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Cidadania tutelada

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Agenda 01/08/2002 às 00:00

13. À luz do que vem de ser exposto, reflitamos, agora, sobre a República Federativa do Brasil e sobre os brasileiros, proclamados cidadãos desse mesmo Estado.

Porque jurista, falando para juristas, comecemos pelo formal jurídico pertinente: nossa Constituição.

A nossa, como as demais, busca definir, com largos traços, preambularrnente, a cara do Estado que passa a organizar. Obviamente, aqui, como seria inevitável, bipartem-se todas as constituições, como se biparte o fundamento de nosso pensar político, ora dando prioridade ao indivíduo, sem descartar sua socialidade, ora emprestando primazia ao social, sem eliminar a individualidade, ou adotando, em termos radicais, uma ou outra posição.

Alguns exemplos serão elucidadores. No primeiro sentido a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, que no seu art. 2º proclamava ser o fim de toda associação política a proteção dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. No segundo sentido, o que se continha na Enciclopédia do fascismo, asseverando, peremptória: "tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado; o indivíduo só existe enquanto parte do Estado e somente enquanto permanece subordinado às necessidades do Estado"; ou o que proclamava o Manual do Nacional-Socialismo: "você é nada; a comunidade racial é tudo".

Nos nossos dias, os dizeres são menos fortes, mas não menos expressivos, e ainda quando postos na sombra o Estado e a raça, outros "coletivos", são trazidos para o primeiro plano. A Constituição chinesa, por exemplo, de modo muito límpido e sincero, diz ser o Estado que ela organiza unia "ditadura- democrática popular"; Cuba afirma-se "Estado socialista de operários, camponeses e demais trabalhadores manuais e intelectuais"; e a Rússia proclamava-se organizada para atender aos interesses dos trabalhadores".

No outro lado, a Constituição portuguesa, que se propõe instituir uma república baseada na dignidade da pessoa humana, acrescentando, também, ser um Estado de Direito baseado na soberania popular e no respeito aos direitos e liberdades fundamentais, ou a Constituição espanhola, proclamando ser a Espanha um Estado social e democrático de direito que propugna, como valores superiores de seu ordenamento jurídico, a liberdade, a justiça, a igualdade e o pluralismo político.


14. E nós, que dizemos de nós mesmos?

Dizemo-nos um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (Preâmbulo).

Afirmamos, complementarmente, serem fundamentos desse Estado a cidadania e a dignidade da pessoa humana e ainda enfatizamos, como diretriz de nossas relações internacionais, a prevalência dos direitos humanos (art. 1º, II e III e 4º II).

Acredito, assim, seja válido asseverar que repudiamos a absorção do individual pelo social, como igualmente repelimos a subordinação do social ao individual, aceitando haver uma relação dialética ineliminável entre indivíduo e sociedade, sendo impossível realizar se esta sem preservar aquele, mas subordinando-o a exprimir sua individualidade numa sociedade politicamente organizada, isto é, de modo compatível com a ineliminável interdependência entre os homens, postas como valores de igual peso tanto a liberdade quanto a igualdade.

Enfim, proclamamo-nos um Estado de Direito e um Estado Social, recusando estejam em insuperável relação de contradição, liberdade e igualdade, como tantos afirmam e buscam comprovar.

Não é esse, entretanto, o problema que se fez objeto desta nossa indagação. Aceitando sejam conciliáveis o Estado Social e o Estado de Direito, o que nos interessa perquerir, agora, é em que termos a cidadania, entre nós, foi formalizada e está sendo efetivamente realizada.

No âmbito do estritamente formal, nossa Constituição é inexcedível. Nenhuma outra no mundo é mais rica e mais prolixa em deferir ao indivíduo direitos fundamentais. Nossos direitos individuais e coletivos se espraiam em setenta e sete incisos do artigo 5º de nossa Constituição e protegem desde a nossa intimidade até as mais sociais de nossas manifestações pessoais, locomoção, expressão, reunião, informação; todas essas esferas do indivíduo são devidamente enunciadas e erigidas a direitos fundamentais. Nem ficamos aquém em matéria de direitos sociais. O art. 6º os menciona em termos gerais, abrangentes, inclusive, de capítulos outros que não os destinados aos direitos fundamentais, e os artigos 7º, 8º e 9º enumeram os mais diretamente ligados à atividade econômica, num conjunto de quarenta e dois incisos.

