8. IMPASSE NA DEFINIÇÃO DO TETO CONSTITUCIONAL
O impasse para a definição do teto não diz respeito ao valor a ser fixado. Esta é apenas a parte visível da discussão. O impasse resulta basicamente da exigência de um concerto absoluto, um entendimento prévio, formal, entre o Presidente da República, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados e do Senado Federal sobre o projeto de lei fixador dos limites. É a exigência da "iniciativa conjunta" para fixação dos subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal, contemplada no art. 48, inciso XV, da Lei Fundamental, a razão primeira do dissídio na matéria. Trata-se de uma disposição anômala, introduzida na Câmara dos Deputados durante a tramitação da emenda constitucional da reforma administrativa, objeto permanente de questionamento das assessorias técnicas da Câmara, do Senado e do Executivo. Por ela é possível a qualquer das autoridades envolvidas na discussão do tema uma espécie de "recusa prévia", obstaculizadora de qualquer iniciativa das demais autoridades envolvidas. Basta que uma das autoridades recuse a sua assinatura ao projeto de lei e o impasse se afirma. A norma criou um esdrúxulo "veto a projeto de lei". Mais do que isso: retirou do Supremo Tribunal Federal a iniciativa privativa de lei para definição da retribuição dos seus membros, com repercussão direta para o restante da magistratura.
Como é sabido, segundo o art. 96, inciso II, alínea b, da Constituição da República, compete privativamente ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juizes, inclusive dos tribunais inferiores. A norma faz apenas uma ressalva: o disposto no art. 48, XV (a fixação, por iniciativa conjunta, do subsídio dos ministros do STF). Essa ressalva do art. 96 e a iniciativa conjunta prevista no art. 48 devem ser objeto de expurgo constitucional, vale dizer, de declaração de inconstitucionalidade, com fundamento no princípio da separação dos Poderes, restabelecendo-se a iniciativa reservada da Suprema Corte na matéria.
É óbvio que qualquer iniciativa do Supremo Tribunal Federal, quanto à definição do subsídio dos ministros da corte, como as demais hipóteses referentes à magistratura, exige votação nas duas casas legislativas e sanção ou veto pelo Poder Executivo. Mas o que resvala para a ilegitimidade constitucional é a exigência de que a própria iniciativa do projeto de lei dependa da concordância plena de todos os presidentes referidos. Como as divergências partidárias entre esses atores políticos são comuns, esse entendimento mútuo prévio e formal, fora do processo de discussão parlamentar, é praticamente inviável. Com a exigência formal, tolhe-se a iniciativa da corte na origem, acanhando desarrazoadamente as garantias da magistratura e violando diretamente a autonomia administrativa do Poder Judiciário. Torna-se letra morta a iniciativa privativa de lei prevista para os demais Tribunais (CF, art. 96, inciso II, alínea b), pois ela permanece indiretamente dependente da decisão unipessoal de chefes políticos de outros órgãos constitucionais. Constrangem-se princípios que nem mesmo uma emenda constitucional pode desconsiderar.
Essa compreensão do tema não é nova, nem resulta de uma "hermenêutica de interesse", de uma posição corporativa ou reativa, pois a venho sustentando há mais de dois anos em quase duas dezenas de congressos acadêmicos, e a apresentei, desde 1996, de forma privada, ao próprio relator da proposta de emenda constitucional na Câmara dos Deputados, Dep. Moreira Franco. É triste constatar, porém, que o problema continua praticamente no mesmo estado em que se encontrava há anos atrás.
O impasse, no entanto, é artificial, pois foi estimulado por norma inválida, que pode e deve ser removida mediante a plena restauração da ordem constitucional. Basta que as entidades ou as autoridades legitimadas para uma ação direta de inconstitucionalidade provoquem a Suprema Corte a eliminar a exigência de participação dos demais Poderes na iniciativa da lei fixadora do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. A Corte certamente preservará a autonomia da magistratura, elemento indiscutível e inegociável do Estado de Direito, criando condições para uma discussão mais democrática e serena do tema dentro do Congresso Nacional, segundo a regra da maioria e não segundo uma exigência prévia de unanimidade.[10]
9. IMPROPRIEDADE DA FIXAÇÃO DE TETOS CONSTITUCIONAIS ESTADUAIS
A demora na definição de teto de remuneração previsto na Emenda Constitucional 19 tem ensejado algumas aventuras constitucionais no plano estadual.
