A priori é preciso estabelecer que o foco do presente trabalho somente visa incidir sobre as tutelas antecipadas concedidas em desfavor da Fazenda Pública nos casos em que estiverem presentes os requisitos legais autorizadores da antecipação [1] e, não exista expressa vedação legal [2] para sua concessão.
Mais especificamente, se pretende apenas tecer considerações sobre a manifestação jurisprudencial e doutrinária que entende ser incabível a antecipação de tutela contra a Fazenda Pública em face da regra determinante do reexame necessário.
Pois bem, colhe-se da jurisprudência pátria, decisões emanadas dos mais diversos tribunais estaduais [3] e, até mesmo do e. Superior Tribunal de Justiça [4], no sentido de que o reexame necessário impede a concessão de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública, haja vista que com o reexame necessário, a eficácia da sentença fica diferida para após sua confirmação pelo Tribunal revisor.
No campo doutrinário, igualmente há autores defendendo o posicionamento acima aludido [5].
Ressalte-se apenas que a grande maioria dos nobres defensores dessa tese, admite, quando houver sério risco a inviolabilidade do direito à vida e a saúde, a mitigação dessa vedação.
Por outro norte, combatendo a respeitável posição do não cabimento de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública, parte majoritária da doutrina [6] e da jurisprudência nacional [7], apontam ser inaplicável o simples argumento de que o reexame necessário impede a tutela antecipada contra a Fazenda Pública.
Para tanto, utiliza basicamente os seguintes argumentos:
(a) o reexame necessário somente diz respeito às sentenças proferidas contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município e as respectivas autarquias e fundações de direito público, e não com relação as decisões interlocutórias proferidas contra estes;
(b) se a Lei não possui comandos inúteis, e a Lei 9.494/97 previu os casos em que não poderá ser antecipada a tutela contra a Fazenda Pública, por certo nos demais casos não há proibição.
Tais argumentos, por si só, ao meu ver, serviriam para elidir a suposta vedação de antecipação de tutela em face do reexame obrigatório.
Contudo, com o advento da Lei 10.352/2001, que introduziu alterações no Código de Processo Civil, surge mais um fundamento afastando a suposta vedação de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública.
A citada Lei acrescentou o inciso VII ao artigo 520 do Código de Processo Civil, elaborado dessa maneira:
"Art. 520. A apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo. Será, no entanto, recebida só no efeito devolutivo, quando interposta de sentença que:
(...)
VII - confirmar a antecipação dos efeitos da tutela. (NR)."
(grifamos).Assim, com essa alteração, a suposta vedação de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública pelo fato de esta não possuiria eficácia, ainda que provisória, enquanto o Tribunal ad quem não a apreciasse, passa, a partir de agora, a encontrar resistência no inciso VII do art. 520 do Código de Processo Civil, que estabelece regra em sentido diametralmente oposto.
E diante da colidência desses dois artigos, qual deverá prevalecer?
Respondendo a indagação, cumpre trazer a baila os brilhantes argumentos esposados pelo eminente Ministro Edson Vidigal por ocasião do julgamento do REsp nº 204.881/SP [8], que expressa, atualmente, de forma majoritária, o entendimento do e. STJ:
"Senhores Ministros, são 02 (dois) os dispositivos do Código de Processo Civil em aparente conflito: de um lado, o art. 475, II, que determinou o reexame necessário das sentenças proferidas contra a Fazenda Pública, com eficácia diferida após sua confirmação pelo Tribunal revisor; de outro, o art. 520, V, que impõe o recebimento da Apelação contra sentença que rejeitar liminarmente os embargos à execução ou julgá-los improcedentes, somente no efeito devolutivo, com a possibilidade de execução provisória.
Toda a atividade jurisdicional deve atender à finalidade precípua da norma que a rege, e em caso de dúvida, buscar nos princípios a sua solução. Aqui, impõe-se a aplicação teleológica do Princípio da Razoabilidade; ser razoável é ser moderado, comedido, ponderado, sensato, sem ser injusto, e nessa linha de raciocínio deve ser alçada a interpretação dos mandamentos legais.
