Resumo: O artigo se destina a analisar a teoria da construção retórica do ordenamento jurídico, defendida por João Maurício Adeodato, partindo de uma análise histórica das concepções de direito, com ênfase para as teorias juspositivistas do século XIX.
Sumário: 1. Introdução. 2. A concepção tradicional do direito. 2.1. Evolução histórica do conceito de direito: “descendo do céu para a terra”. 2.1.1. Indiferenciação. 2.1.2. Jusnaturalismo antigo: o conflito entre physis e nomos. 2.1.3. Jusnaturalismo teológico. 2.1.4. Jusnaturalismo racionalista. 2.1.5. Jusnaturalismo democrático (historicismo casuístico). 2.1.6. Juspositivismo. 3. Teoria crítica do direito: “Três confusões”. 3.1. Texto e norma. 3.2. O conteúdo do ordenamento jurídico. 3.3. A aplicação da semiótica moderna para a construção de uma teoria retórica do direito. 4. Conclusão.
1. Introdução
João Mauricio Adeodato, em seu trabalho “A construção retórica do ordenamento jurídico – três confusões sobre ética e direito” [1], sustenta que a realidade jurídica é resultado mais de um esforço retórico dos profissionais do Direito que da produção legislativa propriamente dita. Compreende o fenômeno linguístico à luz da teoria semiótica moderna, segundo a qual não existe uma única interpretação possível para um texto determinado. Partindo dessa premissa, doutrina que, por se valerem de significantes linguísticos capazes de exprimir uma multiplicidade de sentidos, os textos jurídicos não teriam o condão de encerrar a “norma jurídica” suscetível de solucionar um conflito concreto. De fato, se múltiplas são as legítimas interpretações acerca do texto que objetiva traduzir a norma, diversas são as possíveis “normas” para o caso concreto. A ser assim, somente pelo critério da autoridade se definirá a norma: a última palavra sobre o direito, emanada do Estado, será seu verdadeiro conteúdo – a concepção do juiz sobre o texto jurídico, formulada no caso concreto. Nessa perspectiva, o direito se construiria retoricamente, como fruto da experiência dialética dos tribunais. A participação dos litigantes na formação do convencimento do juiz seria a verdadeira “luta” pelo direito, o real processo de formação da norma.
O autor esboça a teoria a partir de três afirmações: (1) a norma não se encontra no ordenamento jurídico; (2) o direito não é um conjunto de normas de conduta e (3) não existe um limite ético para as escolhas do direito, bem como não há um único sentido juridicamente aceitável para o texto legal positivado. [2] Por representar evidente desconstrução da teoria jurídica clássica, conforme compreendida até a primeira metade do século XX, faz-se necessária uma análise da visão tradicional para a correta compreensão da nova abordagem. Com esse intuito, discorre-se, no presente estudo, sobre as diferentes noções de direito concebidas ao longo da história, com destaque para as teorias juspositivistas que tomaram vulto a partir do século XIX. Em seguida, retoma-se a teoria sub oculi, buscando-se estabelecer uma comparação com o positivismo tradicional.
2. A concepção tradicional do direito
2.1. Evolução histórica do conceito de direito: “descendo do céu para a terra” [3]
Na história das civilizações ocidentais, a noção de direito esteve relacionada, indissociavelmente, às estruturas da sociedade na qual o conceito foi elaborado. Assim é que, quanto mais indiferenciada foi a sociedade, no sentido de menos subsistemas sociais apresentasse, mais difuso e menos diferenciado de outras ordens normativas foi o direito. Da mesma forma que a sociedade passou por um processo de diferenciação, em que se tornou cada vez mais complexa, o direito evoluiu no sentido de especificar-se em relação à religião, à moral e aos bons costumes. Partindo de uma visão nebulosa em que se confundia com a ordenação divina ou com a intuição racional até alcançar a noção de sistema autônomo respaldado na força laica Estado, o direito acompanhou as variadas formas de organização social vislumbradas ao longo da história, sendo sua concepção traduzida à luz dos fundamentos filosófico existenciais da ordem social verificada.