No Estado da Bahia, a título de adaptar a Constituição do Estado às normas constantes da Emenda Constitucional 19, foi aprovada a Emenda Constitucional n. 7, publicada no Diário do Legislativo de 18.01.99, contemplando norma específica sobre a fixação de limites de remuneração no plano estadual. Reza o dispositivo:
"Art. 34 (...)
§5º a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Desembargadores."
O dispositivo transcrito, constante da emenda estadual, parece confundir o velho e o novo sistema de imposição de limites à remuneração dos agentes públicos.
No antigo sistema, ainda ultra-ativo pela negativa dada no Supremo Tribunal Federal à auto-aplicabilidade das novas normas constitucionais (cf. ADInMC 1.898-DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, 21/10/98), haviam tetos estaduais e um teto municipal, além dos limites previstos para a União. Entre os tetos estaduais, a retribuição dos desembargadores servia de limite apenas para os membros e servidores do Poder Judiciário. No entanto, os vencimentos dos desembargadores, mesmo no âmbito do Poder Judiciário, não limitava as vantagens pessoais nem considerava as acumulações constitucionais, segundo a jurisprudência firme do Supremo Tribunal Federal.
No atual sistema, pela nova redação do art. 37, XI, há apenas um teto nacional, o equivalente ao subsídio fixado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal. A regra do atual art. 37, XI, ao contrário do que ocorria na redação original da lei fundamental, não menciona outros paradigmas para os Estados e Municípios. Muito menos a unificação do teto dos três poderes do Estado em um único referencial.
Não se trata de uma omissão. Na verdade, ao romper com o sistema anterior, que contemplava tetos diversos no interior da Federação, unificando o teto constitucional num paradigma nacional, a emenda constitucional n. 19 derrogou o sistema anterior e contrastará imediatamente com qualquer tentativa de ressuscitá-lo.
A unificação do teto é medida extrema, polêmica mesmo no plano da reforma constitucional federal, na medida em que coloca o Poder Legislativo e o Poder Executivo na dependência da iniciativa do Poder Judiciário para a definição do valor do teto de remuneração dos seus respectivos servidores. No plano estadual esta regra não encontra paralelo e nem parece possível introduzi-la mediante emenda à Constituição Estadual.
Não se entende, portanto, como pretendeu a Emenda Constitucional Estadual n. 7 mesclar um sistema com o outro. Por um lado, conter expressamente no limite que estabelece os valores relativos a vantagens pessoais e acumulações constitucionais. Por outro, referir ao valor dos subsídios dos desembargadores, e não dos Ministros do STF, como teto para o plano estadual.
Não se diga que se trata de subteto estadual. Mais precisamente, um subteto nominal constitucional estadual. Não teria qualquer sentido. Primeiro, porque não mais existe na Constituição Federal autorização para edição de subtetos nominais pela União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Segundo, porque quando esta autorização existia ela referia ao veículo da lei, flexível, mutável, e não ao texto constitucional estadual. Terceiro, porque a previsão hoje existente para fixação de uma relação entre a maior e a menor remuneração exige lei especial, de iniciativa de cada um dos Poderes e do Ministério Público, não podendo esta iniciativa ser suprimida por emenda constitucional. Quarto, porque a previsão de fixação facultativa de subteto móvel, diferenciado em cada um dos Poderes e no Ministério Público, não autoriza a inclusão no seu cálculo das vantagens pessoais e das acumulações constitucionais, até pelo caráter diferenciado dentro e fora do Estado para os valores dos subtetos móveis. O equivoco não deve ser seguido.
10. ALTERAÇÃO DO NOVO TETO CONSTITUCIONAL
O teto constitucional estabelecido pela Emenda Constitucional 19 corre o risco de ser revogado sem nunca ter sido implementado. Resultante de um complexo processo de negociação política, impulsionado pela opinião pública e por interesse políticos contraditórios, mostrou-se irrealista e demagógico, pouco flexível e de difícil operacionalização. Não são vícios desprezíveis e, o mais espantoso, não constavam da proposta original de emenda constitucional da reforma administrativa: foram adquiridos sobretudo pela iniciativa individual do Relator da Proposta de Emenda Constitucional da Reforma Administrativa na Câmara dos Deputados, personagem sem legitimação constitucional para iniciativas individuais em propostas de emenda constitucional (CF, art. 60).
