5. DO CABIMENTO DO HÁBEAS CORPUS NAS PRISÕES DISCIPLINARES.
Sabemos que os pressupostos para a concessão do Habeas corpus são a ilegalidade e o abuso de poder. Aquela como uma contrariedade às prescrições legais e este como exercício distorcido, arbitrário do poder, o mau uso do poder de que dispõe a autoridade. Uma vez que seja do conhecimento do juiz o atendimento dos dois pressupostos constitucionais para concessão do writ, é seu dever como guardião da constituição e das leis, concedê-lo. Outro não é o mandamento constitucional do inciso LXV que dispõe que toda prisão ilegal será relaxada imediatamente pela autoridade Judiciária. O próprio CPPM no art. 224 reza : "se, ao tomar conhecimento da comunicação (da prisão), a autoridade Judiciária verificar que a prisão não é legal, deverá relaxá-la imediatamente" (grifo nosso). Igualmente não foi recepcionado pela Constituição o art. 466 do Código de Processo Penal Militar, que dispõe na sua parte final: "Excetuam-se, todavia, os casos em que a ameaça ou coação resultar: a) de punição aplicada de acordo com os regulamentos disciplinares da forças armadas; b) de punição aplicada aos oficiais e praças das Polícias militares e bombeiros militares, de acordo com os respectivos regulamentos disciplinares.Aceitando-se como materialmente inconstitucional o disposto no &2º do art.142, corpo estranho no ordenamento constitucional, não há base de validade a suportar a parte final do art.466 do CPPM e as citadas alíneas.
Além do mais, inciso LXVIII não exclui que Poder judiciário possa conhecer das ações de Hábeas corpus, já que conhecer da ação não significa necessariamente dar-lhe provimento, como afirmam alguns exegetas do texto constitucional, que parecem inspirados pela Escola da exegese do século XIX, que se atinham à pura interpretação literal dos textos legais, mero processo dedutivo de lógica formal. No qual a premissa maior é a vedação expressa do art.142, &2º, a premissa menor é a prisão ilegal do militar e a conclusão a sentença que não conhece do pedido.
Os instrumentos da lógica formal são insuficientes para adequada e moderna Hermenêutica jurídica. MARIA HELENA DINIZ Comentando os ensinamentos de RECASÉNS SICHES dispara:
"... a lógica empregada para descoberta dessas soluções (dos problemas humanos) não é a lógica do racional, mas a do razoável. A lógica do racional, isto é, a dedutiva, alheia a critérios axiológicos é imprópria para solução dos problemas humanos, pois de sua aplicação resulta conclusões insensatas até monstruosas. A lógica do razoável é permeada por pontos de vista axiológicos, por conexões entre valores e fins, por relações entre fins e meios, aproveitando-se das lições da experiência prática e da experiência histórica, estando condicionada pela realidade concreta do mundo em que opera (...) não apresenta solução abstrata, idealizada, considerada a melhor para todos os tempos e lugares, mas uma solução concreta para cada caso, que pode até mesmo ser anti-silogística" [17](grifo nosso).
Se tais métodos de interpretação puramente literal resultam insuficientes para realização do valor justiça no caso que demanda decisão judicial, com mais razão ainda se revela incapazes de atender aos reclamos da moderna hermenêutica constitucional. A constituição há que ser interpretada como um sistema normativo, uma ordem que "deve ser apreendida, a qualquer instante, como um todo, na busca de uma unidade e harmonia de sentido. O apelo ao elemento sistemático consiste aqui em procurar as recíprocas aplicações de preceitos e princípios em que aqueles fins se traduzem, em situá-los e defini-los na sua inter-relação e em tentar, assim, chegar a uma idônea síntese globalizante, crédivel e dotada de energia normativa". [18]
Argumentos de interpretação e solução do conflito entre princípios e regras podem ser expendidos para reforçar a tese da pertinência do Hábeas corpus nas prisões disciplinares ilegais e abusivas.Na contradição entre a norma-regra (tal como é o art.142 &2º, que contem uma proibição taxativa e se aplica segundo um critério de "tudo ou nada") e a normas-princípios (da isonomia de tratamento dos indivíduos pelo Estado, da regra da liberdade, da inafastabilidade de controle e de acesso ao Poder Judiciário, do princípio da legalidade, do devido processo legal, de que toda prisão deverá ser comunicada a Autoridade judiciária, todos consignados no magno art.5º da CF/88 e o princípio da proporcionalidade implícito na ordem constitucional), a norma-princípio há que prevalecer com toda sua soberania e força. Valemo-nos aqui das lições de PAULO BONAVIDES para quem: "... a demonstração da superioridade e hegemonia dos princípios na pirâmide normativa, supremacia que não é unicamente formal, mas sobretudo material, e apenas é possível na medida em que os princípios são compreendidos e comparados a valores...", concluindo que os princípios por estarem : "postos no ápice da pirâmide normativa, elevam-se, portanto, ao grau de norma das normas, de fonte das fontes.São qualitativamente a viga-mestra do sistema, o esteio de legitimidade constitucional, penhor da constitucionalidade das regras de uma constituição". [19] Além do mais, os princípios insertos na magna carta são importante fonte de interpretação e integração do direito pátrio. O juiz há que cotejá-los com a regra legal a ser aplicada no caso concreto, objetivando a realização do valor justiça no caso em julgamento.
