Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Do cabimento do habeas corpus nas prisões disciplinares militares ilegais e abusivas

Exibindo página 1 de 3
Agenda 01/11/2002 às 00:00

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Noções históricas do Hábeas corpus no Brasil. 3. Direito Disciplinar militar. 4. Das inconstitucionalidades dos regulamentos disciplinares. 5. Do cabimento do Hábeas corpus nas prisões disciplinares. 6. Conclusões. 7. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO.

O Habeas corpus é um dos mais belos institutos jurídicos a serviço do homem desde a Idade Média. Sua origem remonta ao Direito Inglês na Magna Carta libertatum de 1215 outorgada por João sem terra, por imposição dos barões ingleses, sendo configurada com mais precisão, ainda na Inglaterra, como um remédio destinado a assegurar a liberdade dos súditos, com "Habeas Corpus Amendment Act" de 1679. Desde então se difundiu para os demais povos civilizados, alcançando status constitucional de remédio de direito garantidor da liberdade de locomoção.

O Habeas corpus constitui-se em autêntica ação penal de natureza processual constitucional (autêntico remédio jurídico), destinada a assegurar a liberdade de locomoção do cidadão sem distinção de sexo, cor, raça, idioma,religião, nacionalidade, capacidade, seja civil ou militar. Na lição de PONTES DE MIRANDA "Habeas corpus eram as palavras iniciais da fórmula ou mandado que o tribunal concedia e era endereçada a quantos tivessem em seu poder, ou guarda, o corpo do detido. A ordem era do teor seguinte: ‘tomai o corpo desse detido e vinde submeter ao tribunal o homem e o caso’ [1]


2 NOÇÕES HISTÓRICAS DO HÁBEAS CORPUS NO BRASIL

No Direito pátrio o Habeas corpus, segundo lição de HERÁCLITO ANTONIO MOSSIN, veio aparecer com o Decreto de 23 de maio de 1821, que sobreveio à partida de D.João VI para Portugal, embora o mencionado decreto não fizesse referência expressa ao Habeas corpus. Alguns tratadistas afirmam que o Habeas corpus estava implícito na Constituição Imperial de 1824, assertiva esta não aceita pela maioria dos autores. Com a edição do Código de Processo Criminal de 1832, vem previsão do writ no seu art.340, in verbis: "Todo cidadão que entender que ele ou outrem sofre prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade, tem o direito de pedir ordem de habeas corpus em seu favor" (grifo nosso).Tem-se aqui o surgimento do writ no direito brasileiro com as palavras sacramentais. Ainda no Império com a edição da lei 2033 de 20 de setembro de 1871, no seu art. 18 previa o habeas corpus preventivo, inclusive contra autoridades administrativas, e estendia o direito de pedir habeas corpus aos estrangeiros.

Com a promulgação da Constituição de 1891 no seu art.72, & 22, o remédio heróico alcançava um status de autêntica garantia constitucional a serviço do cidadão, in verbis "Dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso de poder".

Com tal redação e sob influência das lições de Rui Barbosa, criou-se "a doutrina brasileira do Habeas corpus" que aceitava o mandamus para defesa de direitos líquidos e certos, não apenas a liberdade de locomoção. Tal extensão de aplicação do Habeas corpus gerou intensas discussões no Supremo Tribunal Federal.O dissídio doutrinário terminou com a emenda constitucional de 3 de setembro de 1926, que restringiu o instituto apenas à salvaguarda do direito de locomoção,o direito de ir, vir, ficar, o "ius manendi, eundi e veniendi, ambulandi, eundi ultro citroque". Os demais direitos líquidos e certos, que não a liberdade de ir e vir, foram amparados com o mandado de segurança. A partir de então todas as constituições republicanas asseguravam o direito ao Habeas corpus, assim o fizeram a carta de 1934 no art.113, n 23; a carta de 1937 no art.122, n 16; a carta de 1946, & 23; a carta de 1967 no art.153, & 20 e atual lex suprema no art.5º, inciso LXVIII: "Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder". Na legislação ordinária em vigência fazem previsão do Habeas corpus o Código de Processo Penal nos arts. 647 ao 667 e o Código de Processo Penal Militar nos arts. 466 ao 480.

