O art. 59, do Código Penal prevê, in verbis:
“O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
I – as penas aplicáveis dentre as cominadas;
II- a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos
(...)”.
Assim, o magistrado, à vista das circunstâncias judiciais, indicadas no caput da norma legal, fixará a pena-base, na primeira fase de aplicação da reprimenda.
Nesse contexto, cabe perquirir se a pena-base pode ser aplicada acima do mínimo legal, quando o réu responder a ações penais, nas quais não haja condenação definitiva, ou figurar como investigado/indiciado em inquéritos policiais.
Frise-se, de logo, que há claro dissenso doutrinário e jurisprudencial a respeito do tema sob exame.
Há corrente de entendimento segundo a qual a ausência de condenação penal definitiva impede o aumento da pena-base.
Em conformidade com tal posicionamento, o princípio da presunção de inocência (ou da não-culpabilidade) há de ser observado, de modo que somente o trânsito em julgado da sentença penal condenatória pode acarretar o aumento da reprimenda.
O Superior Tribunal de Justiça, hoje, adota o citado entendimento, o qual resta consolidado na Súmula 444, litteris:
“É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena base”.
A segunda turma do Supremo Tribunal Federal, também, comunga com o referido posicionamento sumulado do STJ.
Nesse sentido, traz-se a cotejo o seguinte precedente:
“(...) Mera existência de inquéritos ou de ações penais em andamento não pode ser considerada caracterizadora de maus antecedentes, sob pena de violar o princípio constitucional da não culpabilidade (CF, art. 5º, LVII). Superação da Súmula 691. 3. Ordem parcialmente concedida para determinar ao Juízo de 1º grau que proceda à nova individualização da pena, tendo em vista a necessidade de afastamento dos maus antecedentes, considerados inquéritos e ações penais em curso. (...)”. (HC 112449[1], Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 05/06/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-037 DIVULG 25-02-2013 PUBLIC 26-02-2013).
Todavia, a matéria não resta pacificada no âmbito da Suprema Corte. Nessa senda de intelecção, verifica-se a existência de precedentes, segundo os quais a mera existência de inquéritos policiais e ações penais em curso servem para aumentar a pena-base.
Nesse sentido, traz-se à colação os seguintes julgados[2]:
“(...)1. Ausência de constrangimento ilegal na consideração do fato de o recorrente estar respondendo a outros processos, o que, segundo a jurisprudência da Corte, configura maus antecedentes, circunstância não considerada em nenhum outro momento da fixação da pena. (...)” (RE 427339, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 05/04/2005, DJ 27-05-2005 PP-00021 EMENT VOL-02193-03 PP-00578)
“EMENTA: PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMISSIBILIDADE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. FUNÇÃO PRECÍPUA DO STF. INQUÉRITOS POLICIAIS E AÇÕES PENAIS EM CURSO. MAUS ANTECEDENTES PARA FIXAÇÃO DA PENA. NÃO OFENDE AO PRINCIPIO DA INOCÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. I - Inexistência de argumentos capazes de afastar as razões expendidas na decisão ora atacada, que deve ser mantida. II - O Supremo Tribunal Federal deve, ante sua função precípua de guardião da Constituição, julgar se o acórdão recorrido deu ao texto Constitucional interpretação diversa da adotada pela Corte. III - Inquéritos policiais e ações penais em andamento configuram, desde que devidamente fundamentados, maus antecedentes para efeito da fixação da pena-base, sem que, com isso, reste ofendido o princípio da presunção de não-culpabilidade. IV - Agravo regimental improvido”. (AI 604041 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 03/08/2007, DJe-092 DIVULG 30-08-2007 PUBLIC 31-08-2007 DJ 31-08-2007 PP-00030 EMENT VOL-02287-07 PP-01455).
Cabe realçar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal ainda não decidiu a matéria de modo definitivo. Saliente-se, a propósito, que o julgamento do Recurso Extraordinário n° 591054, interposto pelo Ministério Público, resta suspenso e há empate na votação.
Com efeito, o Relator, Ministro Marco Aurélio, negou provimento ao recurso por entender que o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, traz a garantia de que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença condenatória.