Há julgado do STF no sentido de que não há vedação para conhecimento das ações de Hábeas corpus no HC 70.643/1993 da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence: "O entendimento relativo ao & 2º da art. 153 da EC/1969, segundo o qual o princípio, de que nas transgressões disciplinares não cabia habeas corpus, não impedia que se examinassem, nele, a ocorrência dos quatro pressupostos de legalidade dessas transgressões (hierarquia, poder disciplinar, o ato ligado à função e pena suscetível de ser aplicada disciplinarmente), continua válido para o disposto no & 2º do art. 142 da atual CF que é apenas mais restritivo quanto ao âmbito dessas transgressões disciplinares, pois a limita às de natureza militar. Habeas corpus deferido para que o STJ julgue o writ que foi impetrado perante ele, afastada a preliminar de seu não - cabimento. Manutenção da liminar deferida no presente habeas corpus até que o relator possa apreciá-la, para mantê-la ou não" (grifo nosso).
O entendimento não poderia ser outro: A autoridade judiciária deve conhecer do pedido de Habeas corpus e deferi-lo liminarmente, como autêntica medida cautelar do status libertatis do cidadão, se presente seus pressupostos constitucionais (prisão ilegal ou decorrente de abuso de poder), independentemente da natureza da prisão do cidadão. O eminente FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO lembra que "uma das mais belas criações de nossa jurisprudência foi a liminar em pedido de habeas corpus, assegurando de maneira mais eficaz o direito de liberdade. Malgrado as críticas que, injustamente, se fazem ‘a Justiça militar, cumpre registrar que tal providência - liminar em habeas corpus preventivo - foi concedida pelo Almirante José Espíndola, ilustre figura que perolou no STM (cf. RTJ, 33/590)". [20]
PONTES DE MIRANDA já lecionava no século passado em lição ainda atual que "quem diz transgressão disciplinar refere-se, necessariamente, a (a) hierarquia, através da qual flui o dever de obediência e de conformidade com instruções, regulamentos internos e recebimento de ordens; a (b) poder disciplinar, que supõe a atribuição de direito de punir, disciplinarmente, cujo caráter subjetivo localiza em todos, ou em alguns, ou somente em alguns dos superiores hierárquicos; a (c) ato ligado à função; a (d) pena, susceptível de ser aplicada disciplinarmente, portanto sem ser pela justiça como justiça." [21] Na ausência de tais pressupostos que ensejem a prisão do militar, a prisão há que ser relaxada pelo juiz, pois se trata de constrangimento ilegal ao "ius libertatis". A liberdade de locomoção do individuo não é um bem jurídico de segunda ordem a ser tratada de maneira discriminatória pelo legislador seja constituinte ou ordinário. Na hierarquia constitucional dos valores, a liberdade avulta juntamente com a dignidade da pessoa humana e a isonomia.
Cumpre-nos registrar que tal postura por parte da Autoridade judiciária em conceder a ordem de Habeas corpus em nada atenta contra o princípio da hierarquia e da autoridade insertos na vida dos militares, ou ingerência do Poder Judiciário nas atividades do Executivo. Outra não é a atuação do juiz, senão o controle da legalidade dos atos da administração e a preservação da ordem constitucional em sua plenitude. HERÁCLITO MOSSIN ensina que
"o princípio da autoridade deve ser respeitado e prestigiado quando a pessoa que dela se encontra revestida atue dentro dos contornos legais, nos limites estabelecidos pela lei. A partir do momento que sua atuação se mostre arbitrária e transgressora do preceito legal não pode prevalecer aquele princípio tendendo a convalidar aquilo que o direito não agasalha. Isso seria a negação do próprio direito", aduzindo adiante que "... seria altamente insensato quem nome dessa hierarquia ou dever de obediência se tolerasse, para prestigiar o princípio da autoridade, ou coação ou sua ameaça da liberdade física do servidor público. O direito não deve, inexoravelmente, sancionar aquilo que por ele não é aceito, nem aparado e nem tutelado" [22](grifo nosso).