Reina uma ativa discussão na doutrina acerca do cabimento, ou não, do Habeas corpus nas punições disciplinares que privem o militar de sua liberdade de locomoção. A controvérsia resulta do fato que a redação do inciso LXVIII do art. 5º da CF/88 dispõe in verbis "conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder", não fazendo, portanto, restrições ao uso do mandamus. Já no Título V da CF/88 que cuida "Da defesa do Estado e das Instituições Democráticas", no seu capítulo II, no art. 142, &2º reza "Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares" (grifo nosso). Para complicar mais ainda a situação, dispõe o inciso LXI do mesmo art. 5º da CF/88 que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão disciplinar ou crime propriamente militar, definidos em lei". Nesta situação a ressalva visa albergar os casos de prisão disciplinar e crime militar, nos quais a ordem de prisão emana da Autoridade militar. Ainda assim, nos crimes militares a prisão deve ser comunicada ao juiz competente para conhecer do caso.

Pretendemos neste ensaio, defender a posição de que em algumas situações concretas cabe a concessão da ordem de Habeas corpus nestas transgressões.Verdade é, e não o desconhecemos, que os tribunais recusam, quase que sistematicamente, concessão do writ nestas circunstâncias e em algumas poucas decisões de vanguarda deferem os pedidos de Habeas corpus. O fundamento jurídico para denegar o pedido encontra-se no art.142,&2o da Carta maior da Republica e no art.466, 2a parte, letras a e b do CPPM. Segundo a exegese dos referidos dispositivos haveria "carência de ação" por impossibilidade jurídica do pedido. Interpretação tão restrita e atentatória dos direitos fundamentais do cidadão, não encontra guarida no moderno Estado Democrático de Direito, segundo nosso modesto entendimento.

Uma afirmação de CHÄIM PERELMAN é inspiradora: "Quando as autoridades se opõem, pode-se estabelecer uma hierarquia entre elas, ou poder-se levar em conta o número de pareceres abalizados, mas nada prova que a decisão, diante da qual será necessário inclinar-se, seja efetivamente a única solução justa para o caso levantado" ·· (2) (grifo nosso).

Sabemos que uma das vigas mestras do Estado Democrático de Direito é ampla possibilidade de fruição dos direitos fundamentais do homem, incluindo o direito à vida, a igualdade de todos perante a lei e a liberdade, tal como disposto no caput do art. 5º da CF/88. De forma que a Constituição atual não distingue o cidadão militar do civil já que "... todos quantos fazem parte da comunidade política fazem parte da comunidade jurídica, são titulares de direitos e deveres aí consagrados; os direitos fundamentais têm ou podem ter por sujeitos todas as pessoas integradas na comunidade política, no povo" [3].

Estando consignada no caput do art.5º da constituição a natureza universal dos direitos fundamentais do homem, no sentido de que todos os cidadãos sem discriminação de qualquer natureza são o alvo da proteção constitucional. É verdade, e não o negamos, que os servidores públicos militares enquadram-se em uma especial categoria de servidores, que demandam um regime jurídico e de fruição dos direitos fundamentais diferenciado. No entanto, tal especial estado de sujeição não implica renúncia aos direitos fundamentais, nem num regime de servidão em relação ao Estado. Restringir o acesso dos militares ao Poder Judiciário, tal como pretende a regra do art. 142, & 2º da Constituição, é afetar o homem na sua dignidade e instalar o totalitarismo, transformando o militar em cidadão de segunda categoria, porquanto "a encarceração de uma pessoa (...) é uma arma menos pública. Ninguém a percebe, ou poucos poderão dela ter notícia. Oprime às escuras, nas prisões, no interior dos edifícios, nos recantos. É violência silenciosa secreta, ignorada, invisível; e, portanto, mais grave e perigosa do que qualquer outra" [4].

