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Subsistência da ação publiciana no sistema jurídico brasileiro

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Agenda 18/06/2015 às 09:26

9 – A VISÃO DO JURISTA QUANTO AO USUCAPIÃO

Propõe-se o estudioso do direito a entender a experiência jurídica concretizada mediante modelos jurídicos prescritivos e hermenêuticos que atualizam os valores da Justiça, valor fundamental do jurídico.

Toda a compreensão da validade do direito far-se-á em 3(três) enfoques: vigência ou obrigatoriedade formal dos preceitos jurídicos; de eficácia ou da efetiva correspondência social ao seu conteúdo e dos valores capazes de legitimá-lo na sociedade. Não apenas o enfoque (validade, vigência kelseniano) ou validade-eficácia (Escola de Upsala, Olivercrona, Ross), onde valor é ilusão (a teoria emotivista da moral).

Longe estamos do parnasianismo jurídico que vingou em nosso Código Civil de 1916 e na Constituição de 1891, o da Supremacia da lei, do racionalismo jurídico de Kant. Foi o espírito dos doutos da Exegese e da “Analytical School”, na elaboração de institutos umbilicalmente ligados às origens do Ius Civile. Era a vontade do legislador[18].

Tal sistema foi objeto de conflitos, onde se moldou, à custa de lutas, o novo Estado de Direito fundado na justiça social, na busca dos valores da igualdade e não mais estigmatizada somente pelos ideais únicos de liberdade, vida e patrimônio (V e IV Emenda à Constituição Americana), sacrificando perigosamente a segurança jurídica.

Veio a preocupação com a eficácia do direito que não se completa sem uma jurisprudência de valores.

Aliás o gênio de Luís Recaséns Siches[19] nos insinua assim entender que o direito é uma obra humana social (fato), de forma normativa destinada a realização de valores.

Adotamos, pois, uma compreensão do direito, tal qual Reale, nas linhas de Wilhelm Sauer[20], que dá mais realce ao elemento axiológico, de linha tridimensional, que vê o valor como autônomo e não apenas como elemento de qualificação.

Com Kelsen, o Direito podia ser visto como objeto ideal. O Direito não é um triângulo ou outro objeto geométrico, situado no campo atemporal ou não espacial. Num Estado Democrático de Direito, a Justiça, valor máximo do Direito, não é mera adjetivação, mas substantivação do Direito. Não uma justiça plutocrática aristotélica, de cunho distributivo, mas uma justiça que coordena, em discussão permanente, normas de justificação e aplicação que possam harmonicamente, fundar a liberdade e em igualdade no acesso a bens da vida.

Falo de uma justiça que molda uma igualdade proporcional, única que pode valer uma legalidade igualitária algo que integra o dever-ser porque é valor.

O usucapião visto sob a ótica de uma legalidade igualitária, própria de um Estado de Direito, é um direito institucional[21] que, sem constituir direito fundamental serve a este, como garantia da liberdade e da igualdade, da solidariedade social, elementos estruturantes da moderna democracia, tal como o casamento, a liberdade do ensino particular, a irretroatividade das leis, etc.

Nesse contrato social da sociedade moderna é necessário, por ato de vontade, materialmente, igualar proporcionalmente, cedendo-se a liberdade, em prol do dever, mas sem pôr em risco a segurança jurídica.

O fato, posse continuada, boa-fé, é jurídico, porque uma norma sobre ele incide, ligando-lhe efeitos (relação jurídica e usucapião, entre o possuidor e o proprietário), onde axiologicamente, face ao não exercício das faculdades da propriedade pelo titular, surge o direito do possuidor em ver declarada a propriedade pelo Poder Judiciário e usar de remédios jurídicos, como proprietário ad instar, em benefício de seu direito, como é o caso da ação publiciana, vistas as relações de causalidade e relação no direito.

Passemos a expressão sintática da causalidade no usucapião.


10 – A EXPRESSÃO SINTÁTICA DA CAUSALIDADE NO USUCAPIÃO

Em trabalho de escol, que sensibilizou a obra de Pontes de Miranda, Zitelmann (Erro e Negócio Jurídico, 1879) aduz que o juízo normativo vincula o suporte fático à conseqüência de Direito, caracterizando a relação de causalidade jurídica, que ele tinha por análoga à causalidade natural, no que foi seguido por Von Thur[22]. Essa a crítica que se faz de Pontes de Miranda, em que o fato jurídico é visto como fato da natureza, o mestre não é a questão só a luz de deveres como Kelsen, de uma linha religiosa própria de Kant. Dessa lição, temos uma norma, onde a hipótese é descritiva de fato, que serve de suporte factual, fato juridicizado, fato jurídico. Entre ele e a conseqüência, estabelece-se uma relação. A conseqüência decompõe-se, internamente, numa relação, que, tecnicamente, denomina-se relação jurídica.