Ou seja, é falsa a premissa de que para se assegurar o princípio da autoridade, a hierarquia e disciplina nos meios militares será necessário recorrer à abjeta tática de restrição do uso do Habeas corpus, mesmo quando a prisão decorre de ilegalidade e abuso de poder por parte da Autoridade militar. A experiência histórica brasileira registra as monstruosidades ocorridas no período de exceção nas décadas de 60 e 70. O acesso à tutela jurisdicional (CF/88 inciso XXXV do art. 5º) é própria dos Estados Democráticos de Direito. Restrições e óbices perversos para o acesso ao Estado-juiz não são compatíveis com o regime democrático e com a isonomia de tratamento dos cidadãos pelas autoridades públicas.
Um argumento final ainda pode ser acolhido para fulminar as pretensões daqueles que rechaçam de plano a conveniência do Hábeas corpus nas prisões disciplinares ilegais e abusivas. O segundo parágrafo do art. 5o como norma aberta dispõe: "os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotado, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte"(grifo nosso). O pacto de San Jose de Costa Rica de 22 de novembro de 1969, ratificado pelo Brasil e que ingressou no sistema jurídico nacional através do Decreto n.678 de 06 de novembro de 92, adquirindo status de norma constitucional, como se no texto da CF/88 estivesse escrito [23], dispõe no art. 7, n.6 : Toda pessoa privada de sua liberdade tem o direito de recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a detenção forem ilegais. Nos Estados-parte cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido.O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa "(grifo nosso).
Inequívoco que o dispositivo se reporta ao Hábeas corpus e este instrumento não pode ser restringido ou suspenso. Mais uma norma com dignidade constitucional a contraditar o parágrafo segundo do art.142. E mais, no art.25, n 1 do referido Pacto esta consignada de forma explicita : "Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juizes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais" (grifo nosso).
Na leitura atenta das normas do tratado, principalmente estas a que nos referimos, não consta que o "recurso simples e rápido" ou "outro recurso efetivo"(entenda-se Hábeas corpus) possa ser restringido em se tratando de prisões disciplinares ilegais e abusivas. Além de serem normas constitucionais garantidoras dos direitos humanos fundamentais, integrantes do rol do art.5º por determinação do parágrafo segundo deste mesmo artigo, aquelas normas de direito internacional (integrantes da ordem constitucional pátria) por serem mais benéficas que o disposto no art.142,&2º faz com que esta regra seja inaplicável [24].
6. CONCLUSÕES.
Diante do exposto, concluímos pelo cabimento do Habeas corpus na prisão disciplinar militar decorrente de ilegalidade e abuso de poder. Entre outras situações cabe o remédio heróico: (a) quando a autoridade militar coatora não seja competente para aplicar a punição (não há o ato-ligado `a função); (b) quando o fato que enseja a punição não esteja tipificado como transgressão no regulamento (violação do inciso II da art.5º); (c) quando o procedimento administrativo não atendeu ao devido processo legal e todos os seus corolários da ampla defesa e do contraditório que a Constituição assegura a todos os acusados em geral ("ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal", inciso LIV do art. 5o da CF/88); (d) a autoridade legítima para aplicar a punição não atendeu aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade que deve governar os atos das autoridades públicas em geral (prisão abusiva) ; (e) quando o militar estiver preso por tempo superior ao prescrito na decisão, entre outros exemplos.
Em um momento em que a doutrina penal questiona a falência da pena de prisão como forma sancionatória de delitos comuns, propondo formas sancionatórias alternativas à prisão, seria de bom alvitre o legislador rever a utilidade da prisão disciplinar como ameaça sancionatória dos deslizes disciplinares dos militares. Não propomos aqui que se subtraia da autoridade militar seu legítimo poder disciplinador, o que seria um absurdo. Questionamos da necessidade de se utilizar a prisão-restrição ao direito de ir e vir, confinamento – como mecanismo assegurador da disciplina. Ora, se a infração disciplinar atingiu dada magnitude a ensejar uma prisão de trinta dias, por exemplo, indagamos se merece o militar continuar compondo os quadros da corporação ou ser excluído a bem da disciplina? Não seria uma ilusão acreditar que o cidadão irá se emendar após sua detenção? Bom caminho começa a ser trilhado pelo legislador estadual quando editou o novo Regulamento Disciplinar da Polícia militar do estado de São Paulo (lei complementar 893 de 26 de março de 2001) que prevê como alternativa sancionatória às transgressões disciplinares "os serviços extraordinários".