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Temos precedentes de tal natureza na nossa história republicana quando da edição do ATO INSTITUCIONAL n. 5 de 13 de dezembro de 1968 que suspendeu a garantia do Habeas corpus nos casos de crimes políticos e contra segurança nacional no seu art 10 e excluíram, no seu artigo seguinte, da apreciação do poder Judiciário, todos os atos praticados de acordo com o AI 5. Como se não bastasse tal excrescência jurídica, a Emenda Constitucional n 1 de 1969, dispunha nos seus arts. 181 e 182 que estavam excluídos da apreciação do Judiciário todos os atos praticados pelo comando da "revolução" de 1964 reafirmando a vigência do AI 5. Sem sombra de dúvida, estes foram os mais brutais instrumentos jurídicos que ordem jurídica do país conheceu desde a independência. Todos conhecem, e a história não nega, as centenas de prisões ilegais, assassinatos, brutalidades, desmandos ocorridos sob tal "ordem jurídica", na suposta defesa da segurança nacional e do Estado. Não seria o disposto no art. 142, & 2º resquício desta ordem totalitária? Tal dispositivo não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, pois as prisões ilegais e derivadas de abuso de poder, sejam elas de natureza disciplinar ou não devem ser coíbas e rechaçadas pelo Poder Judiciário. Em PONTES DE MIRANDA colhemos "Onde não há remédio do rito do Habeas corpus, não pode haver garantia segura da liberdade física. Errar é humano. Coagir é vulgar; abusar do poder é universal e irremediável. A história toda é prova disto e a contemporaneidade confirma-o a cada passo... só recurso pronto, fácil, suspensivo como o Habeas corpus, pode acudir a liberdade dos indivíduos" [5]


3. DIREITO DISCIPLINAR MILITAR

.

As forças armadas e as forças militares auxiliares (policiais militares e bombeiros militares dos estados e do Distrito federal) são instituições que existem para garantir a defesa da pátria e dos poderes constitucionais, além das funções de segurança pública consoante o mandamento do caput do arts.142 e 144 da CF/88. Os militares das forças armadas estão submetidos aos respectivos Regulamentos disciplinares tal com disposto no Estatuto dos militares (lei 6880/80).

Os dois princípios informadores do regramento militar são a hierarquia, que "é o ordenamento da autoridade em níveis diferentes de acordo com o posto e a graduação do militar" (art. 14, &1º da lei 6880/80) e a disciplina que é "a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar" (art. 14, & 2º da lei 6880/80). São, portanto, servidores públicos com um regime jurídico diferenciado, que decorre da elevada natureza de suas funções constitucionais.

As Transgressões ou contravenções militares são violações dos deveres ou obrigações dos militares, na sua manifestação mais elementar e simples. O Decreto federal 88545 de 26 de julho de 1983 – REGULAMENTO DISCIPLINAR DA MARINHA - no seu art. 6º define "Contravenção disciplinar é toda ação ou omissão contrária às obrigações ou aos deveres militares estatuídos nas leis, regulamentos, normas e nas disposições em vigor que fundamentam a Organização Militar, desde que não incidindo no que é capitulado pelo Código Penal Militar como crime" (grifo nosso). Com redação semelhante dispõe o Decreto federal 90680 de 04 de dezembro de 1984 – REGULAMENTO DISCIPLINAR DO EXÉRCITO – no seu art.12 e no Decreto federal 76322 de 22 de setembro de 1975 que institui o regulamento da Aeronáutica. O regulamento disciplinar do Exército brasileiro serve de modelo para os regulamentos dos militares estaduais.

Segundo ROMEIRO, há uma tênue linha divisória entre o crime militar e a transgressão disciplinar, sendo que "baseado nos rígidos princípios da hierarquia e disciplina militar (...) torna-se difícil estabelecer, por este motivo, uma diferença essencial de conteúdo, semelhante ao do direito penal e disciplinar comum, entre dispositivos do Código Penal Militar e dos regulamentos disciplinares militares, cujos limites se estadeiam por vezes até esfumados haja vista certos ilícitos militares cuja configuração, como crime ou contravenção disciplinar, é confiada ao poder discricionário do julgador..." O crime militar seria aquele que só poderia ser praticado pelo militar, seria o crime funcional do profissional militar, tais como deserção, cobardia, etc [6]. Numa concepção eminentemente processualista "crime propriamente militar seria aquele cuja ação penal só pode ser proposta contra militar". [7] Vemos, portanto, que há dois âmbitos de apreciação da violação dos deveres e obrigações militares, o primeiro junto à Administração militar feita pelo superior hierárquico do militar (Autoridade militar) e outro junto à Justiça militar da União e dos estados.

