A euforia produzida pelo lançamento do novo iPhone é um fato. E não evidencia apenas o sucesso comercial da marca Apple, nem tampouco as virtudes do produto.
Como qualquer outro telefone celular, o novo iPhone tem data marcada para se tornar obsoleto. Ano que vem uma nova versão será lançada provocando nova corrida às lojas. Antes disto, porém, as baterias dos iPhones vendidos este ano terão perdido a eficiência e precisarão ser substituídas a um custo elevado nas autorizadas da Apple. Isto parece não afetar a ligação quase religiosa que os consumidores tem com a Apple e com o iPhone.
Cada época tem seus objetos de culto, seus receptáculos da fé. Na cidade antiga, o fogo sagrado era venerado no Pritaneu. Em casa diante do altar os cidadãos cultuavam os simulacros dos seus ancestrais, em público participavam dos rituais em louvor dos heróis e deuses protetores de sua cidade representados pelas magníficas estátuas de mármore e de bronze. Na Antiguidade, a arte estava a serviço da política e da religião, a produção do que era necessário ao culto privado e público também.
Guardadas as devidas proporções, durante a Idade Média as Catedrais e as relíquias dos santos e lascas da verdadeira cruz desempenharam a mesma importância religiosa, pedagógica, política e econômica que os templos e rituais da cidade antiga. Nos dias de hoje, a Lojas da Apple são os equivalentes do Pritaneu e das Catedrais. E o iPhone é sem dúvida alguma receptáculo da verdadeira fé. Por isto, a obsolescência programada deste telefone causa tão impacto negativo na sua comercialização.
Não vivemos num mundo sem religião. De fato, se observarmos bem as atitudes dos consumidores da Apple quando uma nova versão do iPhone é lançado, percebemos que a religião apenas mudou seu foco e sua direção. De fundamento da organização social (na cidade antiga) e de fonte de legitimação do poder feudal e real (na Idade Média), a religião foi deslocada para o consumo. E o produto que melhor serve para entender o novo culto, gostemos ou não, é o iPhone.
As procissões em frente às lojas da Apple antes do lançamento das novas versões do telefone são sagradas. O contato com o novo modelo do verdadeiro iPhone é místico. A fé faz os consumidores do produto sacralizado não pouparem recursos. Eles compram o novo modelo mesmo que o velho ainda esteja funcionando e sabendo que em pouco tempo terão que substituí-lo ou gastar um bom dinheiro para trocar sua bateria. Quem não tem recursos faz empréstimo pessoal ou compra seu novo iPhone parcelado (pagando juros extorsivos no caso específico do Brasil).
Várias vezes por ano, o homem antigo ia ao Pritaneu religar seu destino aos deuses da cidade, à própria cidade e aos demais cidadãos. O homem medieval fazia a peregrinação até a Catedral para poder tocar as relíquias sagradas e ficar próximo de Deus. O homem moderno pega fila na loja da Apple para comprar seu novo iPhone porque é assim que ele se liga religiosamente àquilo que acredita ser a modernidade. Mas a “modernidade do produto” esconde apenas um culto antigo com nova roupa e sem o mesmo significado criado apenas para dar lucro aos fabricantes e anunciantes do produto.
O iPhone liga o consumidor ao culto do produto, mas não é capaz de o religar com sua cidade e com sua comunidade de destino. De fato, como outros telefones similares, o produto da Apple faz exatamente o oposto. Quando entra pelo seu iPhone na internet o consumidor sai da sua realidade real. Se for pobre, acredita ser um privilegiado porque se distingue pelo consumo das pessoas comuns. Se for remediado, desdenha daqueles que querem ter o mesmo privilégio só porque puderam, com dificuldade, comprar o mesmo produto. Se for rico nem mesmo se relaciona com as outras pessoas, preferindo sempre circular em comunidades restritas bloqueando imediatamente os demais.
Na cidade antiga e na Idade Média, a religião tinha um conteúdo sócio-político evidente: sua função era aproximar as pessoas, legitimar o poder, permitir o convívio entre iguais. O culto do iPhone também tem um conteúdo sócio-político marcante, mas não porque aproxima os consumidores e sim porque permite que eles sejam distanciados da sociedade e até dos outros compradores do mesmo produto.
A valorização do isolamento físico é o que mais assusta na religião da Apple. Um homem antigo e medieval seria incapaz de aceitar isto. Ele só era homem na medida em que fazia parte da sociedade e se religava aos seus deuses ou a Deus junto com sua comunidade. Sócrates rejeitou o ostracismo, preferiu morrer a ser apartado da cidade que o condenou. O servo da gleba geralmente não se rebelava, pois sabia que encontraria proteção para si e para os seus familiares dentro das muralhas e da Catedral em caso de guerra. O isolamento para um e outro equivaliam à desumanização e à morte.
O homem moderno que adere ao culto do iPhone quer, entretanto, justamente ficar isolado. A ilusão de fazer parte de uma comunidade lhe basta. Se a bateria do telefone arriar ele se considera privado do isolamento e, portanto, no inferno do convívio com os demais ao seu lado.