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Comentários a uma teoria da construção retórica do direito

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3. Teoria crítica do direito: “três confusões”

A teoria proposta por João Maurício Adeodato, de cunho eminentemente realista, pauta-se em três afirmações: (1) a norma não se encontra no ordenamento jurídico; (2) o direito não é um conjunto de normas de conduta e (3) não existe um limite ético para as escolhas do direito, bem como não há um único sentido juridicamente aceitável para o texto legal positivado. Consideremos cada uma das assertivas individualmente.

3.1. Texto e norma

A primeira noção trazida pela teoria crítica de Adeodato é a distinção entre textos e normas. “Os leigos e muitos profissionais do direito parecem crer que o chamado ‘ordenamento jurídico’ compõe-se de um conjunto de ‘normas’. Este é um primeiro equívoco, confundir normas com textos” [35], coloca.

Discorre o autor que o ordenamento jurídico é um dado empírico, composto de fontes do direito. São fontes formais do direito “os modos, meios, instrumentos ou formas pelos quais o Direito se manifesta na sociedade, tal como a lei e o costume.” [36] Adeodato sustenta:

Falando em termos da semiótica contemporânea, as fontes do direito são significantes, enquanto as normas jurídicas são significados, cujos alcance e sentido só se podem determinar diante do caso concreto. As fontes são textos (podem também ser gestos ou palavras oralmente pronunciadas) que procuram expressar, significar, simbolizar normas jurídicas. O ordenamento jurídico é o conjunto dessas fontes; apenas em um sentido metafórico, metonímico e impreciso pode-se dizer que compõe-se de normas. [37]

Trata-se de ideia contrária ao conceito de direito vigente até o início do século XX. Aqui, o direito não decorre de uma ordem natural das coisas, da ilustração divina ou da razão subjetiva. Tampouco está no ordenamento, como se as palavras tivessem o condão de encerrá-lo. O direito, sob uma ótica positiva, advém do ordenamento, mas com ele não se confunde. É o significado da ordem jurídico-positiva e não a própria ordem formal. Os textos jurídicos (leis, decretos, portarias, instruções normativas, instrumentos contratuais, etc.), compreendem uma tentativa de expressão da norma, a qual, contudo, é criada, tão somente, no caso concreto.

Com o fito de ilustrar a distinção entre significante e significado, o autor invoca a relação entre algarismo e número. Assim como o número “dois” é o significado, que pode ser expresso por diferentes significantes (gestuais, orais e textuais como a simbologia romana, indo-arábica ou a escrita por extenso nos mais diversos idiomas), assim a norma jurídica é o significado do texto que a tenta expressar. Logo, ante um conflito social, os participantes do discurso jurídico devem se valer das fontes do ordenamento que guardem pertinência com a questão (significantes). Tendo em vista a “inegabilidade dos pontos de partida” [38], há que se reportar o jurista, no embate dogmático, às fontes formais vigentes, construindo a argumentação à luz dos princípios positivados. Não deve perder de vista, contudo, que essa referência ao texto operada na atividade jurídica tem uma finalidade inequívoca: fazer valer, pela via da argumentação, a leitura do intérprete acerca do ordenamento (significado).

De fato, na primeira metade do século XX, Kelsen já afirmava que há normas jurídicas gerais e individuais, sendo estas as produzidas pelo Judiciário e, aquelas, as emanadas do Poder Legislativo. Aprofundando a temática, Friedrich Müller, em 1994, chega a afirmar que não se pode separar “a norma” de sua interpretação, de sorte que somente diante do caso concreto é criada a norma jurídica. A generalidade, propugnada pelos exegetas como intrínseca à lei, é característica do texto e não da norma. “O decididor do caso concreto é quem cria a norma jurídica, da qual o texto é uma pequena parte, um dado de entrada”, afirma [39]. Sobre essa conclusão, efetuamos maiores comentários à frente.

