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O juiz múltiplo

Agenda 16/12/2015 às 10:22

O Juiz do Século XXI é o magistrado apto não apenas a julgar os feitos que lhe são distribuídos. Deve ser gestor, conciliador. Busca-se não só o julgamento, mas a efetiva solução dos problemas que lhe são postos.

Introdução

O juiz do século XXI não é mais um simples julgador, cuja profissão exige-lhe apenas o conhecimento das normas jurídicas e da interpretação a elas dada pelos Tribunais.

O magistrado hodierno deve ter conhecimentos que vão além daqueles que em regra sempre foram exigidos no concurso de ingresso na carreira, diga-se em regra, porque recentemente a Resolução 75 do Conselho Nacional de Justiça, já em vista dessa nova realidade, inseriu como conteúdo mínimo obrigatório a ser exigido durante as avaliações conhecimentos na área de filosofia, sociologia, psicologia jurídica.

Assim, desde o início das etapas busca-se na figura do juiz um julgador apto a entender a realidade que o circunda não só do ponto de vista jurídico, mas também sob a ótica que possa ser fornecida pelas demais áreas de formação, em especial a sociologia e psicologia.

Nesse sentido são as disposições deste artigo, a fim de se destacar a necessidade de uma formação mais humana e menos teórica do magistrado.


O perfil do novo Juiz

O filósofo Montesquieu, baseando-se nas obras de Aristóteles e de John Locke escreveu o Espírito das Leis, delineando a tripartição do Poder, qual seja, Poder Executivo, Legislativo e Judiciário.

Montesquieu, em razão da realidade que vivenciava (regime absolutista na Europa, mandos e desmandos dos Reis, corrupção dos juízes), entendia que para evitar os abusos que presenciava, seria necessária a autonomia e limitação de cada um dos Poderes do Estado.

Nesse contexto, ao Poder Executivo caberia apenas a função de executar as leis, ao Poder Legislativo a de elaborá-las e o Poder Judiciário a aplicá-las ao caso concreto.

Cada esfera do Poder poderia atuar livremente, desde que respeitada a respectiva esfera de atuação, sendo que cada um dos poderes haveria de ter seus limites averiguados pelo outro, surgindo, assim, o sistema de pesos e contrapesos.

Como reflexo desse pensamento, e em razão do abuso dos déspostas, incluindo dos juízes que estavam a serviço da Corte, defendia-se, na revolução francesa e durante muito tempo depois, que o juiz seria um mero escravo da lei, ou seja, caberia apenas aplicar a letra fria da lei, sendo-lhe vedado interpretações.

Nascia assim a igualdade formal, na qual todos são iguais perante a lei, estando todos de igual forma sujeito a ela, não importando a condição pessoal, econômica, social ou qualquer outro fato de discriminação.

Todavia, com o passar do tempo percebeu-se que este sistema trazia falhas, posto que ao tratar desiguais de forma igual acabou por se cria uma outra justiça

Do mesmo modo, o pensamento foi evoluindo e o magistrado deixou de ser um mero escravo da lei para se tornar o aplicador, isto é buscar, o sentido real da norma, de modo que efetivamente as suas decisões tenham esteio no conceito de justiça e possa trazer paz social.

Ocorre que para ser um bom intérprete e exercer fielmente o mister conferido pela Carta Magna, não basta que o julgador tenha o conhecimento adquirido apenas pelos anos de leitura e estudo necessários para lograr a aprovação no concurso , é fundamental que busque adentrar em áreas diversas de sua formação acadêmica, e aqui quando se diz conhecimento, este traduz-se na vivência, na sua experiência como julgador, como cidadão e como homem que deseja e luta pela solução dos conflitos e paz social.

Até mesmo porque se de conhecimento pleno e profundo se tratasse, exigir-se-ia que também curssasse outras faculdades que não apenas a de ciências sociais.