“Descendo do céu para a terra”, o direito foi visto como ordem direta da divindade, lei divina incognoscível, revelação divina, inspiração racional, lei natural da vontade geral, norma posta pelo critério da competência, vontade livre do julgador. Da completa indiferenciação à moderna teoria da linguagem, o conceito de direito foi tecido no sentido de uma humanização constante do objeto. O panorama que se segue não se pretende exaustivo, por não descer a minúcias conceituais e não abranger cada um dos movimentos verificáveis nos interstícios das escolas jurídicas mencionadas. Trata-se de visão macro, satisfatória aos objetivos deste estudo.
2.1.1. Indiferenciação
Nas sociedades primitivas, o direito se mostra indissociado da religião e da moral. A regulação da conduta sugere a noção de um justo natural, condizente com a essência primeira das coisas, decorrente da vontade divina ou da razão humana da liderança ilustrada. O conhecimento do direito não se distingue de sua prática [4] e se apresenta, em grande parte, transmitido pela tradição oral e estruturado tendo por base o poder familiar. Tércio Sampaio Ferraz Júnior assim comenta o período:
Ora, em sociedades primitivas, esse poder está dominado pelo elemento organizador, fundado primeiramente no princípio do parentesco. Todas as estruturas sociais, que aliás não se especificam claramente, deixam-se penetrar por esse princípio, valendo tanto para relações políticas como para as econômicas e para as culturais, produzindo uma segmentação que organiza a comunidade em famílias, grupos de famílias, clãs, grupos de clãs. [...] No horizonte do direito arcaico, só há lugar para uma única ordem: a existente, que é a única possível, a querida pela divindade e, por isso, sagrada. [...] Nesse sentido, o direito confunde-se com as maneiras características de agir do povo (folkways) – por exemplo, o sentar-se em cadeiras ou no chão, o comer com as mãos, só ou em grupo, o uso de roupas – tomadas como particularmente importantes para a vida do grupo (mores) e manifestadas na forma de regras gerais. [...] Essa forma maniqueísta de manifestação do direito é atenuada pela intervenção de sacerdotes ou de juízes esporádicos que, como guardas do direito, regulam sua aplicação. No entanto, essa regulação não se separa do próprio direito, de tal modo que não podemos falar do conhecimento do direito como algo dele separado. Esse “conhecimento” e sua prática (de aplicação) não se distinguem: a existência, a guarda, a aplicação e o saber do direito confundem-se. [5]
Nessa fase, não há sequer o conceito de direito como objeto autônomo. Trata-se de status anterior à própria ideia de direito natural, concebida na era clássica e aperfeiçoada no período medieval, sob a autoridade do cristianismo. De fato, o período nebuloso de completa indiferenciação não ostenta pensadores que suscitem a problemática do conflito entre o justo e o posto. O titular do poder político, por vezes, era tido como a própria divindade, sendo o direito por ela emanado dotado de justiça inquestionável.
A estrutura do Egito Antigo é bastante exemplificativa:
A sociedade e a economia eram dirigidas por um governo teocrático, baseado na união entre a Igreja e o Estado. A teocracia era um regime no qual a religião e a política estavam interligadas e se influenciavam reciprocamente. O poder religioso fornecia as bases ideológicas que explicavam e justificavam o poder político. O faraó era, a um só tempo, deus e rei: encarnação de Hórus e Rá e expressão do poder e do Estado. Considerado o “senhor de todos os homens e dono de todas as terras”, o faraó exercia a função de comandante-em-chefe, supremo juiz e grão-sacerdote. [6]
Na civilização grega, vislumbra-se um direito fortemente indiferenciado no período Homérico (1700 – 800 a.C.), em que a mitologia prevalecia como modo de explicação da realidade e a religião fundamentava as relações de poder. Leonel Itausssu e Luís César destacam:
A religião grega surgiu no período Homérico, com a fusão de cultos e divindades de origem indo-europeia, cretense e oriental. A religião era politeísta e antropomórfica [...]. Além dos deuses, existiam também os heróis ou semideuses que, através dos mitos, dominavam a imaginação popular. [...] Os heróis estavam numa posição hierárquica intermediária entre os deuses e os homens. Segundo a mitologia, eram filhos de deuses e mortais, possuindo uma natureza parcialmente divina e parcialmente humana. Os heróis eram seres superiores aos homens e inferiores aos deuses, por isso eram chamados também de semideuses. Autores de façanhas épicas ou vítimas da fatalidade do destino, eram amados pelo povo grego. Sua força física sobre-humana ou sua inteligência extraordinária fascinavam a imaginação popular. [..] O particularismo das cidades-estados e a diversidade de seus regimes políticos tinham sua contrapartida na unicidade social e cultural cimentada pela religião grega. A religião era o traço de união entre os gregos e sua unidade, conhecida como pan-helenismo, expressava-se concretamente nos oráculos, nos mistérios e nos jogos. [7]
Somente por volta do século VII e início do século VI a.C., nas colônias gregas da Ásia Menor, com o surgimento das reflexões pré-socráticas de cunho cosmológico, a partir de Tales de Mileto [8], inicia-se um processo de racionalização da compreensão da realidade que possibilita a discussão quanto à distinção entre direito justo e posto, aprofundada na fase jusnaturalista antiga do direito.