No entendimento do eminente ministro, somente decisões condenatórias irrecorríveis podem fundamentar o aumento da pena-base. O site[3] do Supremo Tribunal Federal assim sintetizou o voto do Ministro Marco Aurélio:
“O ministro ressaltou que diversos tribunais e organismos internacionais, entre os quais a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o Comitê de Direitos Humanos a Organização das Nações Unidas defendem a presunção da inocência e condenam a possibilidade de que seja declarada a culpa de uma pessoa antes que o Poder Judiciário a estabeleça em definitivo. Lembrou ainda que a súmula 444 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) veda a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base.
O relator observou que, caso os inquéritos ou processos criminais considerados como antecedentes tenham desfecho favorável ao acusado, ainda assim ele sofrerá prejuízo, pois os procedimentos terão sido utilizados para aumentar sua pena em processo no qual foi efetivamente condenado. ‘O lançamento no mundo jurídico de enfoque ainda não definitivo e portanto sujeito à condição resolutiva potencializa a não mais poder a atuação da polícia judiciária e a precariedade de certos pronunciamentos judiciais’, argumentou.
De acordo com o ministro, as normas não podem ser interpretadas de forma a gerar perplexidade e a abordagem deve ser científica para evitar distorções. Considera também que elementos passíveis de perderem a sustentação fática não podem ser utilizados como reveladores de antecedentes. ‘Os dados que podem ser valorados na aferição da culpabilidade devem derivar de envolvimentos judiciais que levaram a condenações definitivas do agente por infrações penais, sejam crimes comuns, militares, eleitorais ou contravenções’ (...)”.
O voto do relator foi acompanhado pelos ministros Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki e Gilmar Mendes.
Por outro lado, o Ministro Ricardo Lewandowski abriu divergência e sustentou a possibilidade de aumento da reprimenda, com fundamento na existência de ações penais e inquéritos policiais em andamento.
Vale transcrever trecho do Informativo n° 749, da Suprema Corte[4]:
“O Ministro Ricardo Lewandowski entendeu que o art. 59 do CP compreenderia diversos aspectos, os quais deveriam ser considerados pelo juiz na dosimetria da pena. Cumpriria, então, ao julgador fixar a reprimenda da maneira que fosse suficiente para a reprovação e a prevenção do crime. Registrou que os antecedentes aludidos no art. 59 do CP não se confundiriam com os passíveis de agravar a pena nos termos do art. 61, I, do mesmo diploma, o qual trataria de reincidência. Exemplificou que haveria acusados com extensa ficha criminal, relativa a passagens pela polícia e a ações penais em andamento, o que precisaria ser considerado pelo juiz, no âmbito de sua discricionariedade. Assim, o magistrado poderia, com fulcro no art. 59 do CP, ponderar esses maus antecedentes.”.
O voto divergente foi acompanhado pelos Ministros Rosa Weber e Cármen Lúcia e o ministro Luiz Fux. Veja-se, a propósito, excerto do Informativo n° 749, do Supremo Tribunal Federal:
“A Ministra Rosa Weber consignou que não haveria afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência, uma vez que o juiz, com base nas particularidades da situação concreta, teria a prerrogativa de valorar negativamente, no estabelecimento da pena-base, a existência de diversas investigações e ações penais em desfavor do acusado. O Ministro Luiz Fux aduziu que a presunção de inocência não seria um princípio, mas uma regra passível de interpretação teleológica e sistemática. Assinalou que o antecedente seria tudo aquilo que antecedesse ao fato criminoso, ou seja, a vida 'ante acta' do réu. Acresceu que o fato de se levar em consideração os maus antecedentes não significaria, de início, uma condenação. Reputou que, à luz do princípio da igualdade, não se poderia dar tratamento igual para quem nunca tivesse praticado crime e para quem tivesse processos e inquéritos pendentes. Afirmou, ainda, que o Estado teria um direito fundamental que se sobreporia ao do indivíduo, de impor a ordem penal”.
Em seguida, o julgamento foi suspenso para colheita dos votos faltantes, quais sejam, dos Ministros Dias Toffoli, Celso de Mello e do Ministro que viria a ser indicado para a vaga do Ministro Joaquim Barbosa.
Portanto, há quatro votos em cada sentido, de modo que o tema sob exame não é alvo de consenso. Adite-se que o Ministério Público Federal apresentou petição, na qual requereu seja reconhecido o prejuízo do recurso extraordinário, ante a superveniência da prescrição da pretensão punitiva estatal.
