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Redescobrindo o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos:

uma pontual abordagem criminológico-cultural

Agenda 01/06/2015 às 09:52

Comenta-se o tratamento dado à figura do criminoso em nosso meio cultural sob o pensamento filosófico de Mário Ferreira dos Santos.

Mário Ferreira dos Santos (1907 – 1968) é um dos poucos estudiosos no Brasil que podem realmente ser chamados de Filósofos e não de meros professores de filosofia ou história da filosofia [1], isso porque nunca se limitou a ruminar os pensamentos alheios (filosofia bovina), mas foi capaz de construir uma linha própria coerente e sólida.

Infelizmente, em meio à barbárie que toma conta inclusive dos meios considerados cultos ou acadêmicos, um pensador desse quilate incrustado qual um diamante raro em nosso solo tupiniquim, passa por um período de esquecimento no qual muitas pessoas sequer sabem de quem se trata. É bem verdade que um movimento de redescoberta vem se erigindo. Para esse movimento se pretende contribuir, ainda que muito singelamente, trazendo neste texto uma abordagem pontual do referido autor a respeito da visão social, cultural e, consequentemente, jurídico - criminológica, do criminoso não só no Brasil, mas também em outras paragens. Este é, aliás, um dos pontos em que se pode aquilatar a grandeza da obra de Mário Ferreira dos Santos, pois que, escrita em outros tempos, permanece atual, mais que isso, se atualiza cada vez mais, o que é típico dos grandes pensadores, das grandes obras, ou seja, sua perpétua atualidade, enquanto que os medíocres só produzem o que é passageiro, modismos e maneirismos mesmo no campo intelectual.

No que diz respeito à figura do criminoso e sua abordagem na sociedade moderna, Mário Ferreira dos Santos chama a atenção para a tendência de glamorização e superproteção concomitante com a humilhação e redução à condição de inferioridade do homem honesto. Toma-se a liberdade de transcrever seu texto:

“Verifica-se no Ocidente, depois do que sucedeu em épocas passadas, que voltamos, agora, principalmente, os olhos para o criminoso. A lesão em si torna-se secundária, e o objeto da lesão também. Uma benevolência crescente vai cercando o criminoso, e há tendência para considerá-lo apenas um doente mental. Como a ideia de liberdade foi falsificada, como os que falam nela, pouco dela entendem e menos ainda entendem os que a combatem, como a confusão é reinante neste setor, como se tende a transformar o homem apenas num feixe de reflexos, numa coisa que reage a outras coisas, e não  num ser que dispõe de inteligência e de vontade, essas últimas, reduzidas até a meros reflexos e nada mais, a benevolência quanto ao criminoso cresceu além dos limites justos, porque, realmente, havia, em nossos antepassados, uma visão exagerada em relação ao criminoso, a ponto de as penas serem desproporcionadas à lesão do crime.

Ora, nem tanto à terra nem tanto ao mar. Se uma acentuada benevolência, dentro de limites justos, se impunha, não havia necessidade de cair de um excesso a outro excesso. Hoje há uma tendência viciosa para tornar o criminoso mais numa vítima do que num responsável. E isso só tem servido para estimular o crime. O crime multiplicou-se e atingiu índices apavorantes. Já há quem pergunte se a sociedade humana, dentro de alguns decênios, não contará só com delinquentes e loucos, cujo número cresce em proporções avassaladoras. O número dos que se salvam diminui assustadoramente, apesar da repressão policial e de toda a propaganda dos amigos dos criminosos, dos que postulam penas cada vez mais suaves, se não terminarem alguns por pedir estátuas aos criminosos, como já se tentou erguer a um criminoso, que habilmente abalou muitas consciências.

Não se pense que defendemos excessos. Queremos sempre permanecer no meio justo e bom, conforme a grande máxima pitagórica. E bom aqui é o justo, o conveniente, visto com prudência e moderação, porque deve haver até moderação na benevolência. A magnanimidade e a clemência pertencem à moderação, sim, mas exigem a justiça, a prudência e a coragem, para que não se tornem viciosas. A magnanimidade e a clemência têm de se manifestar contidas na justiça, de modo a nunca ofendê-la.