Limites tão estreitos entre o crime militar e a contravenção disciplinar, por outro lado, não ensejam dupla punição. Leciona ROMEIRO: "em virtude da já assinalada cambiante linha divisória entre o crime militar e a transgressão disciplinar, não há cumulação de sanções em se tratando do mesmo fato. É dispõe adotando o princípio do ne bis in idem nas relações do direito penal e disciplinar castrenses, o &2º do art.42 do Estatuto dos Militares (lei 6880, de 9 de dezembro de 1980), verbis: ‘ no concurso de crime militar e de contravenção ou transgressão disciplinar, quando forem da mesma natureza, será aplicada somente a punição em relação ao crime’. [8]


4. DAS INCONSTITUCIONALIDADES DOS REGULAMENTOS DISCIPLINARES.

Cada regulamento disciplinar elenca as condutas que constituem as transgressões, estabelece regras de apuração, circunstâncias agravantes e atenuantes, e dispõe sobre a aplicação da sanção que inclui a prisão administrativa por até trinta dias e a exclusão do serviço público a bem da disciplina, entre outras sanções mais brandas. Não há previsão específica da sanção de acordo com a conduta proibida. Prevê-se recurso de reconsideração para a autoridade a quem o militar está imediatamente subordinado e lhe aplicou a sanção, e recurso para autoridade superior a coatora "desde que cumprida a pena imposta e no prazo de oito dias úteis" (por todos os regulamentos, vide o art.45– da reconsideração e art. 46 – do recurso à autoridade superior, do Regulamento Disciplinar da Marinha).

Consideramos tal dispositivo de cumprimento da pena como condição para aceitação do recurso para instância superior como flagrante violação do princípio constitucional da presunção de inocência (art.5º, LVII, verbis "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória"). A presunção de inocência é um princípio magno do Estado Democrático de Direito que preside os processos em geral, incluindo os de natureza administrativa. De que adiantaria após o cidadão ter cumprido seu tempo de prisão, ser declarada a improcedência da punição? Dispositivos desta natureza não podem ser aplicados, pois não foram recepcionados pela atual ordem constitucional.

Mais grave violação constitucional encontramos disposto no parágrafo único do art.7 º do Regulamento disciplinar da Marinha que reza que "considera-se contravenção as condutas não especificadas no artigo desde que não seja crime militar e ofenda a hierarquia e as regras de serviço"( grifo nosso). Disposição semelhante encontramos no regulamento disciplinar do Exército (modelo para o regulamento dos estados, lembre-se) e da Aeronáutica. Ou seja, o cidadão militar pode ser preso por violar uma conduta não tipificada como transgressão, "porquanto depende tão-só e somente do livre e alvedrio e talante (da autoridade competente) considerar como transgressão ‘todas as ações e omissões ou atos não especificados’no rol das transgressões... não há, pois como livrar-se de uma sanção disciplinar, se assim ‘decidir’a autoridade competente..." [9].

Ora, excluir da apreciação do poder Judiciário em ação de Habeas corpus, como quer o legislador constituinte do art. 142, & 2º, prisão de militar, por 20 dias, por exemplo, por violar conduta não especificada no regulamento, é agredir de uma só e única vez o PRINCÍPIO DA LEGALIDADE do inciso II do art. 5º "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" e o PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO JUDICIÁRIA inserto no inciso XXXV do mesmo art. 5º que reza "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito!" Excluir do conhecimento do Judiciário é atentar contra o Estado Democrático de Direto, já que "a defesa dos direitos fundamentais é da essência de sua função. Os tribunais detêm a prerrogativa de controlar os atos dos demais poderes, com o que definem o conteúdo dos direitos fundamentais proclamados pelo constituinte". [10] Alem do mais, já esta assente na doutrina e na jurisprudência que o poder Judiciário é competente para avaliar a legalidade dos atos administrativos.

Não subsiste razão a regra do art. 142,& 2º da CF/88, já que a liberdade é um princípio fundamental que informa o Estado brasileiro desde os tempos imperiais, como leciona PIMENTA BUENO em comentários aos 178 e 179 da Constituição Imperial : "A liberdade é o próprio homem, porque é a sua vida moral, é a sua propriedade pessoal mais preciosa, o domínio de si próprio, e a base de todo o seu desenvolvimento e perfeição, a condição essencial do gozo de sua inteligência e vontade, o mero prefazer seus destinos...como dita a razão esclarecida, e como expressa formalmente a nossa tese constitucional, a liberdade não é pois uma exceção,é sim a regra geral, o direito positivo; a proibição, a restrição, isso sim é que são as exceções, e que por isso mesmo precisam ser provadas, achar-se expressamente pronunciadas pela lei, e não por modo duvidoso, sim formal,positivo ; tudo o mais é sofisma" [11] ( grifo nosso).