3.2. O conteúdo do ordenamento jurídico

A segunda questão sensível, colocada como “confusão” propagada pelas anteriores concepções de direito, diz respeito a do que é formado o ordenamento jurídico. Sabe-se, da afirmação anterior, que, na visão moderna, é o conjunto de textos e não de normas jurídicas. Utilizando a expressão imprecisa e metonímica, contudo, para favorecer a explanação, simplificando a exposição, tome-se que o ordenamento é formado por normas. O equívoco “é pensar que o ordenamento jurídico é composto por normas que procuram tratar de conflitos da conduta humana.” [40]

Em verdade, quis o professor da Faculdade de Direito do Recife sustentar que a ordem jurídica não é composta apenas por normas da conduta humana. Que o direito regula a conduta, assim como as demais ordens éticas sociais, tais como a moral e a religião, não se questiona. O diferencial foi trazer a lume o fato de que o complexo de normas jurídicas contém regras outras que não as direcionadas ao agir humano. Em palavras de Adeodato:

o ordenamento também se compõe de fontes sobre fontes, fontes que intentam tratar conflitos entre fontes e não conflitos de conduta. Claro que mediatamente também essas têm por objeto a conduta humana, mas diretamente dirigem-se a fontes, é como um segundo nível, daí serem aqui chamadas de metarregras. E as regras expressas por essas fontes fazem parte do ordenamento jurídico e do direito dogmático. [41]

Discutindo a questão da metodologia da disciplina jurídica, o autor coloca que se o estudo do direito se limitar à compreensão das regras de conduta do ordenamento, corre o risco de tornar-se obsoleto em curto espaço de tempo. Citando Kirchmann, para quem “três penadas do legislador transformam bibliotecas inteiras em lixo” [42], Adeodato sustenta que essa parte do direito muda muito e vertiginosamente, razão pela qual é, até certo ponto, inútil, dedicar-se o operador do direito ao desenvolvimento de habilidades mnemônicas sobre os textos jurídicos.

Essas regras de primeiro nível (“de conduta”), que determinam diretamente os procedimentos, são importantes e precisam ser circunstancialmente conhecidas, mas é impossível e também inútil memorizá-las, já que são muito numerosas, mudam constantemente e cada caso exige um conjunto diferente delas. O estudo do direito não se pode reduzir a essas regras de primeiro nível, tal como vem ocorrendo na educação jurídica brasileira. É preciso conhecer, sobretudo, as metarregras de conduta, as regras sobre regras, aquelas que resolvem os conflitos entre quais regras serão aplicadas àqueles conflitos de conduta e procedimentos. [43]

De fato, o sistema jurídico é composto, além das regras de conduta, por regras de segundo nível, denominadas “metarregras”. Tais regras sobre regras definem critérios de validade para textos e como solucionar conflitos entre regras, situação presente em toda seleção dogmática de fontes do direito para a apreciação de um caso concreto. Algumas positivadas no sistema jurídico, outras não, tais metarregras encontram-se presentes em todos os ramos do direito; são em menor quantidade que as regras de conduta e dependem muito mais do que se acorda sobre elas que do que se pode extrair de sua expressão linguística. Em passagem lapidar, sustenta:

Esse tipo de conhecimento não se tornará inútil com mudanças legislativas ou jurisprudenciais, pois ele não se compõe de relatos descritivos sobre como o direito está agora, mas sim procura compreendê-lo e ensinar a lidar com ele. Não cabe à ciência do direito relatar o que está na lei ou como os juízes estão decidindo, mas sim ensinar legisladores e juízes a desempenhar melhor o seu trabalho e seu poder. (grifo acrescentado) [44]

3.3. A aplicação da semiótica moderna para a construção de uma teoria retórica do direito

Segundo João Maurício Adeodato, o “terceiro equívoco” propagado em teoria jurídica apresenta-se sob dois aspectos:

O primeiro lado é achar que há e inclusive que se podem determinar quais são os limites para as escolhas éticas do direito. Ora, todo direito faz opções éticas. Se existe uma regra jurídica em dada sociedade, qualquer que seja o seu teor, é porque o conteúdo valorativo dessa regra é querido pelos poderes constituídos daquela sociedade. Claro que há diversas ideologias antagônicas sobre que conteúdo deve ter o direito e que uma delas vai se tornar vencedora e positivar-se.O equívoco a se evitar é achar que algum desses conteúdos éticos em conflito é o único correto, aquele que vale independentemente dos processos sociais, vale por si mesmo, é o critério de legitimidade do direito positivo. O segundo lado é achar que os textos legais positivados têm um sentido correto ao qual devem ser subsumidos os casos concretos, ou seja, que há uma interpretação apropriada à qual a decisão do caso deve necessariamente se curvar. [45]

Consideremos a primeira assertiva. O direito, como subsistema social normativo, apresenta indubitável conteúdo ético. As opções que faz o legislador representam valores de uma parcela da sociedade que se mostrou vencedora em uma primeira etapa da “luta pelo direito” (Ihering). Como fato social, o direito é o discurso dos poderosos. Não é possível, pois, estabelecer, a priori, limites éticos para as escolhas do direito. A norma jurídica, conceitual, no sentido kelseniano, é vazia de conteúdo ético. Tão jurídica quanto a regra que proíbe matar no atual Código Penal Brasileiro foi a ordem de Hitler para que se exterminassem os judeus na Alemanha nazista. O poder constituído diz o direito. Qualquer limitação ao poder normativo do detentor da força será política e não jurídica, revelando-se qual revoltada de uma sociedade inconformada com o direito posto. Como coloca o autor:

O equívoco é achar que, acima das regras de segundo nível (metarregras) mencionadas acima, há regras de terceiro nível (todos os seres humanos devem ser iguais perante a lei), independentes de positivação, como defendem os chamados anti-positivistas. Os positivistas se recusam a aceitar que haja normas acima do ordenamento positivo, que pretendem valer por si mesmas. Essas regras já não fazem parte do ordenamento jurídico, não são dogmáticas. Elas constituem os fundamentos éticos e ideológicos do direito em conflito e são aquelas que apresentam caráter mais retórico: é impossível afirmar que determinadas percepções éticas são as “verdadeiras”. [46]

O segundo aspecto discutido traz ao campo da definição do direito os resultados da moderna teoria da linguagem. Afirma João Maurício que não há uma única interpretação apropriada à qual devem ser levados os textos jurídicos. Não há um sentido único, juridicamente aceitável, para os textos que pretendem traduzir a norma jurídica.

Segundo Charles Morris, filósofo norte-americano, a semiótica é a disciplina que se ocupa dos sinais ou signos. O uso de sinais é conhecido como semiose. A semiótica seria, portanto, uma teoria geral dos signos. [47] A parte da semiótica que se ocupa da linguagem é a Linguística.

As modernas concepções linguísticas afirmam que, invariavelmente, todo significante pode assumir múltiplos significados. Assim sendo, como o direito necessita valer-se da linguagem para implementar sua função comunicativa, encontra-se fadado a uma multiplicidade de interpretações possíveis – todas legítimas e corretas do ponto de vista linguístico e, por conseguinte, jurídico. De acordo com a semiótica, transmitir uma mensagem escrita com 0% de chance de ser incompreendido é absolutamente impossível. Como não é possível verificar com “o legislador” sua intenção comunicativa, vez que a lei é produto de obra coletiva, fruto de verdadeiro embate entre representantes de segmentos socais com interesses contrários entre si, haverá sempre a possibilidade de o comando jurídico ser havido de forma distinta da que alguém possa tê-lo concebido. De fato, seu único critério fixador é um texto, que é incapaz de garantir em absoluto uma norma específica.