2.1.2. Jusnaturalismo antigo: o conflito entre physis e nomos
O raio de racionalismo que surge com a filosofia pré-socrática possibilita a reflexão ulterior quanto ao conteúdo das leis à luz do ideal de justiça. A teoria dominante é da existência de um direito natural, justo por excelência, inerente à natureza material e humana, ainda que não manifestado no regramento positivo.
O idealismo jurídico traduz-se, de forma geral, nas doutrinas do direito natural. Nessa vertente, há pontos em comum com o fato de o direito emanar da natureza, de existirem princípios legais não escritos que se superpõem ao direito posto. Nesse ponto, há primazia dos ideais mais elevados de justiça. O que é justo está de acordo com a ordem natural. As leis injustas devem ser subjugadas pelo ideal maior de justiça. [9]
O sentido básico dessa fase do naturalismo jurídico é a noção de que o direito positivo (nomos), o conjunto de regras postas pelo poder político dominante, deve fundamentar-se no direito que emana da Natureza (physis), o qual é justo por essência, porquanto decorrente do equilíbrio natural do universo.
O que é a natureza do naturalismo antigo? Duas coisas ao mesmo tempo, sem dúvida, que não se deve confundir: uma representação racional particular da natureza (uma “física”), que não poderia evidentemente ser confundida por nós com a própria natureza (em si), e que varia consideravelmente conforme se liga à física de Demócrates ou de Aristóteles, arrastando em seu sulco um ou outro tipo de jusnaturalismo; e a ideia geral, partilhada além das diferenças entre os físicos particulares, de que se pode colocar um outro ponto de vista sobre o direito positivo, que seria aquele de um conhecimento perfeito do que é perfeitamente justo: esse ponto de vista não seria aquele de Deus, como será no caso da teologia cristã e na metafísica clássica, mas aquele da Natureza. [10]
De fato, por ser a Natureza objeto incognoscível por definição, no sentido conferido por Kant em sua Crítica da Razão Pura – uma vez que conhecer é fazer uma representação e que é definitivamente impossível comparar nossa representação com o objeto real [11] –, realiza-se no naturalismo antigo a referência a uma física particular, a uma representação da natureza à luz da compreensão do pensador. Essa “natureza” específica emana princípios de um direito perfeitamente justo, que deve ser levado a confronto com o direito positivo para a verificação da legitimidade do último.
Tal conflito entre physis e nomos é, pois, ideia inteiramente nova:
um ponto de vista perfeito sobre o imperfeito, natural sobre o positivo. Fazê-lo em nome da natureza e não dos deuses ou de Deus, é em si uma invenção inédita: eis algo que prefigura o ponto de vista transcendental kantiano (o que torna possível o direito positivo é o direito natural, quer dizer, a própria ideia de direito), mas que se produz pela física e não pela teologia. [12]
Apresenta-se o direito, nessa época, como “ciência da divisão e da repartição” [13], tendo como objetivo básico atribuir a cada um o que lhe é devido, restabelecendo a divisão equilibrada das coisas à luz dos princípios normativos da natureza. A noção de justiça, aqui, é eminentemente distributiva, muito próxima da ideia de Aristóteles, para quem o direito ou o justo é uma proporção, ou o efeito de uma divisão que é proporcional. Ressalte-se que a “distribuição” realizada pelo juiz de então não consiste, necessariamente, na efetivação de um igualitarismo, ideia que tem sentido na justiça dita “comutativa”. No domínio da justeza, busca-se o equilíbrio mais justo das divisões, o que não necessariamente se identificará com uma igualdade matemática.