Tenho que, dentre os dispositivos acima referidos, deva prevalecer aquele que melhor atenda aos fins sociais de sua aplicação: ou se considera que toda e qualquer sentença proferida contra a Fazenda Pública (federal, estadual ou municipal), seja ainda em processo de conhecimento, de execução ou cautelar, fique condicionada ao reexame necessário pelo Tribunal, ou se reconhece o direito à execução de título judicial contra a Fazenda, ainda que pendente recurso com efeito apenas devolutivo. A última solução é que deve preponderar.
A regra que impõe o reexame obrigatório é providência imperativa, de aplicação cogente, desde que nenhuma outra norma específica disponha em contrário, como é o caso."
Ainda proveniente do e. STJ, consta em acórdão da lavra do culto ministro Félix Fischer, verbis:
"A sentença que julga improcedentes os embargos à execução de título judicial opostos pela Fazenda Pública, incluídas as Autarquias, não está sujeita ao reexame necessário (art. 475, II, do CPC), tendo em vista que prevalece a previsão contida no art. 520, V, do CPC.
Precedentes.
Recurso desprovido [9]."
Denota-se assim, a partir de entendimento majoritário no e. STJ, que as disposições contidas nos incisos do art. 520 do CPC, por serem consideradas reguladoras de situação especial, prevalecem sobre a disposição geral prevista no artigo 475, I do CPC.
Explique-se apenas que, como, in casu, estamos cuidando de processo de conhecimento, essa prevalência não afasta por completo o comando contido no artigo 475, I do CPC, mas sim, serve apenas para atribuir eficácia provisória a sentença que confirmar a antecipação da tutela, salvo nos casos em que a lei expressamente a vedar [10].
Importante frisar também, que essa interpretação não representa novidade alguma, pois, o próprio parágrafo único do artigo 12 da Lei 1.533/51, apesar de estabelecer o reexame obrigatório das sentenças concessivas de segurança, permite que a mesma possa ser executada provisoriamente (eficácia provisória).
Já o trânsito em julgado dessa sentença que antecipa a tutela, somente poderá ocorrer, no caso de não ter sido interposto recurso, com o reexame necessário pelo Tribunal, consoante denúncia o teor da súmula 423 do Excelso Pretório [11][12].
Nesse sentido, vale transcrever o seguinte acórdão que bem sintetiza o exposto:
"PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO CAUTELAR – SENTENÇA – EFEITO DEVOLUTIVO DE APELAÇÃO – ART. 520, IV, DO CPC – EXECUÇÃO PROVISÓRIA – ART. 588 DO CPC – I. Mesmo estando a sentença, que decide o processo cautelar, julgando procedente a ação contra autarquia, sujeita a reexame necessário (Lei nº 9.469, de 10/07/97, c/c art. 475, II, do CPC), a apelação interposta contra aquela sentença, por força expressa de norma especial (art. 520, IV, do CPC), deve ser recebida no efeito apenas devolutivo, sendo possível, pois, sua execução provisória, mas com as cautelas previstas no art. 588 do CPC. II. Agravo parcialmente provido [13]."
Em conclusão, não há como negar, hodiernamente, que o reexame necessário não é, por si só, empecilho para a concessão de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, e, um dos fundamentos para esse entendimento advém do inciso VII do artigo 520 do CPC, que se aplica, inclusive, quando a antecipação da tutela tenha sido em desfavor da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município.
Bibliografia
1. Art. 273 do Código de Processo Civil.
2. Lei 9.494/97.
3. "ANTECIPAÇÃO DE TUTELA EM FACE PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO – INADMISSIBILIDADE – INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA – INTELIGÊNCIA DO ART. 475, II, CPC – OBRIGATORIEDADE DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO.
Ao contrário das cautelares que visam, tão-somente, à garantia processual do resultado útil da sentença, a tutela antecipada, como o próprio nome sugere, antecipa os efeitos da decisão final no todo ou em parte produzindo, portanto, os efeitos reservados à sentença transitada em julgado ou cujo recurso careça de efeito suspensivo.
A natureza jurídica da antecipação da tutela esbarra com o disposto no art. 475, do Codex Instrumentalis, que exige o reexame das decisões proferidas contra as pessoas jurídicas de direito público elencadas no inciso II, do referido artigo." (grifamos) (TJSC - Agravo de instrumento nº 00.020316-5, da Capital, Relator: Des. Volnei Carlin). E ainda: "É inadmissível a antecipação da tutela contra a Fazenda Pública porque, se a própria sentença está sujeita ao reexame necessário, não se pode antecipar efeitos que ela não possui (...)." (TJMS – AG 66.823-5 – Classe B – XII – Campo Grande – 3ª T.Cív. – Rel. Des. Nelson Mendes Fontoura – J. 25.08.1999).