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O modal que afeta o enunciado jurídico é deôntico: estatui que deve ser implicação do conseqüente pela hipótese.

Estudando-se o functor deôntico temos: obrigatoriedade, permissividade e proibitividade. Isso é diverso da modalização com functores, próprios dos enunciados aléticos (descritivos), onde estamos fora da causalidade jurídica, em que temos: necessário, possível e impossível.

Os enunciados jurídicos são, pois, deônticos (dever-ser), envolvendo valores e informam, integram o objeto[23]. Para a dogmática importa o dever-ser; para a ciência do direito, verifica-se o ser.

Forma-se no usucapião, uma relação jurídica de direito real, formando um direito subjetivo absoluto, que permite o possuidor um direito real[24], que depois, se o direito subjetivo está inflamado, justamente com a pretensão de (exigir), interpor uma ação, sendo patente o direito à tutela jurisdicional contra o Estado (Direito subjetivo público).

Vejamos como se porta a norma primária (fato-lícito) no usucapião previsto no art. 1.238 do Código Civil, endonorma, na palavra de Cóssio[25], para conduta lícita:

Hipótese de incidência

Conseqüência

Critério material: ser possuidor do imóvel

Critério pessoal:

Critério temporal: durante um lapso de tempo no mínimo de 15 anos, que pode cair para 10 anos se o possuidor houver estabelecido sua morada habitual ou nele realizando obras ou serviços de caráter produtivo.

Sujeito ativo: possuidor;

Sujeito passivo: proprietário.

Critério ôntico: (conteúdo do dever jurídico)

Posse sem interrupção ou oposição, independente de boa-fé, e justo título somando-se a posse, sendo a coisa hábil. Sentença declaratória e registro.

Com isso se terá uma sentença declaratória de domínio e o registro no Cartório de Imóveis (aquisição originária da propriedade), que é mera decorrência da sentença que julga procedente o pedido.

Afirma Armando Holanda[26] que a sentença declaratória é requisito do usucapião extraordinário para que o instituto tenha natureza formal no mundo jurídico, daí seu efeito ex tunc.

Exige-se, no usucapião ordinário do art. 1.242 justo título e boa-fé, e 10 anos de posse. A boa-fé, segundo maior parte da doutrina, na tradição canônica, deve perdurar durante todo o tempo necessário para a aquisição da propriedade, devendo ocorrer do início ao fim do prazo. Justo título, já se disse, é negócio abstrato idôneo para transferir a propriedade, porém ineficaz no caso concreto, porque o transmitente não é proprietário. É a posse animus domini, sem que seja violenta, clandestina, nem precária, sendo inerente o título em virtude de que se exerce a posse. Necessário coisa hábil[27].

Só a norma pode regrar o usucapião, entendida na matéria a reserva de lei. Não cabe ao intérprete criar a norma. Cabe densificá-la, concretizá-la, objetivando descobrir a norma de decisão.

Aqui se fala em densificação, concretização (construção da norma), destinada a densificá-la[28].           


11 – AÇÃO DE USUCAPIÃO DE TERRAS. LEGITIMIDADE, COMPETÊNCIA, CITAÇÕES E INTIMAÇÕES, CONTESTAÇÃO, PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. O CARÁTER DÚPLICE DA REIVINDICATÓRIA NO USUCAPIÃO ESPECIAL (LEI N.° 6.969/81). O CARÁTER DA AÇÃO REAL COMO A AÇÃO PUBLICIANA

Legitimado, atributo transitivo, enquanto condição da ação é o possuidor, que, na ação de usucapião, tenha a posse atual, a teor do art. 1.243 do Código Civil.

O procedimento, rito, como se dá o movimento segue para o usucapião ordinário e extraordinário,  e  fora  o  comum,  ordinário.  Já  no  usucapião  especial,  o  rito  é  sumário  (Lei n.°  9.245/95).

Para tanto, deve-se observar o pressuposto processual de validade, capacidade, para ajuizamento. Capacidade é qualidade, legitimidade é relação. Sou capaz, pois tenho mais de 18 anos, e tenho legitimidade porque sou possuidor atual.

Réus são os proprietários e confrontantes, marido e mulher, pois a ação é real (art. 10), tal qual a publiciana.

Junta-se à ação processual (demanda) planta do imóvel e sua confrontação (RJTJSP 65/245), certidão do registro de imóveis (RT 510/217).

Os réus são litisconsortes necessários e, à sua falta, não se forma coisa julgada para o ausente, cabendo falar em sentença inexistente para este, não ineficaz. O que não existe não é rescindido, é sentença nenhuma, situação que ocorre face a falta de pressuposto processual de existência ou condição de ação. Já preocupava o mestre Calamandrei a idéia da sobrevivência da querela mullitatis no direito moderno, logo ele que de forma explêndida estudou o tema em sua La Cassazione Civile, em 1920.

