1. Introdução
Surge a dúvida quanto à regra insculpida no artigo 57 da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, que prevê a duração dos contratos administrativos adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, o que, em regra, veda a possibilidade de fornecimento de material em exercícios futuros, considerando um mesmo contrato que não pode ser prorrogado quando trata de aquisição de material.
É que o legislador fez referência expressa apenas à prestação de serviços na exceção à regra (inciso II do artigo 57 da Lei de Licitações) que permite a prorrogação dos pactos, não dispondo sobre qualquer caso de aquisição de bens.
Dessa forma, nas hipóteses de aquisição de bens, em não se enquadrando a situação nos outros incisos do referido artigo 57 da Lei 8.666/93, fica a administração obrigada a fixar o prazo do contrato à vigência dos respectivos créditos orçamentários.
Mas é sabido que esta questão da impossibilidade da prorrogação dos contratos de fornecimento de bens, com natureza contínua, tem gerado controvérsia.
2. Da análise sobre a controversa impossibilidade de prorrogação dos contratos de fornecimento de material
O artigo 57, § 3º, da Lei 8.666/93 veda o contrato com prazo indeterminado, permanecendo a regra de se fixar a sua duração, principalmente quando há obrigações de trato sucessivo, em que o prazo fica adstrito à vigência dos respectivos créditos orçamentários, como dispõe o caput do referido artigo 57, verbis:
“Art. 57. A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos:”
Como exceções à regra, a Lei acrescentou incisos ao art. 57, verbis:
“I - aos projetos cujos produtos estejam contemplados nas metas estabelecidas no Plano Plurianual, os quais poderão ser prorrogados se houver interesse da Administração e desde que isso tenha sido previsto no ato convocatório;
II - a prestação de serviços a serem executados de forma contínua, que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos com vistas a obtenção de preços e condições mais vantajosas para a Administração, limitada a sessenta meses. (Redação dada pela Lei nº 9.648/98 – DOU 28.5.1998)
III - (Vetado).
IV - ao aluguel de equipamentos e à utilização de programas de informática, podendo a duração estender-se pelo prazo de até 48 (quarenta e oito) meses após o início da vigência do contrato.
V - às hipóteses previstas nos incisos IX, XIX, XXVIII e XXXI do art. 24, cujos contratos poderão ter vigência por até 120 (cento e vinte) meses, caso haja interesse da administração. (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)”
Portanto, como se verifica no inciso II do artigo 57 da Lei de Licitações, o legislador fez referência apenas à prestação de serviços, naquela exceção à regra, não dispondo sobre qualquer caso de aquisição de material.
Dessa forma, nas hipóteses de aquisição de bens, em não se enquadrando a situação nos outros incisos do referido artigo 57, fica a administração obrigada a fixar o prazo do contrato à vigência dos respectivos créditos orçamentários.
É sabido que esta questão da impossibilidade da prorrogação dos contratos de fornecimento de bens, com natureza contínua, tem gerado controvérsia, repita-se.
No âmbito do Distrito Federal, por exemplo, o Tribunal de Contas local conferiu interpretação extensiva ao artigo 57, II, da Lei 8.666/93, permitindo que a exceção também autorize as situações de fornecimento contínuo, devidamente fundamentadas pelo órgão interessado.
Na assentada que consolidou este entendimento do Tribunal de Contas do Distrito Federal (processo 4.942/95, de 10.11.1999), ficou registrado que há lacuna na lei de licitações no que tange à prorrogação de contrato de fornecimento contínuo de material. Confira-se trecho do Voto do Conselheiro José Eduardo Barbosa, no processo em referência:
Concluímos, então, que há vaccum legis, vez que o não reconhecimento da figura do fornecimento contínuo inviabiliza o atendimento estrito da Lei nº 8.666/93.
Partindo-se do pressuposto de que a Lei das Licitações não tem por objeto inviabilizar as aquisições de forma continuada de materiais de que a Administração não possa prescindir, e que não é esta a intenção do legislador, a melhor alternativa para permitir o fornecimento contínuo de tais materiais imprescindíveis é, sem dúvida, admitir-se a interpretação extensiva do dispositivo constante do inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/93 para tais casos.
Ante o exposto, entendemos que esta Corte possa, usando da prerrogativa a ela conferida no art. 3º da sua Lei Orgânica, firmar entendimento no sentido de permitir a interpretação extensiva do disposto no inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/93, aos casos caracterizados como fornecimento contínuo de materiais.
E este entendimento da Corte de Contas Distrital gerou Decisão Normativa sobre o tema, verbis:
“Fornecimento Contínuo. É admitida a interpretação extensiva do disposto no inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, às situações caracterizadas como fornecimento contínuo, devidamente fundamentadas pelo órgão ou entidade interessados, caso a caso.