O Ministro Relator determinou a intimação do recorrente, Ministério Público do Estado de Minas Gerais, para manifestação sobre o pleito do Ministério Público Federal, e os autos estão conclusos conforme indica a movimentação processual consultada na data de hoje (29/11).
Logo, ainda não é possível saber se haverá a continuidade do julgamento do RE 591054, por parte do Plenário da Suprema Corte, ou se esperaremos a rediscussão do tema em outro processo.
A nosso sentir, é possível a majoração da pena-base, por conta da existência de ações penais em andamento. Ressalte-se que processos criminais movidos contra o réu indicam que a conduta social e a personalidade devem ser valoradas, negativamente.
Ora, se testemunhas indicarem que o réu é afeito a desordens, ou atos violentos na comunidade em que vive, haverá a comprovação de que não possui boa conduta social. Deste modo, com mais razão, a prova documental de que o acusado responde a ações penais demonstra que possui má interação com o meio social.
De igual modo, a existência de processos criminais em curso, provada documentalmente, demonstra hipótese de reiteração de práticas delitivas, o que reforça a necessidade de aumento da reprimenda.
Numa palavra, se quando da prolação da sentença houver documento indicativo da existência de processos penais em curso contra o réu, haverá comprovação de má conduta no seio da sociedade e de reiteração da prática de ilícitos penais.
Deste modo, a periculosidade do acusado justifica a aplicação de pena mais severa do que em relação a sentenciado que não figure como réu em qualquer outra ação penal.
Gize-se, a propósito, que a pena-base, nos termos do art. 59, do Código Penal, deve ser necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime, de modo que há de ser mais severa para quem não possui bom comportamento social por reiterar na prática de ilícitos.
Vale escandir, ainda, que, para fins de decretação da prisão preventiva, a periculosidade do acusado é depreensível pela mera notícia da prática de outras infrações penais e, com mais razão, pela prova documental que demonstre figurar o indivíduo como réu em outras ações penais.
Assim sendo, se a existência de processos em curso serve para restringir a liberdade no curso do inquérito ou do processo (quando sequer há previsão de edição de sentença penal), com mais razão, pode servir de fundamento para aumento da pena-base.
Cabe salientar, outrossim, que a desconsideração da existência de ações penais em curso viola o princípio da isonomia, pois consoante bem salientou o Procurador-Geral da República[5], Rodrigo Janot, em sustentação oral no julgamento do RE 591054, o comportamento social e a personalidade de réu que não responda a nenhum outro processo será semelhante ao de quem responde a outros processos e inquéritos.
Portanto, não vislumbramos violação ao princípio da presunção de inocência, na hipótese de aumento da pena-base do acusado que já responde a ação penal diversa.
Todavia, entendemos que inquéritos policiais ou procedimentos investigatórios em andamento não justificam, por si sós, a aplicação da pena-base acima do patamar mínimo previsto em lei. Nessa toada, cumpre salientar que o inquérito é mero procedimento informativo e, portanto, dotado de precariedade.
Em breve síntese, na ação penal, há mais robustez quanto aos indícios de autoria, mormente pois o Ministério Público, no caso de ação penal pública, já formulou a opinio delicti.
Entretanto, o inquérito, em si, não confere maior solidez em relação à autoria delitiva, pois os investigados/indiciados podem nem ser denunciados pelo titular da ação penal pública.
Diante do exposto, entendemos que, somente, ações penais em curso podem servir para a fixação da pena-base acima do patamar mínimo previsto no mínimo legal. Não vislumbramos, no particular, qualquer ofensa ao princípio da não-culpabilidade e esperamos que o Supremo Tribunal Federal afaste o entendimento veiculado na Súmula 444, do STJ.
Notas
[1] Disponível em <www.stf.jus.br> Acesso em: 26 de novembro de 2014.
[2] Disponível em <www.stf.jus.br> Acesso em: 26 de novembro de 2014.
[3] Publicado no link notícias, em 05/ 06/2014.
[4] Disponível em <www.stf.jus.br> Acesso em: 27 de novembro de 2014.
[5] Disponível em <www.stf.jus.br>, link notícias. Publicado em 05/06/2014. Acesso em: 27 de novembro de 2014.