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No tocante à definição de instrumentos processuais a serviço da efetivação desses direitos somos, por igual, pródigos. Há previsão da ação popular, da ação penal subsidiária, do mandado de segurança individual e coletivo, do mandado de injunção, do habeas-data, da ação direta de inconstitucionalidade, da ação civil pública, sem falar numa ainda não de todo esclarecida arguição de descumprimento de preceito fundamental. Por força de tanto estímulo, temos hoje ações coletivas em quantidade de causar inveja, e fizemos nosso linguajar quotidiano falar sobre a tutela dos interesses difusos, transindividuais, coletivos, homogêneos e conhecemos, inclusive, as famosas ações de classe dos países anglo - saxões.

A rigor, portanto, nada nos cumpre pretender, pois tudo já obtivemos. Apenas nos cabe usufruir, felizes, desse paraíso político - jurídico - institucional.


15. Infelizmente a realidade é bem diversa, por serem coisas também radicalmente diversas o "dizer sobre algo" e o "ser" desse algo.

Como advertiu HANS WELZEL, o direito, quando se refere a qualquer ente, deve reconhecer que este está inserido numa certa ordem, que o inundo não é um "caos" e que o conhecimento jurídico, como todo conhecimento, não altera o objeto do conhecimento. Se o direito quer atuar sobre um ârnbito da realidade, deve reconhecer e respeitar a estrutura ôntica desse âmbito e não inventar esta estrutura porque, neste caso, regulará outra coisa e obterá outro resultado.

Quando o legislador desconhece as estruturas lógica - reais, não deixa, necessariamente, de produzir direito, mas limita-se a arcar com as conseqüências políticas do seu erro: se o legislador - ou o jurista idealista - pretende definir as vacas 4 4no sentido jurídico" como uma espécie de cachorro - grande, negro, com dentes enormes e que uiva nas estepes - pode, obviamente, fazê-lo; apenas deverá arcar com as conseqüências quando pretender ordenhar o lobo." 16

O social, já denominado, com acerto, de "segunda natureza", tem, por igual, suas estruturas lógico - reais e ao desconhecê-las, o legislador ou o jurista arca com as conseqüências da desfuncionalidade que determina, pois lhe falta o poder de "inventar o mundo".

Seguro concluir-se, portanto, nada valer "dizer-se" que a minhoca é um leão. Esse 4 discurso fútil" é impotente diante da realidade e a minhoca, em razão dele, não se tornará carnívora, nem será capaz de abater um touro, antes, porque alienada, será presa fácil do primeiro pinto que a descobrir.

Porque é assim, podemos e devemos continuar falando em "cidadania tutelada". E que tutela!!!


16. Se tudo que foi dito em nossas considerações precedentes é exato, nenhum de nós hesitará em definir a nossa cidadania corno urna cidadania tutelada, se não inexistente. Se formos leais aos fatos, em sua crueza, em sua historicidade, concluiremos que no nosso espaço jurídico - político - social só conhecemos um tipo de cidadania - a cidadania tutelada.

Em termos de dominação pela institucionalização do não saber somos inexcedíveis. Se não quisermos ser prolixos em palavras, suficiente será lembrarmos que sendo a 11º ou 12º economia do mundo somos, em qualidade de vida, o 85º ou 86º país da Terra. O que diz tudo em termos de dependência pelo não saber e dependência pelo não possuir.

Os indicadores sociais, tão nossos conhecidos, são alarmantes. Nossos "alfabetizados " o são, esmagadoramente, apenas semi - alfabetizados, convivendo com analfabetos totais, todos morando mal, comendo mal, mal transportados, socialmente mal informados e socialmente mal educados. Enfim, excluída a microscópica elite e os setores minoritários da alta classe média mais próxima daquela (segmentos em favor dos quais o poder econômico e o poder ideológico buscaram organizar politicamente o Brasil, nos últimos trinta anos) só criaturas tragicamente incientes e dependentes povoam o nosso país. (Ver Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial, de 1991 - Banco Mundial).


17. Mas não é só a realidade que se contrapõe ao "discurso fútil". Mesmo a nível jurídico - formal - institucional porfiamos por inviabilizar a cidadania.