É o direito, portanto, no entender do período, uma técnica de decisão voltada à efetivação da justiça natural. Contudo, sendo o direito algo “natural”, e, portanto, em sua plenitude, incognoscível, dada uma impossibilidade de apreensão de seu conteúdo por parte do ser racional, que o percebe de forma parcial, por meio dos sentidos, a justiça perfeita passa a ser compreendida como um ideal a ser alcançado.
2.1.3. Jusnaturalismo teológico
Devendo, a rigor, ser compreendido como jusnaturalismo teológico de base racionalista, porque se valia da filosofia para uma concepção teológica do direito, na busca de um equilíbrio entre fé e razão, essa corrente teve desenvolvimento medieval. Machado Neto pontua a evolução do pensamento jusnaturalista nos seguintes termos:
Desde as representações primitivas de uma ordem legal de origem divina, até a moderna filosofia do direito natural de Stammler e Del Vecchio, passando pelos sofistas, estoicos, padres da Igreja, escolásticos, ilustrados e racionalistas dos séculos XVII e XVIII, a longa tradição do jusnaturalismo se vem desenvolvendo, com uma insistência e um domínio ideológico que somente as ideias grandiosas e os pensamentos caucionados pelas motivações mais exigentes poderiam alcançar. [14]
Na Idade Média, os fundamentos do direito natural eram a inteligência e a vontade divina, vez que a sociedade e a cultura se mostravam profundamente marcadas pela vigência de um credo religioso e pelo predomínio da fé. Sob o império da patrística e da escolástica, a teoria jusnaturalista apresentava conteúdo teológico, porquanto a filosofia medieval, de acentos notadamente cristãos, surgiu “da necessidade de responder às exigências da fé, ensinada pela Igreja, considerada então como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a Cristandade.” [15]
Prevalecia a concepção do direito natural objetivo e material, que estabelecia o valor moral da conduta pela consideração da natureza do respectivo objeto, conteúdo ou matéria, tomada como base de referência a natureza do sujeito humano, considerado na sua realidade empírica, reveladora de seu dever-ser real e essencial [16].
Como observa Van Acker, não se tratava de um direito natural puramente objetivo, mas objetivo-subjetivo, pois tomava o objeto como ponto de partida e o sujeito como termo da relação de convivência ou do valor moral. [17] Da mesma forma, não era direito natural puramente material, mas material e formal, por ser a matéria da conduta carregada de sentido ou valor humano, positivo ou negativo – o que faz com que a dita “essência” da matéria seja particular, variando ao sabor da compreensão de quem especifica o direito natural.
A tese, contudo, persistente, é idealista: a lei natural é imutável em seus primeiros princípios. O direito natural, imanente à natureza humana, independe do legislador humano. As demais normas, construídas pelos legisladores, são aplicações dos primeiros princípios naturais às contingências da vida, mas não são naturais, embora derivem do direito natural. [18] Conforme bem esclarece Montejano, “direito natural, em sentido estrito, é o justo natural e, em sentido derivado, são os princípios e normas jurídicas que regulam a vida social do homem, ainda que na ausência de toda ordenação positiva.” [19]
A escolástica, assim, concebia o direito natural como um conjunto de normas ou de princípios morais, que são imutáveis, consagrados ou não na legislação da sociedade, resultantes da natureza das coisas e do homem, segundo a essência conferida pelo Criador. Seus princípios mais próximos, por essa razão, são apreendidos imediatamente pela inteligência humana como verdadeiros, dada a identidade natural que se verifica no espírito. Deveras, os primeiros princípios da moralidade correspondem ao que há de permanente e universal na natureza humana, por isso perceptíveis, de imediato, pela razão comum da generalidade dos homens, independentemente de sua cultura ou civilização. [20]
O jusnaturalismo teológico, respaldado no cristianismo medieval, encontra seu maior expoente na obra de Tomás de Aquino (1225 – 1274). Para a concepção aristotélico-tomista, o direito natural abrange todas as normas de moralidade, inclusive as normas jurídico-positivas, enquanto aceitáveis ou toleráveis pela moral. [21] A ética consiste em agir de acordo com a natureza racional, que orienta o homem pela consciência e permite ao sujeito captar, intuitivamente, os ditames da ordem moral. O primeiro postulado da ordem moral é: faz o bem, evita o mal. [22] Classificando as leis em eternas, naturais e humanas, fixou o direito natural como base do conceito de direito:
