O Ministro Dias Toffoli concedeu liminar na Reclamação nº. 17678 para suspender decisão que afastou um Prefeito. Na reclamação, questiona-se decisão que foi proferida em uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público para fins de responsabilização por irregularidades em processos de licitação para aquisição de merenda para as escolas municipais. Segundo consta dos autos, o Prefeito foi incluído na ação por suposta omissão na apuração dos fatos. O Magistrado, após concluídas medidas de busca e apreensão de bens e documentos na sede da Prefeitura, determinou o afastamento do Prefeito do cargo ao antecipar os efeitos da tutela pretendida pelo Ministério Público.
Imaginem!
Contra esta decisão de primeira instância, o Prefeito recorreu ao Tribunal de Justiça e em seguida ao Superior Tribunal de Justiça. O pedido foi rejeitado nas duas instâncias, embora o Tribunal local tenha fixado o prazo máximo de 180 dias para o afastamento (idem).
Na Reclamação, o Prefeito argumenta que a decisão de primeiro grau teria desrespeitado entendimento firmado pelo Supremo no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 144, no sentido de que “somente pode haver a suspensão dos direitos políticos com a superveniência do trânsito em julgado da condenação judicial”. Mas é óbvio!
Ao analisar o pedido de liminar, o Ministro Dias Toffoli lembrou que a Lei nº. 8.429/1992 permite à autoridade judicial determinar o afastamento do cargo do agente público, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual. Entretanto, ele destacou que a análise da Reclamação pressupõe discutir se o parágrafo 1º. do art. 20, da Lei de Improbidade, ao se referir a “agente público”, abrange agentes políticos exercentes de mandato eletivo. Segundo o relator, a situação criaria, “antes de qualquer juízo definitivo de culpa por ato de improbidade, a possibilidade de o detentor de mandato popular ter, de forma transversa, parcialmente suspensos seus direitos políticos ao ser afastado das funções que lhe foram outorgadas pelo voto popular”.
Aproveitou a oportunidade o Ministro para lembrar que após a edição da Lei Complementar nº. 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), para se afastar um candidato a mandato eletivo somente é “constitucional e razoável” exigir-se condenação por órgão colegiado do Poder Judiciário, ainda que sem trânsito em julgado (diga-se de passagem, discordo no tocante à dispensabilidade do trânsito em julgado, tendo em vista o princípio da presunção de inocência).
Em razão disso, ele entendeu que, em juízo cautelar, “não é legítimo se admitir que aquele que já se encontra eleito por vontade popular e investido no mandato tenha o exercício de suas funções interrompidas por ordem judicial provisória para fins investigatórios, antes mesmo de qualquer decisão condenatória, sequer monocrática”.
Destarte, "nesta análise preliminar do caso, sem se aprofundar na tese dos autos", o Ministro suspendeu os efeitos da decisão na parte em que determinou o afastamento do Prefeito do cargo. O relator destacou ainda que tal entendimento não afasta a possibilidade de que o juízo competente para julgar a ação civil pública estabeleça providências cautelares para resguardar a instrução probatória, desde que sua execução não resulte na impossibilidade de exercício do mandato eletivo.
Antes de qualquer consideração, é preciso que se entenda a diferença entre legitimidade direta e indireta: o Prefeito foi eleito (se certo ou errado não importa), o Juiz não; aquele, repita-se, certo ou errado, foi "votado", ao passo que este fez um concurso público (autorizado pela Constituição Federal, óbvio). Mas são legitimidades, evidentemente "diferentes". Aliás, quem escolhe errado, tem (pelo menos em tese) a oportunidade de escolher de outro modo.
Pois bem.
Recentes decisões do Supremo Tribunal Federal chamaram-nos a atenção, seja pela importância do tema, seja pelas consequências advindas do posicionamento a ser adotado pela Suprema Corte.
Não me parece despiciendo relembrar que os atos de improbidade administrativa não são ilícitos penais, mas infrações de outra natureza (civil, administrativa e política). Logo, a previsão deveria estar contida em outro diploma, jamais no Código de Processo Penal, livro reservado à disciplina da persecutio criminis e de seus consectários.
Maria Sylvia Zanella di Pietro esclarece que “a natureza das medidas previstas no dispositivo constitucional está a indicar que a improbidade administrativa, embora possa ter conseqüência na esfera criminal, com a concomitante instauração de processo criminal (se for o caso) e na esfera administrativa (com a perda da função pública e a instauração de processo administrativo concomitante) caracteriza um ilícito de natureza civil e política, porque pode implicar a suspensão dos direitos políticos, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento dos danos causados ao erário.”[1] Aliás, o art. 37, § 4º. da Constituição Federal é expresso no sentido de que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (grifo nosso). Observa-se que o próprio texto constitucional nitidamente faz a distinção.