Desde a promulgação de nossa Constituição, eu a tenho cognominado de "Constituição frente - única ", porque ela, segundo afirmo, de modo talvez exageradamente irreverente, cobre as partes pudendas anteriores (ao enunciar direitos e garantias fundamentais) mas deixa sem qualquer cobertura as partes pudendas posteriores (a organização do Estado) e se vista de frente parece composta, vista pelos fundos revela ser um magnífico out door de colônia nudista.

Se fomos generosos no "enunciar", fomos mesquinhos no assegurara, mesquinhos, cautelosos e astutos.

O exercício do poder político no Brasil é algo que escapa a todo e qualquer controle social pelos governados. Não só em suas manifestações mais eminentes, de cúpula, mas por igual na prática dos agentes situados nos mais ínfimos degraus da hierarquia dos que, na terra de Macunaíma, são autoridades".

Poderia citar exemplos aos milhares, ocorridos no dia a dia de todos nós, mas seria desnecessária perda de tempo para comprovar o que dispensa comprovação, vivido que é por todos nós, os cento e poucos milhões de habitantes deste Brasil.

Talvez valesse a pena, entretanto, narrar um "ocorrido" bem recentemente. Uma advogada saia de seu escritório, quando viu um guarda de trânsito colocar uma papeleta de "multa" no parabrisa de um carro e começar a esvasiar os pneus do automóvel. Um tanto indignada (é jovem, ainda, e inexperiente) dirigiu-se ao policial e fez ver a ele que estava praticando um abuso, pois se era de seu dever multar, era também de seu dever não praticar o que a lei não autoriza praticar contra o cidadão. O policial não teve dúvida. Disse a ela que, como lição, para que respeitasse, no futuro, a autoridade, ia esvasiar os pneus do carro dela. E esvasiou.

Dirão os "teóricos" que ela deveria dirigir-se aos superiores desse guarda e fazer valer seus direitos de cidadã. E aí que tudo falha, pois o Estado está organizado de modo a desencorajar qualquer resistência ao poder político. Os que tentaram responsabilizar agentes públicos sabem muito bem disso. Máxime nós, advogados.


18. Somos, por outro lado, um arquipélago de autonomias. Todos queremos ser "suseranos ", assumindo o compromisso "moral" de quitarmos os privilégios que nos outorgamos com nosso empenho em efetivar a cidadania dos "vassalos", como se fosse possível superar essa antinomia - vassalos que têm senhores e são cidadãos.

Consideramos agressão inaceitável à nossa soberania à nossa respeitabilidade cívica prestarmos contas de nossos atos aos outros. Quem é responsável não é autoridade. Os que são "autoridade" só podem ser responsabilizados pelos seus pares. E em termo.

Não é só o Poder Judiciário que se coloca acima do bem e do mal, olhando apenas para seu próprio umbigo, em termos de responsabilidade. É também o Legislativo, que se imuniza a todo controle social, protegendo-se com a mera participação popular periódica das eleições, encabestrado o eleitor num sistema partidário e num processo eleitoral moldados para possibilitar a invulnerabilidade dos interesses hegemônicos. É o Executivo, com um poder de cooptação, corrupção e contenção que só não funciona quando nas mãos de incompetentes absolutos ou loucos manifestos. É um Tribunal de Contas adredernente organizado para não ser tribunal, nada julgando, nem fazendo contas de nada, nada fiscalizando. É um Banco Central dependente, posto a reboque do Executivo e das pressões econômicas do empresariado nacional. É um Ministério Público que se auto-erigiu em "ombudsman", corporativamente legitimado, como se fosse a instituição um "útero" paridor de legitimações. É uma Polícia Federal e uma Polícia Civil, ao lado de uma terceira, a Polícia Militar, todas senhoras de seus narizes, petulantes, exigentes, arbitrárias, fiscalizando e investigando todos e sem que nenhum segmento da sociedade possa flscalizá-las ou investigar-lhes os desmandos. É um sindicalismo com o privilégio de se manter mediante contribuição forçada de não sindicalizados, decidir sem representatividade, representar sem legitimidade, dispensado da competição, da doutrinação e da arregimentação, pelegos / democráticos deste Brasil inventado em 1988. São os meios de comunicação, que se auto-canonizaram, e no altar convocam a Nação para orar suplicante, que eles velarão pelo bem de todos, contanto que não tenham que prestar contas a ninguém e possam construir seus poderosos grupos econômicos infiltrados em todos os setores produtivo do país todos os setores produtivos do pais a serviço de cujos interesses manipulam a opinião pública, em nome da liberdade de "desinformação´´. É uma Universidade "autônoma´´, inteiramente livre para deixar deteriorar os seus serviços, manipular concursos, efetivar analfabetos, promover greves, desestimular a criatividade e a pesquisa cientifica. São as Forças Armadas "olímpicas", mais fechadas e impenetráveis que aquela caixa excepcionalmente protegida por outras mil caixas maiores e mais resistentes, em que se abrigava a vida do gigante, no conto infantil.