A lex aeterna, incognoscível, é a lex divina por essência, a qual, quando revelada de modo ínfimo, difuso, o que ele denomina “participação” ou “irradiação”, constitui a lex naturalis, em grande parte acessível à natureza racional do homem, iluminada pela revelação da Santa Madre Igreja, embora seus últimos princípios, radicados na lei eterna, permaneçam incognoscíveis. A lex humana explicita a lei natural, a fim de capacitá-la à regulação jurídica da sociedade, mediante processos como a conclusão (dedução silogística do conteúdo da lex naturalis) e a determinação (fixação dos princípios práticos de atualização do direito natural, como a determinação das penas).” [23]
A concepção tomista de direito, pressupõe, assim, uma impossibilidade da compreensão do direito natural em sua plenitude, vez que, emanado do Deus cristão, é eterno, ao passo que a percepção racional do homem, por mais elevado que seja em sentido espiritual, é sempre terrena, limitada, finita. A lei eterna é manifestada ao homem mediante brilhos de ilustração, em que a revelação de origem divina faz o homem “ver” parte da lei eterna, perfeita e infinita, do Criador. Tal revelação ínfima, difusa, constitui a lei natural, dada por Deus à Santa Igreja. Seus últimos princípios permanecem incompreendidos, porque radicados na lei eterna, de onde emanou em primeiro plano. A lei humana, por sua vez, é a que, explicitando a lei natural, traduz o sentido do direito revelado para as situações práticas da vida cotidiana, valendo-se das técnicas da dedução silogística e da determinação de princípios associados à lei revelada.
Note-se que, a despeito de teológico, o direito natural medieval tem base racionalista: fundamentada na metafísica de Aristóteles – “o filósofo” – a teoria pregava a construção da lei natural a partir do olhar racional sobre a revelação, que em sua maior parte se encontrava na Bíblia. O “irracionalismo” da fase, quando em confronto com o jusnaturalismo antropológico posterior, consiste na indefinição quanto aos critérios distintivos do direito justo. Dado que a lei divina é eterna, infinita, perfeita, imarcescível, apresenta-se, em sua plenitude, como objeto incognoscível à razão humana, que apreende tão somente uma fração da parte da lei eterna que é revelada. Assim sendo, o perfeitamente justo permanece um mistério – não mais porque decorre da natureza, da essência da matéria, mas porque está em Deus, a fonte de todas as coisas.
2.1.4. Jusnaturalismo racionalista
Trata-se de acepção do direito natural de base antropológica, fundada na razão humana autônoma. De clareza solar é a descrição de Maria Helena Diniz:
A concepção de direito natural objetivo e material (século XIII), foi, paulatinamente, substituída, a partir do século XVII, pela doutrina jusnaturalista do tipo subjetivo e formal, devido ao processo de secularização da vida, que levou o jusnaturalismo a arredar suas raízes teológicas, buscando seus fundamentos de validade na identidade da razão humana. [24]
Com efeito, o século XVII introduziu mudanças significativas na forma de compreensão da realidade. A revolução científica, que apresentou concepções mecanicistas da natureza, com destaque aos estudos de Isaac Newton, forneceram a base para o surgimento do Iluminismo que, por volta do fim do século XVII, representou uma retomada da busca da razão como forma de explicação da natureza e dos fundamentos do homem e da sociedade. Iniciou-se um processo de afastamento das concepções teológicas de mundo, ante o surgimento de teorias de cunho puramente racional. O enfraquecimento do poder da Igreja, frente às transformações sociais, políticas e culturais introduzidas pelo Renascimento dos séculos XIV a XVI, o fim do Império Romano do Oriente, no século XV e a Reforma Protestante, do século XVI, possibilitaram a proliferação de discussões de teor cientificista, elidindo o monopólio do saber teológico como base para a estruturação da sociedade e do direito.
Nesse contexto, o jusnaturalismo racionalista “procura eliminar a vontade de Deus como elemento exterior ao direito, buscando uma base racional independente.” [25] Mas não apresenta identidade com o naturalismo grego pautado em uma physis particular.