Em estudo sobre a sentença, cuja nulidade sobrevive aos recursos[29], disse o grande mestre peninsular que a virtude somatória dos recursos não poderia, por exemplo, tornar uma sentença contendo dispositivo impossível ou incerto, isenta de tal nulidade.

Sabe-se que, no passado, fazia-se dicotomia entre a apelação para as sentenças válidas e a querela nullitatis contra as sentenças nulas, depois convergindo, em fusão, pela absorção da actio nullitatis pelo recurso de apelação. Essa linha de pensamento não considera, modernamente, abolida a querela de nulidade, já concebida no direito medieval, como meio autônomo de impugnação contra a sentença nula, reparando-se vícios formais que podem tornar nula a sentença.

É o caso da sentença insanável face a ausência de citação, onde a nulidade sobrevive à coisa julgada.

Tanto o STJ quanto o STF vêm proclamando a persistência da querela nullitatis no direito brasileiro, como se vê do acórdão da lavra do Min. Moreira Alves, proferido no RE n.° 96.374 (publicado na RTJ, vol. 110, p. 210).

A competência é absoluta, inderrogável (art. 95), para bens imóveis[30], fundada em ação real.

Face aos termos do art. 109, § 3.°, da Constituição Federal, em não havendo no local do imóvel sede da Justiça Federal, a Lei n.° 6.969/81 promove a delegação de competência da Justiça Federal para a Justiça Estadual.

O pedido é para declarar a existência do direito de propriedade, feito pelo proprietário ad instar.

São citados os réus certos, para se que quiserem contestar, sob pena de revelia, aplicando-se o art. 191, podendo ser a citação: por carta, por oficial de justiça, por edital.

Intimam-se por edital os interessados. É o juízo provocatório, velha tradição do direito românico-germânico, muito utilizado, no período reinol, até o século XVII. A ausência não gera necessidade de curador especial.

A intervenção do Parquet é como custos legis, bastando para fins de saúde do processo à intimação, nulidade relativa e cominada (RT 252/300).

Intimam-se a União, Estado-Membro, Município, Distrito Federal, para que manifestem interesse. Aliás, é inusucapível área pública (Súmula n.°  340 do STF).

Os efeitos do usucapião retroagem a data em que é completado o lapso temporal previsto. A sentença é meramente declaratória. O registro no Cartório de Imóvel é conseqüência e há, se mesmo não pedido na exordial.

E as hipotecas sobre o imóvel? No usucapião ordinário, a existência de hipoteca, direito real de garantia impede sua configuração[31]. O titular do direito real de garantia é atingido reflexamente, pode entrar como assistente simples no feito. Esses direitos se extinguem com a consumação do usucapião extraordinário (art. 1.238), usucapião, do art. 1.239 e do art. 1.240 do Código Civil, na medida em que instituídos quando já havia o curso do lapso temporal. A aquisição é originária. A sentença não atribui tal propriedade, o reconhece. O registro dá publicidade (Lei n.°  6.015, art. 167, I, 28).

Declaração de usucapião só há por ação não por alegação em defesa. Isso porque a ação reivindicatória não é dúplice, salvo o instituído no art. 7.° da Lei n.° 6.969/81, diverso da possessória (art. 922 do CPC). A defesa com relação a usucapião só serve para tornar improcedente o pedido na reivindicatória, assim como na publiciana.

Impraticável, outrossim, suscitar a ação declaratória incidental, em sede de ação de usucapião, uma vez que, em tal ação, não se discute propriedade, mas posse.

Anoto,  por  fim,  que  a  Lei  n.°   6.969/81,  no  art.  5.°,  §  1.°,  fala  da  possibilidade  de  o  autor  da  ação  requerer,  na  inicial,  designação  de  audiência  preliminar  de  justificação  de posse  e,  se  comprovada  esta,  ser  nela  mantido  liminarmente,  até  decisão  final.  Não  é simples justificação da posse ad usucapionem: na verdade, esta justificação serve como prova para  uma  proteção  possessória  liminar  (manutenção  da  posse),  de  nítido  caráter antecipatório.

Teria por objetivo essa justificação a obtenção do mandado liminar de proteção possessória, tendo de ser realizada, facultativamente, em audiência, e obtida a medida incidentalmente.


12 – CONCLUSÕES

Voltamos ao ponto inicial: a sentença de usucapião de terras é meramente declaratória[32]. Quando a propriedade já tiver sido adquirida pelo usucapião, frente ao antigo titular,  não ainda declarada em juízo, poderá o possuidor usar da ação publiciana (ação executiva), como proprietário de fato para retomada. A sentença no usucapião nada cria, declara, não ordena, declara, sendo o registro no Cartório de Imóveis conseqüência de publicidade, face a natureza erga omnes do Direito.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Subsistência da ação publiciana no sistema jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4369, 18 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33214. Acesso em: 22 dez. 2024.

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