Hodiernamente a sociedade não espera que o juiz seja o cume da cultura jurídica e senhor das palavras, embora não se possa negar que sendo a palavra a sua ferramenta de trabalho tenha ele um domínio maior da linguistica do que de outra área, todavia, não se pode admitir que o pretor tenha um conhecimento aprofundado das leis, sem que conheça, ainda, que de forma razoável a sociedade que o cerca.

Ora, como um julgador poderá ser justo, no sentido mais puro da palavra, se não é capaz de olhar ao seu redor e conhecer a realidade que o cerca, como será capaz de solucionar os conflitos que lhe são postos se a problemática for analisada apenas com os conhecimentos jurídicos que formam avaliados durante as etapas do concurso?

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Indispensável que abra a cortina de seu gabinete, respire e observe a realidade de sua comarca.

O juiz do século XXI deve ter conhecimentos que ultrapassam os meramente acadêmicos, a sua vida profissional não se resume apenas no conhecimento do direito posto, qual seja, a lei, doutrina e jurisprudências atuais, além das novas exposições que caminham para a mudança do paradigma vigente.

O juiz em sua função constitucional não tem apenas o dever simplório de julgar a lide que lhe é apresentada, mas principalmente de assegurar a paz social e o mérito do Estado Democrático do Direito.

E para alcançar tão nobre função, o juiz deve ser múltiplo, porquanto há necessidade que seus conhecimentos estejam além daqueles exigidos para a aprovação no concurso.

Hoje o julgador para que possa atingir a tão sonhada justiça em seu sentido mais puro, deve aliar-se dos conhecimentos de outras áreas como a sociologia e psicologia, mas quando diz-se aliar não é só no sentido de utilizar do conhecimento dos profissionais das respectivas áreas.

O conhecimento em psicologia faz-se fundamental, por exemplo, quando estiver lidando com o depoimento das partes e testemunhas, posto que a partir de gestos, postura, tom de voz, dentre outros e mediante o processo de observação poderá  dar guarida a validade da prova oral. 

Isso é importante, porque ao reverso do que o senso comum pode dizer nem sempre o fato de uma testemunha gaguejar, apresentar um relato confuso ou, de outro passo, relatar com clareza de detalhes e concatenação lógica de fatos,  seria sinal de mentira ou verdade de suas declarações.

Há vários fatores  no depoimento das parte a serem analisados, tais como, o nervosismo que a testemunha pode apresentar por estar em frente a figura do juiz, a própria memória e a forma que o consciente e subconsciente armazenam os acontecimentos e tendem a misturar fantasia com realidade e assim por diante.

Já no campo da sociologia, o magistrado não pode ser alheio ao mundo que o cerca, em especial a realidade da comunidade na qual exerce a função judicante.

Não basta só querer aplicar a letra fria da lei, sem que antes o julgador saia de seu gabinete, espreite a realidade que o circunda e passe a interpretar as leis conforme as peculiaridades que lhe são apresentadas.

Não se quer aqui dizer,que o magistrado deve verter a aplicação da lei conforme o que lhe é apresentado, até porque, em sendo todos iguais, devem estar todos no mesmo patamar de igualdade e a lei deve atingir a todos da mesma forma, mas, sim, que o magistrado deve estar atento a essa realidade ao conduzir um processo e até mesmo a forma da audiência, ao escolher o linguajar de suas decisões.

Nas comarcas em que a população em sua maioria reside na área rural, o magistrado deve perquirir a distância entre a zona rural e urbana, a fim de designar o horário de uma audiência, posto que deve levar em conta o tipo de transporte, o acesso e outros fatores determinantes no tempo de viagem.

Também deve ter o traquejo e a paciência ao ouvir o sertanejo, gente simples e de fala mansa, talvez diferente do tom ligeiro e apressado dos habitantes de grandes centros.

Assim, ao se inteirar da realidade que o cerca, nada impede, pelo contrário é louvado que participe das atividades locais, inclusive como meio de compreender o meio que esta em sua volta.