Há autores que afirmam que o dispositivo do &2º do art. 142 padece de "inconstitucionalidade", por se tratar de norma apenas formalmente constitucional. Em uma conferência de 1951 OTTO BACHOF já questionava:

"Põe-se, além disso, a questão de saber se também uma norma originariamente contida no documento constitucional (...) uma norma criada, portanto, não por força da limitada faculdade de revisão do poder constituído, mas de ampla competência do poder constituinte, pode ser materialmente inconstitucional. Esta questão pode parecer à primeira vista, paradoxal, pois na verdade, uma lei constitucional não pode manifestamente, violar-se a si mesma. Contudo poderia suceder que uma norma constitucional de significado secundário, nomeadamente uma norma só formalmente constitucional, fosse de encontro a um preceito material fundamental da Constituição" e, portanto "carecer, por isso, de obrigatoriedade jurídica em virtude de uma contradição com um preceito de grau superior do mesmo documento constituinte" [12] (grifo nosso).

Temos como óbvio que a norma-regra do art.142, &2º colide com os demais preceitos constitucionais e viola o sagrado princípio do direito ao Habeas corpus para cessar a ameaça ou o efetivo constrangimento ilegal, além de ser uma regra secundária no interior do sistema constitucional brasileiro. Constituti-se em flagrante discriminação do servidor militar, maculadora dos direitos fundamentais. Em que pese a doutrina constitucionalista dominante, afirmar a ilimitação jurídica do poder constituinte originário que não encontra barreiras de direito positivo, o não menos ilustre constitucionalista português Jorge Miranda afirma na esteira de outros autores portugueses:

"quer o poder constituinte formal, quer o poder constituinte material são limitados pelas estruturas políticas, sociais, econômicas e culturais dominantes na sociedade, bem como os valores ideológicos de que são portadores", adiante completa fulminante : "há que distinguir três categorias de limites materiais do poder constituinte: limites transcendentes (porém de imperativos de direito natural, dos valores éticos superiores, de uma consciência jurídica coletiva, ex: direitos fundamentais conexos com a dignidade da pessoa humana); limites imanentes ( que são limites ligados à configuração do estado soberano e que pretenda continuar a sê-lo...) e os limites heterônimos (que são os limites provenientes da conjunção com outros ordenamentos Jurídicos). Referem-se a princípios e regras de Direito Internacional" [13].

GOMES CANOTILHO no seu Tratado de Direito Constitucional esposa a mesma opinião acerca das limitações materiais ao Poder Constituinte [14] Há que se reconhecer que são argumentos dignos de prudente reflexão.

Por outro lado, é pertinente indagar : como orientar sua conduta no interior da Organização militar se o que não está previsto como transgressão disciplinar pode ser punido? Sabemos que uma das funções do tipo penal (ou como seja, do tipo contravencional, mutatis mutandi) é a função de garantia de somente ser punido quando houver expressa, taxativa, inequívoca previsão legal. PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR nos seus comentários ao Código Penal esclarece: "a norma, para que venha a converter-se numa proibição-comando, tutelando com eficiência os bens-interesses nela contidos, haverá de ser determinada, dotadas de contornos claros e precisos, satisfazendo assim ‘as exigências racionais de certeza" [15].

Inegável não traçar analogia entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Disciplinar, já que os princípios que norteiam aquele encontram aplicabilidade também neste. [16]Ambos cumprem funções repressivas e preventivas no interior da ordem jurídica.Temos que semelhante dispositivo que enseja punição sem previa descrição da conduta proibida padece de inconstitucionalidade por atentar contra o Princípio da legalidade.

Sobre o autor
Antoniel Souza Ribeiro da Silva Júnior

acadêmico de Direito da Universidade Católica do Salvador (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA JÚNIOR, Antoniel Souza Ribeiro. Do cabimento do habeas corpus nas prisões disciplinares militares ilegais e abusivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3448. Acesso em: 23 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!