Seja como for, as mudanças não tardaram: a Emenda Constitucional n. 25, de 14 de fevereiro de 2000, estabeleceu nova sistemática de subtetos para os Vereadores Municipais, graduando o limite máximo de remuneração desses agentes ao número de habitantes do Município. A referida emenda, ainda, retornou à sistemática de exigir que o subsídio dos Vereadores seja fixado pela Câmara Municipal em cada legislatura para vigorar na subseqüente, medida restauradora que somente merece elogios. A Emenda n º 25 entrará em vigor em 1º de janeiro de 2001.
Nada obstante, as atenções se concentram hoje na Proposta de Emenda Constitucional 137-A, de 1999, em curso no Congresso Nacional. Essa Proposta de Emenda, cuidando de modo praticamente exclusivo da revisão do sistema de fixação do teto constitucional de remuneração, altera e complementa a Emenda Constitucional n. 19, corrigindo vários dos desvios apontados. Corre o risco, porém, de também fracassar, por não reunir o consenso político necessário para a sua aprovação.
No substitutivo aprovado do Relator, Deputado Vicente Arruda, constam propostas de modificação relevantes:
a) fixa-se subteto aplicável a toda remuneração, subsídio, provento e pensão devida por Estados, Distrito Federal e Municípios equivalente ao subsídio do Governador do Estado, ressalvado o disposto nos arts. 27, §2º, 29, VI e 93, V, esvaziando parcialmente a importância do teto nacional vinculado ao valor do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal;
b) autoriza-se a fixação de subtetos por lei, observada a iniciativa dos Poderes e do Ministério Público, incluindo todas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza;
c) exclui do conceito de remuneração, para os fins do abate-teto, as verbas inerentes ao exercício do mandato eletivo e eventual gratificação percebida por magistrado e membro do Ministério Público pela atuação na Justiça Eleitoral;
d) estabelece como valor de incidência imediata para fins de aplicação da norma de teto o correspondente à maior remuneração percebida por Ministro do Supremo Tribunal Federal, incluídas todas as vantagens pessoais e funcionais, desde logo arbitrando o valor em termos certos (R$11.500);
e) recusa a soma do valor dos proventos, pensões e demais benefícios previdenciários com o valor da remuneração ou subsídio, dos servidores ativos, quando a acumulação for autorizada pela constituição e for exercida à data da promulgação da Emenda;
f) fixa escalonamento, ou subtetos específicos, para a estrutura do Poder Judiciário, definindo que os Ministros dos Tribunais Superiores perceberão noventa e cinco por cento do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal, observando-se os mesmos limites percentuais nos demais escalões do Poder Judiciário.
O Substitutivo foi aprovado em 05/04/2000 e em 14/06/2000 foi encerrada a discussão dos destaques. A matéria irá a Plenário da Câmara dos Deputados para a votação em primeiro turno. Dois destaques aprovados, no entanto, retiraram do texto elementos importantes, que podem comprometer a sua aprovação em plenário: o primeiro, da bancada do PTB, excluiu referência às vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza pelo subteto a ser definido por lei dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; o segundo, da bancada do PSDB, retirou do texto norma que excluía dos efeitos da definição do novo valor de subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal os juízes classistas de primeira instância, ativos ou inativos, bem como os seus pensionistas.
A discussão dessas propostas, difícil e demorada, demonstra bem a distância existente entre a racionalidade dos juristas e a necessidade de negociação pragmática que cerca todos os projetos de emenda constitucional sobre o assunto. Há consenso de que a mais precisa definição dos limites de remuneração no setor público constitui um imperativo ético, sem o qual é impossível conter hipóteses de apropriação da coisa pública por grupos restritos de agentes, especialmente nos estratos mais elevados do Estado. Mas esse consenso, infelizmente, não tem se mostrado suficiente para assegurar a efetividade das normas dedicadas ao tema. O teto constitucional de remuneração permanece incerto e sua definição prática continua sujeita a constantes mutações (por ação ou por omissão) e emendas constitucionais. Trata-se de tema ainda em aberto, cuja crônica instrui e incomoda, sem que se possa antecipar qualquer desfecho ou solução de consenso em curto prazo.