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Não bastasse a impossibilidade de o legislador antever toda e qualquer situação passível de regulação pelo direito, há, à luz da semiótica moderna, também nos casos em que se tenha previsto a hipótese de incidência, a possibilidade da definição de diferentes normas no plano concreto, ante a inevitável multiplicidade de entendimentos para um mesmo texto jurídico. Como todo significante possui múltiplos significados legítimos, múltiplas são as possíveis normas decorrentes de um mesmo dispositivo legal. Quando se considere que, demais disso, a lei tem de ser interpretada em conjunto com um sem-número de outros atos normativos, produzidos por diferentes órgãos e em momentos históricos diversos, torna-se evidente que, de fato, a norma jurídica somente se produz no caso concreto. O direito real e efetivo, pois, será o fruto não do embate ideológico operado no processo legislativo, mas do esforço retórico das partes envolvidas no litígio, no plano judicial.

O conteúdo do direito, pois, compreendido como o significado das fontes formais que compõem o ordenamento, na teoria em comento, é definido pelo critério da autoridade do terceiro Estado-juiz, que se reputa indispensável à solução dos conflitos sociais e avoca o monopólio da jurisdictio, ou jurisdição, do latim “dizer o direito”. A norma jurídica é produzida pela atividade dialética dos tribunais, estimulada pelo contraditório, justificada pela argumentação lógica e influenciada pela postulação retórica. E, nessa perspectiva, o direito positivo se revela como mero dado de entrada, vez que a verdadeira norma é fruto de uma construção retórica operada no seio do conflito.


4. Conclusão

A teoria da construção retórica do direito, seguida por João Maurício Adeodato, é calcada sobre premissas eminentemente realistas e se assenta sobre três afirmações categóricas: (1) a norma não se encontra no ordenamento jurídico; (2) o direito não é um conjunto de normas de conduta; e (3) não existe um limite ético para as escolhas do direito, bem como não há um único sentido juridicamente aceitável para o texto legal positivado.

 A norma não seria o conteúdo do ordenamento jurídico porquanto produzida no plano judicial, quando do julgamento do caso concreto sujeito à apreciação do Estado-juiz. Na perspectiva semiótica, o texto jurídico (Constituição, lei ou ato normativo) é mero significante da regra estrutural ou de conduta, ao passo que a norma, ou a interpretação dos escritos legais, é o significado que almeja transmitir o legislador. O ordenamento jurídico, por conseguinte, não poderia, a rigor, ser concebido como um conjunto de normas, mas de fontes formais do direito, a partir das quais é possível extrair-se a norma, qual significado de interesse para um conflito social específico. Nessa ordem de ideias, não existiria um limite ético para as escolhas do direito porque, qual fenômeno político e social, o jurídico, inegavelmente, reflete os valores dos detentores do poder na sociedade em que é instituído, estando sujeito, ainda, à autoridade do intérprete encarregado de traduzir o sentido da norma para um caso concreto.

A tese de um direito resultante da construção retórica dos litigantes se coaduna às afirmações da moderna teoria da linguagem, que assume ser impossível atribuir ao texto uma única interpretação válida. No campo da investigação jurídica, é razoável compreender o direito como produzido caso a caso, vez que a interpretação do juiz de maior autoridade é o que valerá no plano concreto. Jurídica ou não, baseada ou não nas fontes formais do ordenamento, a decisão judicial transitada em julgado será o direito, cujo limite somente a sociedade, na forma de um controle político, pode imprimir. Juridicamente, encontra-se o julgador limitado exclusivamente por um texto, o qual, contudo, sob a perspectiva linguística, é sempre passível de manipulação, ante a inevitabilidade da multiplicidade hermenêutica em relação aos signos utilizados no fenômeno comunicacional. O conceito de direito, assim, apresenta-se como eminentemente retórico, porquanto fruto da argumentação dos litigantes na experiência dialética dos tribunais.

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Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Comentários a uma teoria da construção retórica do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4115, 7 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32590. Acesso em: 25 abr. 2024.

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