Tal jusnaturalismo “moderno” diferencia-se do antigo pela definição que coloca para o direito natural:
O “direito natural” do modelo antigo é baseado na ordem da natureza: há nisso uma prioridade ontológica atribuída à natureza sobre as criações jurídicas de ordem positiva [...]. Quando o modelo puramente físico do mundo se apaga em benefício de um modelo metafísico, a problemática permanece inalterada: trata-se sempre de inscrever o paradigma da justiça no “ser do mundo”. Paralelamente, essas concepções atribuem igualmente uma prioridade à comunidade sobre o indivíduo, este último não podendo em nenhum caso ser o depositário de direitos “naturais”, que seriam anteriores a toda inscrição do estado político. Desde então, compreende-se que o direito natural moderno, cuja origem se situa por volta do século XIV como nominalismo de Ockham, é o contrário do modelo antigo: ele se baseia no indivíduo até a obsessão. O desabamento é total: os modernos deduzirão o direito natural da natureza no sentido da essência do sujeito humano, e não da natureza das coisas. Em suma, pode-se designar a primeira forma de direito natural como um direito “objetivo” e a segunda como um direito “subjetivo”. [26]
O direito natural tornou-se “subjetivo” quando radicou-se na regulação do sujeito humano, individualmente considerado, cuja vontade cada vez mais assumiu um sentido subjetivo e autônomo. Nessa concepção jusnaturalista, a natureza do homem é uma realidade imutável e abstrata, por ser-lhe a forma inata, independente das variações materiais de conduta. [27] Nesse momento racional jusnaturalista, a natureza do ser humano foi concebida 1) como genuinamente social, por Grotius, Pufendorf e Locke; 2) como originariamente não social ou “individualista”, por Hobbes, Spinoza e Rousseau. [28]
Para essa teoria do direito natural subjetivo, os preceitos do justo e do injusto continuam válidos, mesmo se suposta a inexistência de Deus, por terem seu fundamento nas leis imanentes à razão humana (Grotius). [29] Noutros termos, o direito natural, justo e distinto do posto, pode ser identificado por qualquer homem (rico e livre, segundo a realidade da época), com fundamento exclusivo na essência da natureza humana conforme definida pela razão, sem necessidade do intermédio da Igreja ou de ilustrados. Mais uma vez, impactante inovação no cenário teórico do direito. Surge, contudo, com essa tese, sério problema: se o direito justo pode ser dito por qualquer um, como solucionar os conflitos em justiça? Como solver as divergências verificáveis ante as distintas concepções de justo? Essa foi a temática perseguida palas teorias que se seguiram.
2.1.5. Jusnaturalismo democrático (historicismo casuístico)
Propugna essa teoria a ideia de que o direito natural repousa na “vontade geral do povo” ou “consciência popular (Volksgeist)”, no dizer de Savigny. É representada principalmente pelos jusfilósofos alemães Gustav Hugo, Friedrich Carl von Savigny e George Friedrich Puchta. Gustav Hugo, em seus estudos, rejeitou a moderna teoria jusnaturalista como sistema de princípios morais e racionais, estabelecendo as bases para a revisão do racionalismo histórico do direito natural, acentuando a dimensão histórica da relação jurídica. Para ele, o direito natural nada mais é do que o direito positivo universal, direito comum a todos os povos, criado pela razão natural, da qual o direito positivo ou o jus naturalis são um desenvolvimento histórico e particularizado. [30]
Tomando por base a obra de Gustav Hugo, a escola histórica encontra seu expoente em Savigny. A contribuição maior para o conceito de direito encontra-se na exigência de positividade como pressuposto fundamental, reagindo às concepções idealistas do jusnaturalismo. A ciência jurídica, segundo Savigny e Hugo, deveria se valer do método histórico, em estudo comparativo e metódico dos direitos internacionais, para chegar a uma história do direito universal.
A sistematização histórica, entretanto, acabou se dissolvendo numa estilização sistemática da tradição, como seleção abstrata das fontes históricas, sobretudo romanas. O valor dado à intuição do jurídico fez com que a pesquisa histórica cedesse lugar a uma construção conceitual do direito, à luz de uma concepção de sistema lógico dotado de completude. O justo, portanto, seria o direito positivo verificado na constância da história, concebido como “direito natural”. Essa noção dá origem à Escola Positivista que a segue.