DECISÃO NORMATIVA Nº 03, DE 10 DE NOVEMBRO 1999
Dispõe sobre a interpretação extensiva do disposto no inciso II do artigo 57 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. O PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE CONTAS DO DISTRITO FEDERAL, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, inciso XXVI, do Regimento Interno, aprovado pela Resolução/TCDF nº 38, de 30 de outubro de 1990, e tendo em vista o decidido pelo Egrégio Plenário, na Sessão realizada em 03 de dezembro de 1998, conforme consta do Processo nº 4.942/95, e Considerando a inexistência de melhores alternativas, como exaustivamente demonstrado nos autos do Processo 4.942/95, que possibilitem à Administração fazer uso do fornecimento contínuo de materiais; Considerando o pressuposto de que a Lei nº 8.666/93, de 21 de junho de 1993, não tem por objeto inviabilizar as aquisições de forma continuada de materiais pela Administração, nem foi esta a intenção do legislador; Considerando que, dependendo do produto pretendido, torna-se conveniente, em razão dos custos fixos envolvidos no seu fornecimento, um dimensionamento do prazo contratual com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a Administração; Considerando a similaridade entre o fornecimento contínuo e a prestação de serviços contínuos, vez que a falta de ambos "paralisa ou retarda o trabalho, de sorte a comprometer a correspondente função do órgão ou entidade" (Decisão nº 5.252/96, de 25.06.96 – Processo nº 4.986/95); Considerando a prerrogativa conferida a esta Corte no art. 3º da Lei Complementar nº 01, de 09 de maio de 1994; Resolve baixar a seguinte DECISÃO NORMATIVA: a) é admitida a interpretação extensiva do disposto no inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, às situações caracterizadas como fornecimento contínuo, devidamente fundamentadas pelo órgão ou entidade interessados, caso a caso; b) esta decisão entra em vigor na data de sua publicação."
Todavia, o entendimento firmado no Tribunal de Contas da União é divergente quanto ao tema. Para o TCU, a interpretação do Artigo 57, II, da Lei 8.666/93 deve ser restritiva, no sentido de que só se deve considerar possível a prorrogação nos casos de prestação de serviço contínuo, sendo que os contratos firmados para a aquisição de material, como é o caso em análise, devem ter vigência adstrita aos respectivos créditos orçamentários, verbis:
“Evite realizar prorrogações indevidas em contratos e observe rigorosamente o disposto no art. 57, inciso II, da Lei no 8.666/1993, considerando que a excepcionalidade de que trata o aludido dispositivo está adstrita à prestação de serviços a serem executados de forma contínua, não se aplicando aos contratos de aquisição de bens de consumo (Grifou-se). Acórdão 1512/2004 Primeira Câmara”
E a melhor doutrina administrativista acompanha o TCU nessa controvérsia do artigo 57, II, da Lei 8.666/93. O Professor Marçal Justen Filho, em sua obra “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13ª Ed., Dialética. São Paulo: 2009, p. 698.”, ensina:
“A regra não abrange as compras. A distinção se reporta a questões apontadas nos comentários ao art. 6º. Em termos sumários, existe serviço quando a prestação consiste em obrigação de fazer. Já a compra envolve prestação versando sobre obrigação de dar. A distinção se faz em função da prestação principal, que dá núcleo e identidade à prestação. È perfeitamente possível, porém, avençar obrigações acessórias de natureza distinta da principal, sem que isso afete a natureza da contratação. Assim, uma obrigação de dar (principal) pode ser acompanhada de uma de fazer (acessória) e vice-versa. Como exemplo, uma compra pode ser acompanhada do dever de entregar em determinado local o bem vendido. O transporte da coisa vendida é obrigação de fazer, de natureza acessória. Sua existência não transforma a compra em serviço. Deve apurar-se o fim visado pelas partes e é óbvio que a administração não realizou o contrato buscando obter prestação de transportar. O fim que motivou a contratação foi a aquisição do domínio sobre o produto. Não há possibilidade de mascarar contratos de compra em prestação de serviço. De nada serve adicionar a transferência de domínio do bem em favor da Administração (objetivo fundamental das partes) alguma prestação de fazer. Se o núcleo do contrato é uma prestação de dar, não se aplicará o regime do dispositivo ora comentado.”
Portanto, mesmo considerando a hipótese de que não se prorrogando o fornecimento do material - em determinado contrato - para o exercício subsequente, poderia acarretar prejuízo financeiro à Administração, ainda assim é recomendável que se acompanhe o entendimento consolidado no Tribunal de Contas da União acima exposto, quando se está diante de contrato em curso nos órgãos/entidades da Administração Pública Federal.
3. Conclusão
Portanto, diante de todo o exposto quanto a contrato de aquisição de material no âmbito Federal, caso não seja possível a execução total no exercício financeiro da celebração, deve o pacto obedecer à regra do artigo 57, caput, da lei de licitações, ou seja, a duração do contrato necessita estar vinculada à vigência do respectivo crédito orçamentário, não se podendo estender sua execução ao exercício financeiro subsequente, conforme o supramencionado entendimento do Tribunal de Contas da União.
4. Referências
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13ª Ed., Dialética. São Paulo: 2009, p. 698.
Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
www.tcu.gov.br
www.tc.df.gov.br