4. "O instituto da tutela antecipada, assim como qualquer medida de caráter liminar contra a fazenda pública, não se compatibiliza com o princípio do duplo grau de jurisdição necessário, eis que a decisão só se torna exequível após sua confirmação pelo Tribunal ad quem." (STJ – REsp 103752 – SP – 5ª T. – Rel. Min. Edson Vidigal – DJU 01.02.1999 – p. 223).
5. FRANCESCO CONTE in Informativo Semanal COAD 25/95, p. 269; ALEXANDRE DE PAULA in Código de Processo Civil anotado, 7ª ed., RT, 1998, p. 1372; ANTONIO RAPHAEL SILVA SALVADOR in Da Ação Monitória e da Tutela Jurisdicional Antecipada, São Paulo, Malheiros Editores, 1995, págs. 56 e 57; ARAKEN DE ASSIS in Aspectos Polêmicos da Antecipação de Tutela, coordenação Teresa Arruda Alvim Wambier, Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 1997, p. 28.
6. JOEL DIAS FIGUEIRA JR. in Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 4, tomo I, págs.269 e 270; HUMBERTO THEODORO JÚNIOR in Aspectos Polêmicos da Antecipação de Tutela, coordenação Teresa Arruda Alvim Wambier, Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 1997; LUCIANO DE CASTRO LAMEGO in Comentários sobre a antecipação aa Tutela e a Fazenda Pública - Revista do Curso de Direito da FUMEC Vol. 2 - 2000, p. 39; MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS, in Da legalidade da antecipação da tutela contra o poder público – controle efetivo dos atos administrativos – artigo publicado na ST nº 107, maio/98, Porto Alegre: Síntese – CD Rom Júris Síntese, versão 21; JOSÉ EDUARDO CARREIRA ALVIM, in Medida Liminares e elementos co-naturais do sistema da tutela jurídica – Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, vol. 160, SP, Ed. Vellenich, 1997, p. 88; LUIZ RODRIGUES WAMBIER, in Antecipação da tutela em face da Fazenda Pública apud www.vepg.br/rj/a1v1at14.htm; NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA ANDRADE NERY, in Código de Processo Civil Comentado, 4ª ed., ed. Revista dos Tribunais, 1999, p. 754; entre tantos outros.
7. "Afora a exceção restritiva prevista na Lei nº 9.494, de 10.9.97, é admissível a antecipação de tutela contra a Fazenda Pública, circunstância que demonstra presente o fumus boni iuris.
A probabilidade de as autuações e as execuções fiscais levadas a efeito pelo Fisco ocasionar prejuízo de difícil ou penosa reparação configuram a presença do periculum in mora" (grifamos) (STJ - MC n.º 1.794, Min. Franciulli Netto). Vide ainda nesse sentido: STF RDA 222/244; REsp n.º 180.948, Min. Vicente Leal; TRF 4ª R. – AI 2001.04.01.009191-2 – RS – 6ª T. – Rel. Juiz Nylson Paim de Abreu – DJU 27.06.2001.
8. DJU de 02/08/99.
9. Resp nº 260946/RS, DJU 04/09/2000.
10. V.g.: Art. 3º da Lei 8.437/92 que atribui efeito suspensivo ao recurso voluntário ou ex officio interposto contra sentença em processo cautelar, proferida contra pessoa jurídica de direito público ou seus agentes, que importe em outorga ou adição de vencimentos ou de reclassificação funcional – artigo aplicável igualmente a tutela antecipada por força do artigo 1º da Lei 9.494/97.
11. "Não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ex-officio que se considera interposto ex lege."
12. Todavia, independerá de reexame necessário para a ocorrência do trânsito em julgado da sentença nos casos previstos nos §§ 2º e 3º do artigo 475 do CPC.
13. TRF 1ª R. – AG 199901000795224 – PI – 2ª T. – Relª Juíza Assusete Magalhães – DJU 10.08.2001 – p. 138.