2.1.6. Juspositivismo
A partir do século XIX, o direito passa a ser visto como a norma posta, fato que se deve, em grande parte, à noção introduzida pelos que advogavam uma metodologia histórica para a análise jurídica. Razões outras há, contudo: a experiência jurídica entre os séculos XVI e XVIII revela que o direito se tornou cada vez mais escrito, o que ocorreu pelo rápido crescimento da quantidade de leis emanadas do poder constituído, ante a decretação e redação oficial da maior parte das regras costumeiras. [31]
O fato de o direito tornar-se escrito contribuiu para importantes transformações na concepção de direito e seu conhecimento. A fixação do direito na forma escrita, ao mesmo tempo em que aumenta a segurança e a precisão de seu entendimento, aguça também a consciência dos limites. [32]
A tese que passa a ser perfilhada é de que não existe um direito natural, imanente à natureza ou à essência humana. O que existem são concepções éticas, muitas vezes compartilhadas no cenário internacional e verificadas ao longo da história. O direito é visto como um fato social, associado ao poder político e garantido pela força. É direito o propugnado pelo poder dominante. Não se pode considerar direito aquilo que o detentor do poder não considera.
Em verdade, acerca do conceito de direito, na linha juspositivista, uma multiplicidade de orientações surgiu, nos séculos XIX e XX, tendo por base a noção de direito legislado. Em linhas gerais, as diferentes escolas podem ser organizadas em três grandes grupos, a saber, legalismo exegético, o normativismo e o realismo jurídico.
O Empirismo exegético, que compreendeu a Escola da Exegese, o Pandectismo e a Escola Analítica, consistiu na identificação do direito positivo com a lei escrita, entendendo que a função do jurista era ater-se com rigor absoluto ao texto legal e revelar seu sentido. Intérprete e julgador tinham função meramente mecânica, devendo aplicar o texto legal segundo os princípios da lógica dedutiva. Seguida por Proudhon, Melville, Blondeau, Demolombe, Baudry-Lacantinerie, Laurent, Mercadé e outros. O direito, aqui, é a lei, pura e simplesmente.
O Normativismo ou racionalismo dogmático tem como base a doutrina de Hans Kelsen (1881 – 1973), jurista austríaco preocupado com a ausência de rigor técnico no tratamento das questões jurídicas, notadamente as relativas ao direito público e à teoria do Estado. Reagindo à anarquia conceitual que a má consciência científica do jurista tinha produzido, Kelsen submeteu o direito a uma dupla depuração, que restou em completo esvaziamento ético da norma jurídica, retirando de seu âmbito qualquer conteúdo valorativo. Para essa teoria, a ciência do direito “deve expor ordenadamente as normas, mediante o emprego no método normológico, que, pela imputação, liga um fato condicionante a um fato condicionado.” [33] Para Kelsen, o direito é a norma posta da conduta humana. A teoria estática estuda o direito como um sistema de normas e a dinâmica o considera tendo em vista os atos de produção e aplicação, o processo jurídico em que é criado e aplicado. A questão primordial a que se deve ater o jurista é a da validade da norma. A ciência do direito é normativa porque tem a função de conhecer e descrever normas (proposições normativas, a saber, enunciados hipotéticos sobre a norma jurídica). A norma fundamental, situada no plano lógico-jurídico, é pressuposto gnosiológico do sistema, fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico.
O Realismo jurídico norte-americano, representado por Gray, Llewellyn, Frank, Walter Cook, Charles Clark e outros, distinguiu o direito efetivo aplicado pelos tribunais das fontes jurídicas, que são os fatores que inspiram juízes e tribunais no estabelecimento das sentenças, que constituem o direito real e efetivo. Toda a tese gira em torno da pessoa do juiz e dos fatores reais que condicionam a decisão. O realismo jurídico escandinavo, de Alf Ross, preconiza uma interpretação antijusnaturalista dos ideais jurídicos, na descoberta dos princípios gerais do direito e dos ideais jurídicos empíricos, que resultam da experiência concreta da coletividade. Para ele, “o direito vigente é conjunto abstrato de ideias normativas que servem como esquema de interpretação para os fenômenos jurídicos em ação.” [34]
De fato, somente a partir do século XX, com concepções de cunho político e sociológico, associadas às ideias introduzidas pelo realismo norte-americano e escandinavo, questiona-se a autoridade do texto normativo enquanto materialização própria do direito. O juspositivismo clássico rege-se pelo império da lei – o texto é o direito e cabe ao jurista, tão somente, compreendê-lo e aplicá-lo. Na linha realista, contra a concepção tradicional juspositivista, insere-se a teoria ora em estudo.