997), ao afirmarem que a inexigibilidade como causa supralegal teria passado por irreversível fracasso, desde o final da II Guerra Mundial, uma vez que servia à impunidade de crimes bárbaros.
Dessa forma, a inexigibilidade de conduta conforme ao Direito só teria aplicação nas causas expressamente previstas pelo legislador, ou seja, funcionaria tão-somente como uma causa legal de exclusão da culpabilidade.
Tais argumentos, no entanto, não merecem acolhida.
Em primeiro lugar, inadmissível falar-se em excesso de poderes do julgador, quando se confere a ele, e apenas a ele, a prerrogativa de examinar a censurabilidade da conduta do réu. Afinal, a culpabilidade está na cabeça do juiz, e não na cabeça do agente.
A lei confere ao magistrado critérios rígidos dos quais se servirá para graduar a culpabilidade, cuja presença mais ou menos intensa será diretamente proporcional ao Quantum de pena merecido pelo sujeito ativo do delito.
Vale ressaltar a lição de TOLEDO (1991, p. 329):
Muito se tem discutido sobre a extensão da aplicação do princípio em foco, entendendo alguns autores que sua utilização deva ser restringida às hipóteses previstas pelo legislador para evitar-se mais uma alegação de defesa que poderia conduzir à excessiva impunidade dos crimes. Não vemos razão para esse temor, desde que se considere a "não-exigibilidade" em seus devidos termos, isto é, não como um juízo subjetivo do próprio agente do crime, mas, ao contrário, como um momento do juízo de reprovação da culpabilidade normativa, o qual, conforme já salientamos, compete ao juiz do processo e a mais ninguém.
No mesmo diapasão, a Teoria Normativa construiu o entendimento segundo o qual a culpabilidade se mede pela presença dos elementos imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
E, aplicando-se a Teoria das Circunstâncias Concomitantes de Frank, a ausência de qualquer desses elementos da culpabilidade tem o condão de eximi-la.
Por outro lado, não se pode afirmar que crimes atrozes não mereceriam a aplicação da tese da inexigibilidade de conduta diversa como isentora genérica da pena, porquanto qualquer espécie de delito merece o mesmo tratamento extraído da Parte Geral do Código Penal, somente diferenciando-se no que diz respeito à aplicação da pena.
Não se pode, por exemplo, admitir, nas mesmas circunstâncias, o reconhecimento do estado de necessidade para um delito de furto e não admiti-lo para um homicídio, por mais grave que seja.
Desde que configurada a excludente, seja da ilicitude, seja da culpabilidade, desimporta a gravidade da infração, pois em qualquer caso a punição torna-se injusta. Não existem crimes "inabsolvíveis".
A propósito, mister ressaltar a lição de FREDERICO MARQUES (1965, p. 227):
A inexigibilidade de outra conduta pode ser invocada, apesar de não haver texto expresso em lei, como forma genérica de exclusão da culpabilidade, visto que se trata de princípio imanente no sistema penal. Nem se diga que, com isto, haverá uma espécie de amolecimento na repressão e na aplicação das normas punitivas. Quando a conduta não é culpável, a punição é iníqua, pois a ninguém se pune na ausência de culpa; e afirmar que existe culpa diante da anormalidade do ato volitivo, é verdadeira heresia.
Sendo assim, nem se fala em aplicação benéfica da lei, uma vez que a adoção da inexigibilidade de outra conduta como causa supralegal de exclusão da culpabilidade é, pura e simplesmente, corolário da correta hermenêutica das disposições penais, não implicando afrouxamento do caráter retributivo da pena, já que a falta de sanção não é vista como impunidade, nem mesmo como relaxamento do caráter preventivo da pena, pois a ausência de punição, quando a culpabilidade é inexistente, não pode ser vista como incentivo à prática criminosa, mas, antes sim, como forma de evitar a iniquidade de um decreto condenatório.
Não há se falar sequer na aplicação do princípio da despenalização, porque despenalização só há quando é possível a aplicação da pena e esta não é aplicada por razões de política criminal.
Aqui não se chega à possibilidade de aplicação de pena, porque a ausência de culpabilidade enseja sua isenção.