De toda sorte, também ao conhecer a realidade, poderá se tornar um comunicador melhor, eis que em tendo conhecimento do linguajar local e da maneira com que os habitantes se expressam automaticamente as suas decisões, já antenadas com esses fatores, poderão ser mais facilmente compreendida pelos cidadãos.

Outra função que é exigida do magistrado é a de gestor, já que há necessidade de não só de exercer o seu mister, qual seja, proferir despachos, decisões e sentenças, mas deve organizar os serviços da escrivania na qual atua de modo que haja presteza no serviço e que efetivamente possa cumprir o princípio constitucional da duração razoável do processo. Ora, de que adianta ao magistrado decidir rapidamente, se a escrivania não for capaz de cumprir prontamente o comando judicial?

Daí, porque, há a necessidade do juiz conhecer os pontos altos e baixos da escrivania, traçar estratégias para corrigir as falhas e aprimorar as áreas que já apresentam sucesso.

Deve compreender a capacidade laborativa de seus servidores e a partir deste ponto organizar a distribuição e tarefas, ou seja, é preciso averiguar qual servidor melhor se adapta, por exemplo, ao atendimento ao balcão ou a expedição de documentos, ao passo que outro poderá melhor atuar na juntada e assim por diante.

O magistrado, portanto, ao estipular as metas de serviço, também deve levar em conta os anseios e perfis de seus auxiliares, de modo que possa melhor usufruir da capacidade laborativa de cada um, traduzindo-se em melhorias ao público, a qualidade do serviço prestado a e satisfação do servidor.

Estes são os desafios do novo magistrado, do juiz múltiplo, que longe de ser apenas um tratadista na área jurídica, senhor das leis, precisa estar conectado com a realidade de sua comarca e ter a vivência, conhecimento e virtudes que não são adquiridas apenas nos bancos da faculdade ou nas longas horas de leituras jurídicas, mas, sim, a partir da expensão de seu conhecimento, adentrando em outras áreas que hoje são tão necessárias para o bom desempenho da função quanto atualização acadêmica.


Conclusão

Do magistrado do mundo moderno exige-se uma infinidade de características, além daquelas que tradicionalmente se esperam da figura do julgador.

Não é suficiente, e também não mais atende aos reclamos do cerne social a figura de um magistrado culto, ou no dizer popular “ doutor da lei”.

Hoje o juiz além dos conhecimentos jurídicos que lhe são pertinentes a função constitucionalmente delineada, necessário que sua visão de aplicador da lei não se limita tão só ao conhecimento da norma, da doutrina e da jurisprudência, importantíssimo que detenha conhecimento do mundo que está a sua volta, que saiba compreender o agir da sociedade que representa. Saiba conciliar quando a presença de um conciliador se fizer necessária, saiba ouvir e interpretar a narrativa, entenda o lado humano, seja um pacificador, um gestor, nunca se olvidando que não é um agente do poder, é como tal deve pautar sua conduta tanto nos autos quanto fora dele.

O magistrado, como prefacia José Renato Nalini, deve estar atento a sua missão, pois ao julgar não aponta apenas o caminho do certo e do errado, mas sinaliza a sociedade a conduta almejada, os comportamentos que serão aceitos e aqueles que serão reprimidos.

Na falência da moral, a missão do juiz – fazer justiça – torna-se epopeia heroica.[...]Ao decidir o juiz sinaliza à sociedade o parâmetro da conduta desejável. Há uma Constituição principiologica e dirigente que permite a hermenêutica seminal, criativa de uma nova ética para a nacionalidade. O juiz não deve declinar de seu compromisso com a justiça. Todo despacho, qualquer decisão, o exercício funcional do magistrado reveste caráter eminentemente docente (NALINI, 2012, p. 65).

E com  base nessas diretrizes há de cumprir sua missão.

Sobre a autora
Denise Pipino Figueiredo

Juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Rondônia. Especialista em Direito Constitucional. Professora na Escola de Magistratura do Estado de Rondônia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO, Denise Pipino. O juiz múltiplo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4550, 16 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33805. Acesso em: 22 nov. 2024.

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