Impõe-se abandonar a demagogia com os criminosos. Eles precisam do nosso auxílio, sem dúvida, mas o que é mister, do lado da sociedade, é que  não estimulemos a sua multiplicação. Que adiantaria lutar para salvarmos os que sofrem de uma determinada doença, se nos afanarmos  ainda em propagá-la? Salvaremos ou melhoraremos os indivíduos, mas prepararemos o terreno para que os criminosos não se multipliquem”. [2]

Santos cita Pitágoras, mas podemos indicar outro sábio antigo, Aristóteles, que vislumbrou o equilíbrio virtuoso da mediania:

“A virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. É um meio – termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta, pois nos vícios ou há falta ou há excesso daquilo que é conveniente no que concerne às ações e  às paixões, ao passo que a virtude encontra e escolhe o meio – termo. Portanto, acerca do que ela é, isto é, qual é a definição de sua essência, a virtude é uma mediania, porém com referência ao sumo bem e ao mais justo, ela é um extremo”. [3]

E não basta ter a noção de que é preciso buscar a mediania. Necessário se faz saber que esta é uma busca relacional que se opera na interação entre os diversos vícios e virtudes em busca do justo proporcional. Como lembra Chesterton, “todo vício é uma virtude enlouquecida” e elas enlouquecem “porque foram isoladas uma da outra e estão circulando sozinhas”. [4]

Não é de hoje e não é somente em terras tupiniquins (embora por aqui as coisas tendam a ganhar contornos intensos) que a glamorização do criminoso, do rebelde e do violento é operada por intelectuais e pelo mundo da arte. Dorothy e Thomas Hoobler expõem com maestria essa prática tão comum na Europa da “belle epoque”, já nos fins do século XIX quando anarquistas terroristas, ladrões, assassinos e transgressores de toda espécie eram convertidos em herois ou estrelas no mundo intelectual, artístico e jornalístico. [5]

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Essa situação incentiva à proliferação do que se convencionou chamar de “Síndrome ou Complexo de Heróstrato”. Heróstrato era um pastor de Éfeso que incendiou o Templo de Artemisa, a fim de ganhar notoriedade a qualquer preço, ainda que com sua própria destruição pessoal. [6] Num mundo em que a fama é um valor inestimável e no qual, como sempre foi, a grande massa de pessoas é incógnita, a tentação de obter fama, mesmo que por meios vis, é muito grande, ainda mais quando os espaços culturais e midiáticos estão postos à disposição para satisfazer essas tendências patológicas.

Ora, ninguém pretende pregar um retorno ao Talião ou uma organização social e jurídica paleorrepressiva. Mas é preciso não permitir que um movimento pendular de extremos se produza ou prossiga. Agora vemos um extremo de benevolência e, pior que isso, de glamorização, de valorização, de exposição midiática do criminoso como se um astro fosse. Ao mesmo tempo vemos um desprezo pelo homem trabalhador, por aquele que cumpre com seus deveres e que obedece às leis. Essa mistura é explosiva, inclusive para a criação de um clima propício para que o pêndulo se mova para o outro extremo vicioso. É isso que visa a advertência prudente de Mário Ferreira dos Santos quando clama por um equilíbrio virtuoso. A barbárie pode se manifestar tanto na extrema tolerância com o vício, como na extrema intolerância com este.


REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4ª. ed. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001.

CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.

HOOBLER, Dorothy; HOOBLER, Thomas. Os Crimes de Paris. Trad. Maria José Silveira. São Paulo: Três Estrelas, 2013.

PESSOA, Fernando. Heróstrato e a busca da imortalidade. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000.

SANTOS, Mário Ferreira dos. Invasão Vertical dos Bárbaros. São Paulo: É Realizações, 2012.


[1] Isso quando são bons professores, porque há casos de professores que odeiam classes (não sei se de aula ou somente as médias), de forma a sequer apresentarem uma vida coerente com seu “pensamento” (sic).

[2] SANTOS, Mário Ferreira dos. Invasão Vertical dos Bárbaros. São Paulo: É Realizações, 2012, p. 86 – 87.

[3] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4ª. ed. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 49.

[4] CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 52.

[5] HOOBLER, Dorothy; HOOBLER, Thomas. Os Crimes de Paris. Trad. Maria José Silveira. São Paulo: Três Estrelas, 2013, “passim”.

[6] Cf. PESSOA, Fernando. Heróstrato e a busca da imortalidade. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000, “passim”. Fernando Pessoa busca nesse livro empreender a compreensão da busca pela imortalidade pelo homem através dos mais diversos meios, tomando como grande parábola a narrativa da história de Heróstrato. Como é natural, o literato acaba se concentrando mais nessa busca no campo das letras, mas reconhece a existência de outros caminhos, inclusive tortuosos, nessa empreitada.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Redescobrindo o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos:: uma pontual abordagem criminológico-cultural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4352, 1 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33410. Acesso em: 23 dez. 2024.

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