Para não ser prolixo nem parecer um velho rabugento a choramingar seus achaques, relatarei episódio por mim vivido no congresso, à época da Constituinte e um outro fruto de diálogo com um dos mais dignos e eminentes parlamentares de meu pais.

Convidado para falar sobre o Poder Judiciário perante a Sub-Comissão do Poder Judiciário e do Ministério Público, passei dois dias inteiros no Congresso, testemunhando o formigar de pessoas, transitando em seus corredores, presentes nos Gabinetes e nas sessões. Gente de todos os segmentos detentores de algum poder. Militares das Forças Armadas e integrantes das policia civil e militar, membros do Ministério Público, magistrados inúmeros, empresários, sindicalistas, gente da área do ensino. Indagado, ao almoço, por mim, ilustre deputado paulista respondeu-me: "Calmon, aqui há ´lobby´ de tudo, Civis, militares, Justiça, MP, empresários, sindicatos, universidades, só não há ´lobby´ do povo brasileiro. E vai sobrar para ele´´. Nunca "tantos" foram tão poderosos contra ´´todos os outros´´. Nunca o Poder Judiciário foi tão poderoso, nem o Ministério Público, nem os Sindicatos, nem as Associações, nem os Meios de Comunicação etc. Tivemos, sem dúvida, momentos históricos em que "alguns" puderam tudo contra todos, mas nunca foram tantos os "senhores" cavalgando "o resto".

O segundo episódio, mais recente, ocorreu num Congresso em que se discutia a reconstitucionalização do pais. Eminente deputado gaúcho, depois de haver, como de meu hábito, denunciado a feudalização do poder instituída com a Constituição de 1988, declarou de público não merecer os constituintes a crítica que lhes era feita. E justificava. Criou-se um impasse: nem conservadores, nem progressistas dispunham de maioria suficiente para aprovar uma carta a sua feição. Para superar esse impasse, só um compromisso. E esse compromisso veio com a decisão de "´incluir tudo´´, satisfazendo a gregos e troianos, deixando que a ´´inconvivência" fosse eliminada com o tempo, a experiência e a revisão prevista.

Essa paisagem cinzenta, entretanto, não se coloca no campo da percepção dos sonhadores (ou demagogos?) e dos idealistas (ou despistadores?) dentre os quais os juristas "puros" ou "quase-puros" têm papel destacado. Porfiam eles por fazer a sociedade acreditar que as leis, enquanto puro dizer, emancipam; que o Judiciário tem a faculdade sobrenatural de descobrir e efetivar o justo que está na lei (e se na lei ele não está, o juiz - à luz do direito alternativo - revela esse "justo") e que nós advogados, principalmente como corporação - OAB - somos sacerdotes vigilantes e atuantes no culto quotidiano de trazer o "justo" oculto na ordem jurídica à efetividade da convivência social. A par disso - os advogados do povo ou da sociedade, a instituição do Ministério Público - isenta, sobranceira, indormida - está vigilante podendo a Nação operar tranqüila no seu dia a dia, sob o pálio protetor de todas essas corporações que se auto-imolam no altar da Pátria. E assim todos nós, ungidos e santos, velamos civicamente pelo nosso povo, originariamente legitimados e auto-legitimados, sendo de todo despiciendo discutir-se essa legitimidade, que embora somente sendo possível de construir-se a partir de quem se diz titular da soberania - o povo - carece de seu dizer e carece de seu fiscalizar para que se possa instituir validamente. Parece que ao lado da cidadania tutelada queremos instituir no Brasil, de modo original, urna espécie de cidadania "corporativamente" dirigida.

Sobre o autor
José Joaquim Calmon de Passos

Falecido em 18 de outubro de 2008. Foi advogado e consultor jurídico em Salvador (BA), coordenador da Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS), professor catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, José Joaquim Calmon. Cidadania tutelada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -335, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3196. Acesso em: 23 dez. 2024.

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