Observa-se que o conceito de infração penal (crime e contravenção) é dado pela Lei de Introdução ao Código Penal que define crime como sendo “a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.” (art. 1º. do Decreto-Lei n. 3.914/41).
Estas definições, por se encontrarem na Lei de Introdução ao Código Penal, evidentemente regem e são válidas para todo o sistema jurídico–penal brasileiro, ou seja, do ponto de vista do nosso Direito Positivo quando se quer saber o que seja crime ou contravenção, deve-se ler o disposto no art. 1º. da Lei de Introdução ao Código Penal. O mestre Hungria já se perguntava e ele próprio respondia: “Como se pode, então, identificar o crime ou a contravenção, quando se trate de ilícito penal encontradiço em legislação esparsa, isto é, não contemplado no Código Penal (reservado aos crimes) ou na Lei das Contravenções Penais? O critério prático adotado pelo legislador brasileiro é o da distinctio delictorum ex poena (segundo o sistema dos direitos francês e italiano): a reclusão e a detenção são as penas privativas de liberdade correspondentes ao crime, e a prisão simples a correspondente à contravenção, enquanto a pena de multa não é jamais cominada isoladamente ao crime.”[2]
Por sua vez, Tourinho Filho afirma: “Não cremos, data venia, que o art. 1º. da Lei de Introdução ao Código Penal seja uma lex specialis. Trata-se, no nosso entendimento, de regra elucidativa sobre o critério adotado pelo sistema jurídico brasileiro e que tem sido preferido pelas mais avançadas legislações; (...) Veja-se, no particular, Marcelo Jardim Linhares, Contravenções penais, Saraiva, 1980, v. 3, p. 781: ´Assim, quando a infração eleitoral é apenada com multa, estamos em face de uma contravenção´.”[3] Manoel Carlos da Costa Leite afirma que “no Direito brasileiro, as penas cominadas separam as duas espécies de infração. Pena de reclusão ou detenção: crime. Pena de prisão simples ou de multa ou ambas cumulativamente: contravenção.”[4]
Eis outro ensinamento doutrinário: “Como é sabido, o Brasil adotou o sistema dicotômico de distinção das infrações penais, ou seja, dividem-se elas em crimes e contravenções penais. No Direito pátrio o método diferenciador das duas categorias de infrações é o normativo e não o ontológico, valendo dizer, não se questiona a essência da infração ou a quantidade da sanção cominada, mas sim a espécie de punição.”[5] Luiz Flávio Gomes afirma: “Por força do art. 1º. da Lei de Introdução ao Código Penal, infração punida tão-somente com multa é contravenção penal (não delito).”[6]
Vê-se, às escâncaras, que aqueles tipos elencados na Lei de Improbidade Administrativa, decididamente, não são infrações penais, mas infrações político-administrativas. Logo, sequer sistematicamente seria cabível delas tratar em sede processual penal. Mas, não só por este equívoco legislativo-formal pecava a nova lei. Com efeito, e ainda segundo a lição de Luiz Flávio Gomes, “a competência por prerrogativa de função versa exclusivamente sobre atividades criminais. Não se estende à investigação de natureza civil.”[7]
Mutatis mutandis, as ações diretas de inconstitucionalidade propostas Confederação Nacional do Ministério Público e pela Associação Nacional dos Magistrados (respectivamente, nºs. 2797 e 2860).
Portanto, na esfera extrapenal, afastar quem foi eleito pelo povo só quem o elegeu, direta ou indiretamente (neste caso, a Câmara de Verreadores - art. 4º. do Decreto-Lei nº¸201/67.)
Notas
[1] Ob. cit., p. 678.
[2] Comentários ao Código Penal, Vol. I, Tomo II, Rio de Janeiro: Forense, 4ª ed., p. 39.
[3] Processo penal, Vol. 4, São Paulo: Saraiva, 20ª. ed., p.p. 212-213.
[4] Manual das Contravenções Penais, São Paulo: Saraiva, 1962, p. 03.
[5] Eduardo Reale Ferrari e Christiano Jorge Santos, “As Infrações Penais Previstas na Lei Pelé”, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, n. 109, dezembro/2001.
[6] Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, n. 110, janeiro/2002.
[7] Ob. cit., p. 162.